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11/04/2020

Em pauta: Restrição de direitos em tempo de corona vírus



A notória crise decorrente da pandemia do novo coronavírus (o SARS-CoV-2, causador da doença Covid-19) acentua um, por vezes criticado, aspecto do Estado: o poder de restringir e limitar os direitos dos seus cidadãos. Isso porque - assim como em períodos de guerra - é necessário que, em resposta a uma situação extrema, sejam tomadas medidas igualmente extremas. Por vezes, tais medidas extremas implicam em uma relativização que permite a supressão de direitos e garantias fundamentais, há muito incorporadas nas Constituições liberais-democráticas e que representam as conquistas civilizatórias no campo das liberdades individuais e coletivas.
Em um Estado Democrático de Direito, as medidas de limitação a direitos fundamentais precisam ser justificadas mediante juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade. Isto, porque, por vezes, podem existir diversos direitos em jogo, prevalecendo uma situação de conflitos entre princípios que não podem ser resolvidos apenas a partir de uma aplicação literal e mecânica da lei. Dentro deste contexto, faz-se necessário a utilização de parâmetros para definir e justificar quais direitos vão ser restringidos, quais vão ser assegurados e de que modo ocorrerão essas restrições. 
No contexto da pandemia, disparadamente, os direitos fundamentais que mais se veem mitigados, em países nos quais existe um elevado patamar de contágio, são as liberdades de ir e vir e o direito de reunião. Como o vírus se espalha de forma rápida, a forma mais eficaz de garantir a saúde da população é o isolamento social. Por isso, muitas nações têm fortemente limitado a livre circulação e a aglomeração de pessoas. Alguns países europeus, como a Alemanha e Reino Unido, tem adotado providências severas que restringem os direitos de locomoção e reunião, determinando a proibição de reuniões com mais de duas pessoas. Foi estipulada, inclusive, a aplicação de multa em caso de descumprimento, sendo que os governos alemão e britânico autorizaram o uso de força policial para dissolver as aglomerações. 
No Brasil, as restrições mais intensas se dão no âmbito estadual ou municipal por meio de decretos baixados pelos governadores e prefeitos, que ao analisarem como evoluiu a situação da doença tomam medidas de acordo com a necessidade peculiar de cada região. Por exemplo, nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, foi proibida a abertura de shoppings, academias, restaurantes, comercio e bares de rua. Em cidades litorâneas como as da Baixada Santista, o Rio de Janeiro e Florianópolis os moradores foram proibidos de frequentar as praias. Ainda, no estado do Pará, de Minas Gerais e Rondônia e na prefeitura de Presidente Prudente/SP e de Porto Alegre houve a polemica proibição da realização de cultos religiosos.
No estado de São Paulo, epicentro do surto da covid-19 no Brasil, a determinação do governador foi a suspensão ao funcionamento do comércio, permitindo apenas o funcionamento, com restrições, de estabelecimentos alimentícios. Serviços essenciais nas áreas da saúde, segurança, abastecimento, limpeza e bancos ainda funcionam. João Doria se pronunciou na última sexta feira dizendo que se a população não cumprir as medidas de isolamento, tomará medidas ainda mais restritivas, inclusive impondo multa e até prisão para aqueles que as descumprirem.
É sabido que os direitos fundamentais não são absolutos, o que permite a sua relativização quando se está diante de situações que colocam em conflito dois ou mais deles. Mas, é possível que direitos fundamentais tão significativos como a liberdade de culto, de reunião ou de locomoção sejam restringidos como meio de garantir a saúde pública? Percebe-se que a decisão implica em analisar liberdades que colidem, sendo necessária uma ponderação para se chegar a uma efetiva resposta. 
Foi Robert Alexy - a partir de sua teoria argumentativa – quem desenvolveu um modelo de ponderação que permite, por meio de uma análise racional, decidir qual dentre dois direitos conflituosos deve prevalecer. O método consiste em três etapas sucessivas, aplicáveis a casos concretos, de modo que ao final do procedimento é possível saber se a restrição a preceito fundamental que se propôs é ou não é proporcional.
De acordo com José Sérgio da Silva Cristóvam, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina

A proporcionalidade é uma máxima, um parâmetro valorativo que permite aferir a idoneidade de uma dada medida legislativa ou administrativa. Pelos critérios da proporcionalidade pode-se avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição àquela empreendida pelo Poder Público. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)

