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27/05/2020

Em pauta: A exceção do retorno da criança, sequestrada internacionalmente, sob a perspectiva do Direito Internacional Privado

Por Christina M. Carreiro

Em uma primeira visão sobre o tema, há de se desanuviar o conceito de sequestro de crianças, muitas vezes visto como a mera detenção indevida do infante ou adolescente por um de seus pais. Ora, a temática vai muito além disso, porquanto a mudança da residência habitual do mesmo, além de envolver um outro Estado soberano, trata da ausência de conhecimento ou consentimento de um dos genitores¹. A guarda unilateral sem o resguardo de uma sentença, judicial ou extrajudicial, tem o potencial de provocar prejuízos de diversas ordens aos envolvidos, questão a qual o Direito Internacional Privado também se dedica a evitá-los e tutelar.
Com o avanço da racionalidade do Direito de Família no Brasil, finalmente reconhecendo a criança como sujeito de direitos, ativo e influente no seio familiar, houve de se atualizar diplomas internacionais, quando  a  nação  se  torna signatária da Convenção de Haia de 1980², além da que rege a adoção internacional, de 1993. Desde então, é formada uma jurisprudência clara e pacífica, em verdadeiro desincentivo à conduta lesiva – vide banco de dados atualizado de INCADAT.
Diante da dificuldade de se estipular medidas de urgência em um contexto internacional, o estrito cumprimento das normas de DiPri através de uma efetiva cooperação   entre   Estados   signatários   se   faz   especialmente   relevante, quando a transferência, também chamada de retenção ou subtração ilícita, já ocorrera e é preciso reparar ou mitigar o dano o quanto antes.
A Carta Magna prevê, por exemplo, a competência ao STJ para homologar sentença estrangeira e conceder exequatur às cartas rogatórias — art.  105, inciso I —, bem como a execução por parte de Juízos Federais, art. 109, X, ambos da CF/88. Porém, diante do número excessivo de casos internos, como lidar com demandas internacionais? Considerando que a referida convenção, a de 1980, é norma  infraconstitucional, submetida à legislação interna hierarquicamente superior, que é a Constituição, deverá o juízo brasileiro conciliar não apenas o interesse do litigante³, o eventual entendimento da corte estrangeira, mas também, enquanto na fase instrutória  da lide, a viável e adequada produção de provas.
Desta forma, considerado o art. 6º da Convenção, a autoridade central brasileira é a União (AGU), cuja responsabilidade de responder internacionalmente é delegada à Secretaria Especial de Direitos Humanos – Dec. 3951/2000.  Recebido  o  pedido  de restituição e preenchidos os requisitos formais, notifica-se a Interpol para localização da criança em caráter sigiloso, geralmente no caso em que o Brasil seja Estado demandado, mas no caso de que o menor esteja no Brasil por genitor estrangeiro, e se manterem em situação irregular, é notificada a Polícia Federal para saída voluntária do acusado de retenção ilícita da criança; senão, repassado o caso à Polícia de Imigração para a deportação. Localizada a criança, informado o acusado de processo em trâmite, após tentativa de conciliação, remete-se à AGU para ingresso da ação.
Assim, o Brasil prevê o retorno imediato da criança em sede de tutela antecipada de mérito, o qual aqui se questiona. Muito embora a Convenção preveja a celeridade na restituição do menor, devem ser observadas as condições pelas quais o menor passa no  contexto aonde vive se comparado donde foi retirado, além de características diversas,  como qualidade do vínculo afetivo de parentesco, passível de decisão de mantimento   da criança no local aonde foi readequada — sem desrespeitar a jurisprudência da Comunidade Internacional. (O próprio STJ se refere ao “combate” do Sequestro Internacional de Crianças, termo perigoso se visto unicamente de um ponto de vista combatente, e não devidamente ponderado).
Haja vista o comentado caso Sean Goldman, há de se salientar que o papel do DiPri não é fomentar discussões políticas e empresariais, de grande caráter comercial e especulativo, meramente, mas respeitar o Direito de Família dos Países envolvidos na demanda, enquanto preserva a criança de uma exposição exacerbada e prejudicial ao seu processo de desenvolvimento. A situação, tanto do infante quanto de seu genitor, deve sempre estar regularizada, além de respeitado o espaço pessoal de criança, e analisadas as suas posições sociais e psicológicas.
A partir de uma análise de legalidade do pleito particular é que se avalia a necessidade e possibilidade de laudos psicossociais para o conhecimento do contexto do menor. Quanto ao princípio do “melhor interesse da criança”, por vezes camuflado como o melhor interesse dos pais, há de se ter cuidado na interpretação jurídica e fundamentos de sentenças judiciais, evitando a permissividade de expressões    radicais    e preconceituosas — como a de nacionalistas e xenófobos oportunistas.
Nesse presente trabalho acadêmico se defende uma posição ponderada da Justiça Federal enquanto cumpridora de Convenções Internacionais, eis que não haja uma mais relevante que a outra em matéria de DiPri. Considera-se a Convenção de Haia bem redigida, ainda que cerca de quarenta anos atrás, apenas aprimorada pela interpretação de novos entendimentos do Direito de Família Contemporâneo, como a multiparentalidade, casamento homossexual, e demais composições de família.
Deste modo, dá-se especial enfoque ao art.  13,  b,  da  Convenção  quando,  em complemento  ao  que  cita  Jacob  Dolinger,    previsão  de  não  restituição  do  menor quando há probabilidade de dano físico ou psíquico dele caso assim se procedesse de volta ao seu local de origem, situação, esta intolerável  ou  ainda,  caso  o  adolescente, atingindo a maioridade, se opõe ao seu retorno.
Adayr Dyer, quando foi primeiro secretário da Comissão Especial da  Conferência de DIP, em Haia, 1993, ressaltou a relevância de se considerar a exceção    de não retorno da criança quando a ação foi aqui interposta, ou de não homologar  sentença estrangeira — com muito cuidado, sem excessos, devidamente fundamentada.
A proteção de crianças enquanto discutível matéria de ordem pública há de ser considerada,  ainda que em grau recursal, priorizando o comportamento preventivo estatal de evitar separação entre irmãos ou de qualquer figura afetiva fática da convivência do infante/adolescente — ponto este não pacífico na doutrina, na medida em que observada, aliás, a práxis dos Estados contratantes.


