12/05/2020

Violência Doméstica na Quarentena: "em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão"?




Por Luana Hayachi


Com a recomendação da Organização Mundial da Saúde para que todos fiquem em casa e evitem a propagação do vírus covid-19, observou-se o aumento das denúncias de violência doméstica em todo Brasil. Segundo estudo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) publicado em 27 de abril, durante as medidas de isolamento poderá haver aumento de 20% dos casos de violência doméstica no mundo. Isso significa mais de 15 milhões de casos de violência a cada três meses de isolamento social.

Os dados sobre violência doméstica sempre foram assustadores no Brasil. Segundo reportagem da Folha de São Paulo de setembro de 2019, o Ministério da Saúde registra que a cada quatro minutos, uma mulher é agredida por ao menos um homem e sobrevive. Em 2018 foram registrados cerca de 145 mil casos de violência dos mais variados tipos, especialmente física e sexual, em que as vítimas sobreviveram, sendo que cada registro pode incluir mais de um tipo de violência. Em 2017, 4.396 mulheres foram assassinadas no país. Há, no entanto, alto índice de subnotificação, o que significa que a maioria das mulheres não denunciam as violências sofridas e que, portanto, os números reais são muito maiores do que os dados estatísticos.

O que mais preocupa é o número crescente de caso ano após ano. Em uma comparação entre 2014 e 2018, pode-se observar que as vítimas de violência sexual foram de 22.432 em 2014 para 34.352 em 2018, 64.832 vítimas de violência física em 2014 contra 97.757 vítima em 2018. Não é claro, no entanto, se houve aumento no número de casos de violência contra a mulher ou se passaram a haver mais denúncias devido à maior sensibilização da sociedade num geral e, consequentemente, maior conscientização das vítimas.

O problema já era esperado pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que afirmou no dia 20 de março que havia a possibilidade que o aumento de casos ocorresse durante o período de isolamento, pedindo para que os números de denúncia fossem divulgados amplamente nas redes sociais. A ONU Mulheres, por sua vez, publicou diversos artigos sobre os papéis e direitos das mulheres durante uma época de pandemia. Em um destes, apresenta necessidades das mulheres que não podem ser ignoradas, incluindo a garantia que as linhas diretas e os serviços para todas as vítimas de abuso doméstico sejam considerados serviços essenciais e sejam mantidos abertos, assim como a aplicação da lei seja sensibilizada para a necessidade de responder às chamadas das vítimas.

Para além da própria contaminação, o aumento de vítimas de violência doméstica se tornou uma preocupação e algo a ser combatido. Medidas estão sendo estudadas e discutidas, órgãos públicos estão se movimentando para evitar ao máximo o dano e instituições especializadas fazem tudo ao seu alcance para informar e proteger. Se esses dados são de conhecimento do Presidente da República, não foram tratados com a sensibilidade e responsabilidade necessária quando, no final de março, Jair Bolsonaro usou a violência doméstica para criticar o isolamento social. Ao analisar tal fala para além da irresponsabilidade, pode-se notar o porquê Bolsonaro erra tanto ao se pronunciar dessa maneira.

“Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu! É crime trabalhar?”

Segundo o presidente, a “falta de pão”, ou seja, a baixa renda, seria um motivo para que as agressões às mulheres aumentassem durante a quarentena. No entanto, ao contrário do que diz o senso comum, o maior índice de vítimas de violência doméstica está entre as mulheres economicamente ativas, que também geram renda para casa. Difundir a imagem do pobre como sendo potencialmente mais agressivo é culturalmente comum na sociedade atual, o que não torna aceitável que o Chefe do Executivo o faça.

É essencial, ainda, compreender que a crise não é a causa da violência. Assim como acesso à informação e locais de apoio, sobrecarga dos serviços de saúde, transtornos mentais, o uso de álcool e drogas ou frustrações sexuais, fatores envolvendo a economia, como endividamento ou desemprego, podem, sim, ser fatores de risco, que causam estresse e potencializam a possibilidade de haver uma agressão. Mas o que forma o agressor não é nenhum desses fatores. Ele já existe, produto da soma de questões muito mais estruturais da sociedade.

Chamar a violência sofrida por mulheres em suas casas de “briga” é banalizar seu sofrimento, ignorar o problema e, assim, evitar que uma solução seja cobrada. Se Jair Bolsonaro se isenta da responsabilização, há outras pessoas e órgãos que vêm tentando minimizar o problema e estão criando formas de informar e proteger as vítimas.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um grupo destinado a elaborar medidas emergenciais através do diagnóstico da atual situação, prezando pelo aperfeiçoamento da legislação buscando garantir maior rapidez e prioridade no atendimento das vítimas de violência doméstica e familiar no Poder Judiciário. O grupo tem até o final de junho para apresentar o trabalho finalizado. No dia 30 de março foi apresentado o PL 1267/2020, que busca alterar a Lei Maria da Penha para ampliar a divulgação do Disque 180 enquanto durar a pandemia. O projeto propõe que toda informação exibida na mídia que trate de episódios de violência deve incluir o Disque 180.

A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) lançou uma cartilha para orientar mulheres, assim como um grupo de pesquisadoras da PUC-RS e o Projeto Juntas e Seguras. Ambas têm o mesmo objetivo de informar as mulheres e disponibilizar formas de denunciar. Contam com informações como os tipos de violência que podem ser sofridas, o que fazer antes, durante ou depois de uma agressão, o ciclo da violência e suas consequências.

Os governos estaduais e municipais estão se antecipando às recomendações federais. O Tribunal de Justiça da Bahia criou a campanha "Quarentena sim! Violência não!" informando sobre a violência doméstica e os canais de atendimento disponíveis. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública ampliou o serviço online. A prefeitura de Recife lançou a campanha “Mulher, ficar em casa não quer dizer ficar calada”, também alertando sobre violência e divulgando canais de denúncia. O Tribunal de Justiça do Paraná já recomendou que os magistrados deem atenção especial aos casos de violência doméstica, pedindo para que medidas fossem tomadas como a análise de pedido de medida protetiva mesmo sem prévio registro policial, assim como a prorrogação automática das que já foram concedidas.

O contexto emergencial somado ao isolamento das mulheres e maiores tensões dentro de casa podem ser um fator essencial para o aumento das violências sofridas diariamente. As sobreviventes ainda encontrarão obstáculos adicionais nos hospitais superlotados, no acesso a medidas de proteção e para conseguir abrigos que possibilitem a fuga de situações de risco. Essas questões, no entanto, não são justificativa para se opor às recomendações da OMS, sendo um problema muito mais intrínseco à sociedade e que precisa ser avaliado em todos os momentos.





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