A primeira etapa da ponderação cuida de analisar a adequação, que significa examinar se a medida (que restringe um direito) tomada é realmente adequada para resolver o conflito, ou seja, se a medida escolhida é capaz de atingir a finalidade pretendida. Caso ela seja de fato adequada, passa-se ao estudo da necessidade/exigibilidade, consistindo em investigar se a medida tomada é necessária, ou seja, se, dentre todas as que poderiam ser escolhidas, não há nenhuma outra medida menos gravosa para a consecução desse fim. Se a medida for, de fato, necessária, prossegue-se para a verificação da proporcionalidade em sentido estrito, que corresponde a observar se a prevalência do direito que se quer ver garantido compensará a restrição do direito que será suprimido.
O objetivo da aplicação da ponderação é descobrir se é justa a restrição de um princípio, por meio da avaliação do caso concreto com base nas máximas proporcionais. A esse respeito Cristóvam afirma que:   

O Judiciário, quando da análise de uma medida restritiva de direitos dos cidadãos, sob o prisma da proporcionalidade em sentido estrito, deve exercer um juízo de ponderação entre o direito efetivado pela medida e aquele por ela restringido, a fim de averiguar acerca da justiça da medida eleita. Deve o juiz valorar, segundo as circunstâncias e peculiaridades do caso concreto, se a medida obteve um resultado satisfatório e se o direito limitado deveria sucumbir frente ao efetivado, em uma relação de precedência condicionada. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)

Ou seja, em última análise, para que se cumpra o requisito da proporcionalidade estrita, o benefício alcançado com a garantia de um direito deve ser maior do que a perda obtida com a redução do direito restringido. Proporcional, portanto, é aquela restrição a direito na qual os motivos que fundamentam a adoção da medida possuem peso suficiente para justificar a restrição ao direito atingido. (CRISTÓVAM, 2005, p. 167)
Se aplicarmos, o método da ponderação de Alexy ao conflito entre direito à saúde e à liberdade de reunião, poderemos chegar a algumas conclusões: a) da análise da adequação, é possível concluir que restringir a aglomeração de pessoas é uma medida capaz de deter, ou ao menos desacelerar, a propagação do vírus; b) ao verificar a necessidade, entende-se que a restrição é a maneira mais eficaz, dentre outras providências que podem ser tomadas, para garantir a saúde da população, de acordo com as recomendações da comunidade científica e da Organização Mundial da Saúde e; c) ao examinar a proporcionalidade em sentido estrito, percebe-se que a garantia do direito à saúde compensa a restrição dos demais direitos, tendo em vista que, assegurar o direito à saúde em detrimento do direito de reunião ou da liberdade religiosa traz muito mais ganhos do que se o contrário fosse.  
É nesse sentido que tem sido as decisões dos juízes e tribunais brasileiros, a exemplo de Jefferson Zanini, Magistrado da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Florianópolis, que lançou mão da teoria de Alexy ao proferir uma sentença. Foi ajuizada uma ação civil pública por uma associação de médicos, na qual foi requerida liminarmente a proibição do funcionamento de uma igreja evangélica. O juiz deferiu parcialmente a tutela de urgência sob o seguinte fundamento:

Ora, no confronto entre o direito fundamental à vida, compreendida como derivativo da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), e os também direitos fundamentais à liberdade de reunião (CF, art. 5º, XVI) e de crença religiosa (CF, art. 5º, VI), mostra-se salutar, nesse excepcional momento que caminha a humanidade, ser dada prevalência ao primeiro. Essa medida atende ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito, pois os ganhos advindos com a preservação da saúde pública superam as eventuais perdas derivadas da restrição à realização de cultos religiosos, mormente diante da transitoriedade da medida restritiva.