NOTAS DE RODAPÉ:
¹Similar ao contexto de alienação parental, tão suscitado em discussões de Psicologia Jurídica, Mediações, e Direito de Família.
²Vigente, hoje, em mais de 80 Estados contratantes.
³A depender, poderá ser protelatório e excessivamente litigante, gerando uma demora excessiva na resolução da demanda. O perigo de um erro judicial aumenta se diante de medidas de urgência.
⁴Possibilitando um efetivo protecionismo do melhor interesse da criança, diante de todo um contexto social e psicológico, sobretudo quando a demanda é revestida de caráter internacional.
⁵Como os genéricos do código processual civil de medidas cautelares, pertinência temática do pedido, e prova pré-constituída suficiente a guiar uma cognição sumária, bem como instruir a petição com demais documentos
⁶Vide título da página: https://www.stf.jus.br/convencaohaia/cms/verTexto.asp Acessada em 10/04/2020.
⁷Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p. 256.
⁸Relembra o mesmo autor Dolinger, na página 258.
⁹Página 305, idem acima.
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13/05/2019

Mudança Legislativa: Vedação ao Casamento de Adolescentes Menores de 16 Anos

Por Helem Keiko Morimoto**

Você sabia que em pleno século XXI, ainda era permitido, NO BRASIL,  em determinadas situações, o casamento de adolescentes menores de 16 anos de idade?
Em análise ao Código Civil de 1916, nota-se que a simples falta de capacidade já acarretava o impedimento matrimonial, o que de fato, não ocorre no atual código, na medida em que o artigo 1.517 dispõe o seguinte: “O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.”
 
Porém, como toda regra possui uma exceção, o artigo 1.520, do Código Civil, antes da nova redação dada pela Lei 13. 811 de 2019, declarava que: “Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”. 

Ou seja, excepcionalmente, indivíduos sem idade núbil poderiam se casar quando houvesse a gravidez ou o intuito de evitar uma imposição criminal - esta última estava em consonância com o artigo 107 do Código Penal, em que se previa, no seu inciso VII  e VIII, que nos crimes contra os costumes, atual crimes contra a dignidade sexual, descritos nos artigos 213 a 220, se o ofensor se casasse com a ofendida, seria extinta a punibilidade.

Assim, no primeiro caso, era permitido o casamento para que fosse assegurada a paternidade do nascituro, com a finalidade de evitar que a criança nascesse sem ter pai conhecido. Destaca-se que as adolescentes com idade inferior a 16 anos que se casassem grávidas não poderiam ter o casório anulado. Porém, não havendo a gravidez, a união poderia ser anulada, com base no inciso I, art. 1.550 do Código Civil por não ter completado a idade mínima. Neste caso, outro ponto importante a ser preenchido era o da obtenção do consentimento para a cerimônia, de modo que era necessário tanto a autorização dos pais ou responsáveis legais quanto dos próprios nubentes.
Em caso de inobservância de qualquer das exigências, o casamento seria impedido e poderia acarretar possíveis perdas do poder familiar em relação a estes menores impúberes.

Ainda, conforme o artigo 1.631, parágrafo único, do Código Civil, a própria autoridade judicial poderia decidir, nos casos em que não houvessem acordo entre os pais acerca do consentimento, bem como o magistrado poderia suprir a denegação de ambos os pais, quando injustas, com fulcro no art. 1.519 do CC.
Já em relação à segunda hipótese de casamento que possuía a finalidade de evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, esta restou prejudicada, tendo em vista que foi revogada tacitamente pela Lei nº. 11.106/05, os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal, que admitiam a extinção da punibilidade do casamento do agente com a vítima, ou da vítima com terceiro.