            Percebe-se que a decisão fez uma correta análise de proporcionalidade, ao evidenciar que, em meio a pandemia, o direito à saúde e à vida deve prevalecer sobre a liberdade religiosa e de reunião, pois os benefícios decorrentes de ser assegurada a saúde da população são maiores que os prejuízos acarretados pela restrição de eventos religiosos. A isso corresponde o papel que o Poder Judiciário possui de “[...] guardar a Constituição, zelar pelo Estado democrático de direito e garantir a eficácia dos direitos fundamentais.” (CRISTÓVAM, 2005, p. 161).
Como já enfatizado em diversos pronunciamentos do Ministério da Saúde, caso medidas não sejam tomadas, todo o sistema público de saúde pode entrar em colapso, gerando, assim, uma forte crise capaz de colocar em risco a estabilidade do Estado como um todo. Assim, considerando a pandemia gerada pela Covid-19, pode-se inferir que alguns direitos fundamentais, como a liberdade de culto, o direito de reunião e a liberdade de locomoção, devem temporariamente ser limitados para assegurar não só a saúde, mas também a vida das pessoas. 
Em um Estado democrático de direito, o campo de atuação dos chefes do executivo encontra-se limitado pela lei, de modo que, mesmo em situações de crise de grandes proporções como a ocasionada pela Covid-19, o caos não se torne uma brecha para autoritarismos. Isso significa que as restrições devem se dar dentro dos moldes do estado de direito uma vez que essa ordem ainda impera. Portanto, deve ser assegurado a todos os indivíduos uma condição mínima de subsistência e, mais do que nunca, os governantes devem apelar para a razão quando pensam em soluções para atravessar esse momento crítico. 
Entretanto, para que exista um mínimo de lógica e equilíbrio nas medidas de restrição a direitos não basta que a atuação do governo se dê dentro dos ditames da lei, ainda mais quando se percebe uma divergência de posicionamentos tão significativa para a sociedade. O Poder Judiciário tem importante papel nesse cenário e já vem intervindo nas questões envolvendo medidas de combate ao novo coronavírus, como por exemplo, determinando a abertura ou fechamento de comércios e templos religiosos.
A necessidade de providências é urgente e mais do que isso, é preciso que as medidas sejam pensadas para serem proporcionais, de modo que direitos não sejam restringidos de maneira desarrazoada, e efetivas, para que de fato sejam capazes de assegurar o mais importante nesse momento, a saber, a vida e a saúde de todos os cidadãos. 


REFERÊNCIAS
AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS DO PARANÁ. Entenda as medidas adotadas pelo governo do Estado para combater o coronavírus. Disponível em: <http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=106210&tit=Entenda-as-medidas-adotadas-pelo-Governo-do-Estado-para-combater-o-coronavirus> Acesso em: 11 abril 2020.

CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais: uma abordagem a partir da teoria de Robert Alexy. 245 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2005. 

FOLHA DE LONDRINA. Porto Alegre fecha igrejas que desrespeitaram proibição de culto. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/geral/porto-alegre-fecha-igrejas-que-desrespeitaram-proibicao-de-culto-2983341e.html> Acesso em: 11 abril 2020.

FOLHA UOL. Ao menos 18 Estados mantem fechados shoppings, comercio de rua e academias. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/ao-menos-18-estados-mantem-fechados-shoppings-comercio-de-rua-e-academias.shtml> Acesso em: 11 abril 2020.

FOLHA UOL. Reino Unido proíbe reunião de mais de 2 pessoas e impõe multas a quem sair às ruas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/contra-coronavirus-reino-unido-proibe-reuniao-de-mais-de-2-pessoas-e-fecha-lojas.shtml>. Acesso em: 27 março 2020.  

GAZETA MACHADENSE. Novas medidas são adotadas para evitar a proliferação do coronavirus no estado e no município. Disponível em: <http://gazetamachadense.com.br/2020/03/21/novas-medidas-sao-adotadas-para-evitar-a-proliferacao-do-coronavirus-no-estado-e-no-municipio/> Acesso em: 31 março 2020.  

G1. Alemanha proíbe encontros com mais de duas pessoas, contra o coronavírus. Disponível em:   <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/22/alemanha-proibe-encontros-com-mais-de-duas-pessoas-contra-o-coronavirus.ghtml> Acesso em:  27 março 2020.  

G1. Após recomendação da Promotoria, Prefeitura anuncia decreto que proíbe reuniões de pessoas em cultos religiosos em Presidente Prudente. Disponível em:  


G1. Governo do PA proíbe eventos religiosos e saída intermunicipal da região metropolitana na Semana Santa. Disponível em: <https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/04/06/governo-do-pa-proibe-eventos-religiosos-e-saida-intermunicipal-da-regiao-metropolitana-na-semana-santa.ghtml> Acesso em: Acesso em: 28 março 2020.  

G1 NOTICIAS: Para conter coronavírus, Florianópolis proíbe acesso às praias e entrada de ônibus na ilha. Disponível em:  <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/03/19/para-conter-coronavirus-florianopolis-proibe-acesso-a-praias-e-entrada-de-onibus-na-ilha.ghtml> Acesso em: 11 abril 2020.

SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Governador pede que população reforce medidas e anuncia que 7 dos 14 casos confirmados de coronavírus estão recuperados. Disponível em: <http://www.rondonia.ro.gov.br/governador-pede-que-populacao-reforce-medidas-e-anuncia-que-7-dos-14-casos-confirmados-de-coronavirus-estao-recuperados/> : Acesso em: 31 março 2020.     

NOTÍCIAS UOL. Doria fala em multa e prisão se isolamento em SP não atingir 60% na segunda. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/09/doria-fala-em-tomar-medidas-mais-rigidas-se-isolamento-nao-for-respeitado.htm> Acesso em: 10 abril 2020.

NOTICIAS UOL. Cidades da Baixada Santista proíbem acesso às praias e fecham shoppings. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/19/cidades-da-baixada-santista-proibem-acesso-a-praia-e-fecham-shoppings.htm> Acesso em: 11 abril 2020.







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22/03/2020

Em pauta: Reflexões sobre as fronteiras e outros sintomas






“(...) poderíamos dizer, historicamente, que a sociedade humana nasceu com a compaixão e com o cuidado do outro, qualidades apenas humanas. A preocupação contemporânea está toda aí: levar essa compaixão e essa solicitude para a esfera planetária. Sei que gerações precedentes já enfrentaram essa tarefa, mas vocês terão de prosseguir nesse caminho, gostem ou não, a começar por sua casa, por sua cidade — e já.”[1]

Nesta última semana tivemos posicionamentos mais incisivos em relação ao controle epidemiológico do COVID-19. Grande parte das instituições de ensino suspenderam suas atividades acadêmicas, e os entes federados, bem como seus respectivos órgãos, tem se pronunciado acerca de medidas de prevenção e controle sobre a doença. Destacamos as orientações a respeito de cuidados individuais como higiene das mãos, evitar aglomerações, manter os ambientes ventilados, e não compartilhar seus objetos pessoais. Em caso de resfriado, ou mesmo gripe, a orientação é ficar em casa e observar seu quadro de sintomas. Caso apresente febre, tosse e dificuldade de respirar, deve-se procurar auxílio médico[2].
Mas, além das medidas informativas de saúde, o governo federal determinou o fechamento temporário das fronteiras terrestres do Brasil, inicialmente pelo prazo de 15 (quinze) dias. Num primeiro momento apenas com a Venezuela, em divisa com o estado de Roraima, e posteriormente com a Argentina; Bolívia; Colômbia; Guiana Francesa; Guiana; Paraguai; Peru; e Suriname. Cabe ressaltar que a Portaria nº 125 que trata sobre a restrição de acesso ao nosso país nesse período de pandemia, apoiou-se nas recomendações da Anvisa, e não se aplica aos brasileiros, natos ou naturalizados; imigrantes com prévia autorização de residência definitiva em território brasileiro; profissionais estrangeiros em missão a serviço de organismo internacional, desde que devidamente identificado; e aos funcionários estrangeiros acreditado junto ao Governo brasileiro.[3]
Tais restrições também não impedem o tráfego do transporte rodoviário de cargas; a execução de ações humanitárias transfronteiriças previamente autorizada pelas autoridades sanitárias locais; e o tráfego de residentes de cidades gêmeas com linha de fronteira exclusivamente terrestre[4]. Outro ponto a se observar são as sanções em caso de descumprimento de tais medidas, implicando em responsabilização civil, administrativa e penal do agente infrator; bem como, na deportação imediata do agente infrator e a inabilitação de pedido de refúgio.[5]
Recentemente, o podcast Hora do Intervalo[6] trabalhou questões relevantes sobre a nova epidemia, e dentre elas, a questão do controle de fronteiras. Nossa colega de redação, Manuela Paola, destacou que a saúde deveria ser um tema que ultrapassasse fronteiras, haja vista que a epidemia não as respeita. E o professor Gustavo Blum, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, ressaltou a importância do controle das fronteiras para a manutenção das atividades estatais, como da própria segurança e da saúde pública do país.

“Jamais deixaremos de ser estrangeiros: permaneceremos assim, e não interessados em interagir, mas, justamente porque somos vizinhos uns dos outros, destinados a nos enriquecer reciprocamente. (...) quanto mais o espaço e a distância se reduzem, maior é a importância que sua gente lhe atribui; quanto mais é depreciado o espaço, menos protetora é a distância, e mais obsessivamente as pessoas traçam e deslocam fronteiras.”[7]

Zygmunt Bauman está se referindo às fronteiras entre pessoas em espaços reduzidos, mas acredito que possamos espelhar tal concepção sobre as fronteiras entre países de um mesmo continente. Esta afirmação pode ser claramente vista nas questões de cunho migratório e na transformação de países hegemônicos em enclaves fortificados. Podemos ainda transpor tal olhar ao posicionamento do Brasil em relação aos demais países fronteiriços da América Latina.
O antropólogo norueguês Fredrik Barth, é citado por Bauman em sua obra Confiança e medo na cidade para ressaltar que o objetivo das fronteiras não está em delimitar diferenças, ao contrário, é o fato de demarcarmos fronteiras que as distinções se consolidam e, por sua vez, tornam-se legitimadas. Mas, sendo a delimitação uma justificativa para o fortalecimento de uma identidade e soberania nacional, a ausência de fronteiras em relação ao direito universal à saúde e, como destacado por Manuela, não reconhecida pela própria epidemia, não deveria ser um motivador para caminharmos em sentido oposto? Entendemos a questão do isolamento como fundamental para o controle da epidemia, mas no caso da Venezuela, a justificativa para a restrição de seus nacionais em nosso território brasileiro foi atribuída por nosso presidente, Jair Bolsonaro, à fragilidade do país venezuelano. Esta fragilidade não deveria ser abraçada por uma solidariedade entre nações, em busca de uma integração e fortalecimento através da colaboração e reciprocidade em prol da humanidade?
            Retomando o podcast Hora do Intervalo, a professora Edna Torres Felício, do curso de Direito do Unicuritiba, pontuou sobre a competência administrativa acerca da esfera da saúde, compreendendo a atuação estatal fundamental para a vigilância epidemiológica da saúde individual e coletiva. Outro ponto destacado pela professora é a ausência de legislação sobre quarentena, e para tanto, foi expedida em caráter emergencial a Lei nº 13979, de 06 de fevereiro de 2020, a respeito de medidas de urgência para enfrentamento da epidemia do corona vírus[8].
            A professora Edna nos explicou que alguns direitos individuais podem vir a ser suprimidos em prol da saúde pública, dentre eles, o direito de ir e vir. Para isso, ela nos relembrou que os direitos fundamentais possuem estrutura de princípios e por isso podem vir a colidirem, demandando a harmonização no caso concreto. E, neste sentido, deve-se respeitar a temporariedade, a legalidade e a proporcionalidade, para se evitar uma ampliação do controle estatal de forma arbitrária.
Apoiando-se no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, Torres reforçou que momentos de insegurança, como a da presente pandemia, suscitam a instauração de estados de exceção que podem vir a ser tomados como paradigmas de normalidade. Nesse aspecto o medo pode ser utilizado como ferramenta para a insurgência de um estado não democrático. Algo similar ao papel do terror para a manutenção de poder num sistema totalitário, outrora analisado por Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Esta parte final da fala da professora Edna é muito importante pois nestes últimos dias as palavras “estado de sítio” têm-se apresentado temerosamente presentes e constantes na mídia.

“As fronteiras e deslocamentos migratórios são processos econômicos e socioculturais, como são estudados pelos demógrafos, antropólogos e sociólogos, e também processos simbólicos que se expressam como metáforas, e não apenas como conceitos.[9]

            Utilizando da comparação proposta por Canclini das fronteiras e deslocamentos, e porque não das restrições a estes, como processos simbólicos dados por metáforas, torna-se inevitável nos remetermos ao entendimento de sintoma para Freud e Lacan[10]. Este último, compreendia o inconsciente enquanto linguagem e o sintoma enquanto mensagem-metáfora, ou seja, um significante de um significado recalcado. Para Freud, o caminho da gênese da neurose é trilhado pelo inconsciente diante de um trauma que o recalca e se manifesta sob as vestes de sintoma.
O ponto que gostaria de chegar na questão sobre as fronteiras, suas delimitações e medidas de contenção, reside exatamente nesta concepção de metáfora que Canclini sugeriu, e que podemos correlacionar com a compreensão de sintoma para a psicanálise. Um sintoma que na verdade não guarda enquanto trauma, ou significado recalcado, a pandemia que vivemos, mas é um sintoma similar à crise migratória, à desigualdade entre os povos, e a manutenção de estruturas de poder que consolidam blocos hegemônicos. Portanto, finalizo com uma proposta de reflexão: qual é o trauma, em termos de humanidade, que estes sintomas sociais, políticos e econômicos tentam nos revelar?





[1] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 90.
[2] BRASIL. Corona vírus – COVID-19. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/>. Acesso em:20/03/2020.
[3] BRASIL. Portaria nº 125, de 19 de março de 2020. Brasília: Diário Oficial, 2020. Art. 4º. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/portaria-125-fechamento-fronteiras.pdf >. Acesso em, 20/03/2020.
[4] BRASIL, 2020, art. 5º.
[5] BRASIL, 2020, art. 6º.
[6] Podcast dos Blogs Internacionalize-se e Unicuritiba Fala Direito.
[7] BAUMAN, 2009, p. 75.
[8] BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília: Diário Oficial da União, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm>. Acesso em: 21/03/2020.
[9] CANCLINI, Nestor García. O Mundo Inteiro como Lugar Estranho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. p. 65.
[10] VILLELA DIAS, Maria das Graças L. O Sintoma: de Freud a Lacan. Psicologia em Estudo: Maringá, v. 11, n.2 maio/2006.
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21/03/2020

Em pauta: A portaria do coronavírus e a restrição de direitos fundamentais em tempos de pandemia




Com o avanço dos casos de coronavírus pelo Brasil, os ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Saúde editaram uma portaria que muda regras e altera condições consolidadas no Direito Brasileiro no que tange direitos individuais. O ato normativo está amparado por lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no início de fevereiro (Lei 13.979/2020) e que trata de medidas emergenciais para enfrentamento do Covid-19, vírus já presente em 151 países.
A portaria prevê, por exemplo, que o descumprimento de determinações médicas de quarentena, isolamento ou internação pode incorrer em dois artigos do Código Penal (CP), isso se o fato não constituir crime ainda mais grave.
Os dois crimes previstos pela portaria são os artigos 268 e 330 do CP:
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
        Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
        Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
                       Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

As definições de quarentena, isolamento e internação são definidas justamente pela Lei 13.979/2020, norma que já no parágrafo 1º do Art. 1 diz que as medidas “objetivam a proteção da coletividade.”
Segundo a lei, isolamento é a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”. Já quarentena é a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”
A Lei 13.979/2020 determina ainda a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas e tratamentos médicos específicos.
Aqui destaca-se que a implementação das medidas independe de autorização judicial. “No exercício de polícia administrativa, a autoridade policial pode encaminhar o infrator a sua residência ou ao estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas “, diz o texto.
Mas constitucionalmente, essas medidas são possíveis, mesmo que infrinja direitos individuais?
Professora de Direito Constitucional no UniCuritiba, Edna Torres Felício explica que os direitos fundamentais têm estrutura de princípios e podem colidir entre si. “Quando isso ocorre, é preciso harmonizar os direitos fundamentais no caso concreto. Aqui, vê-se que estão em colisão direitos fundamentais individuais e a proteção da saúde pública, logo interesses individuais podem ceder em detrimento da necessidade de controle da epidemia”, diz.
A conclusão que chegamos é que sim. Diante da necessidade de preservar a coletividade de um vírus potencialmente perigoso, a coletividade pode se sobrepor às necessidades individuais. Logo, o Governo Federal tem tomado medidas que são amparadas pela Constituição, pelo menos até aqui.
Edna Torres lembra que a Constituição Federal prevê medidas ainda mais enérgicas, como o estado de defesa ou de sítio e a intervenção federal. “Eu não acredito que cheguemos a situações extremas de comprometimento da ordem pública ou da paz social, que poderiam ensejar o estado a lançar mão do sistema constitucional de crises. Mas, precisamos ter em mente, que qualquer medida extrema deve respeitar o princípio da temporalidade, com duração apenas enquanto prevalecer o motivo; legalidade, com respeito à Constituição e leis; e proporcionalidade, com o problema sendo enfrentado dentro da proporção aos problemas enfrentados”, conclui.
Confira a íntegra das normativas:
Lei 13.979: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm
Portaria Interministerial Nº5 2020: in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-5-de-17-de-marco-de-2020-248410549


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