Sobre isto, Inácio de Carvalho Neto defende que:

Nos casos do art. 1.520, não diz a lei a partir de que idade pode se dar a autorização judicial para o casamento. Mas a autorização judicial não dispensa o consentimento do próprio nubente, pelo que se deve ter em vista a possibilidade de o nubente se capaz de consentir. Obviamente, ninguém ousaria autorizar o casamento de uma criança na primeira infância, v.g., que foi estuprada, para permitir a extinção da punibilidade do ofensor.

Desta forma, verifica-se que o casamento de adolescentes era permitido, devendo haver o consentimento dos pais ou responsáveis legais ou a autorização judicial do magistrado.

Ocorre que a partir do dia 13 de março de 2019, ao ser publicada a Lei de nº. 13.811, foi expressamente proibido o casório de pessoas menores de 16 anos. A nova redação do artigo 1.520 dispõe que: “não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”.

Esta Lei, adveio do Projeto de Lei nº. 7119/2017, criado pela ex-Deputada Federal Laura Carneiro, com o intuito de alterar o artigo 1.520 do Código Civil, sob a justificativa de que o Brasil é o quarto país em números absolutos com mais casamentos  infantis no mundo, eis que três milhões de mulheres afirmaram que se casaram antes de completar 18 anos de idade. Ressalta que de acordo com o estudo da Organização Não Governamental Promundo, 877 mil mulheres brasileiras casaram-se com até 15 anos e que, atualmente, existiriam cerca de 88 mil meninos e meninas entre 10 e 14 anos em uniões consensuais, civis e/ou religiosos no Brasil.
A ex-Deputada, também, afirmou que a exceção ante a gravidez é uma legislação incompatível com o os avanços da ciência e das políticas públicas, tendo em vista os prejuízos psicológicos e sociais da união. Já em relação a segunda exceção, em que pese tenha sido expungida do ordenamento jurídico por força da Lei 11.106/2005, a presença da sua redação, ainda, atenta contra a dignidade das crianças.

Em fevereiro de 2019, o Senado aprovou o PLC 56/2018, que tramitou como PL 7119/17 na Câmara de Deputados, sendo que o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei em 12 março de 2019, proibindo o casamento em qualquer circunstância aos menores de 16 anos.

Desta forma, com a alteração supracitada, todas as exceções legais que permitiam a realização do casamento infantil foram extintas.

O QUE DIZEM NOSSOS PROFESSORES:

Questionados pelo Blog “Unicuritiba Fala Direito” sobre o casamento infantil, os professores de Direito de Família e Sucessões responderam de forma clara e direta:

Professor Waldyr Grizard: A lei não trouxe vantagem, pois no caso em que houver uma relação entre uma adolescente de 13 anos e um homem de 20 anos, por exemplo, e desta união resultar uma gravidez, além de não possibilitar o casamento, o genitor será preso e a mãe ficará no desamparo. Portanto, a lei prejudica mais do que facilita. A lei retira a ideia de que a criança deve nascer no seio de uma família, pois a criança nascerá no seio de nada. Não haverá núcleo familiar, terá uma mãe sozinha, criando sozinha, prejudicando seu desenvolvimento e entrando na evasão escolar. A válvula de escape é a União estável. Outro ponto a ser questionado é: quem terá o poder familiar sobre a criança? A adolescente ou os avós?
O artigo 1.550 do CC previa que poderia haver a anulação de casamento apenas para os maiores de 16 anos, portanto, o menor nunca pode se casar.
Ressalto que o juiz, ao analisar processo, questionava os indivíduos se eles tinham discernimento do que era o casamento e de todas as responsabilidades. O juiz poderia não liberar o casamento infantil.
Portanto, o atual 1.520 do CC, é prejudicial por não atender a excepcionalidade que a lei anterior previa. A criança nascerá numa família desestruturada. Haverá dano físico, mental e psicológico”.

Professora Camila Bresolin: “Acredito que a alteração é bem-vinda, justamente em função da incongruência que gerava, dentro de uma mesma lei (o Código Civil de 2002). Sem contar que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a pessoa maior de 12 menor e de 18 anos, é adolescente, e portanto, é pessoa em formação. Viabilizar o casamento para alguém nesta fase da vida, talvez pudesse levar à antecipação de fases importantes na vida e na formação de pessoas muito jovens.
Entretanto, não existem só motivos para comemorar. A Lei 13.811/2019 alterou o artigo 1.520, mas esqueceu de mencionar o artigo 1.551, do Código Civil de 2002. Este artigo prevê que não será anulado, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez, ou seja, ainda está escrito na nossa legislação, que quem casar, em qualquer idade, desde que haja gravidez, terá casamento válido”.

Professora Adriana Martins: “Concordo com a proibição do casamento para pessoas que não atingiram a idade núbil (16 anos) pela própria lacuna legal antes da sua alteração. Ocorre que se permitia o casamento sem o requisito da idade núbil nos casos excepcionais previstos no artigo 1517 do mesmo diploma legal, mas o legislador simplesmente se omitiu quanto a possibilidade de menores de 16 anos se casarem se preenchidos os requisitos do artigo mencionado. Ora, criou-se uma vulnerabilidade e instabilidade permissiva....na violação de direitos indisponíveis e fundamentais quando se possibilita um casamento para criança ou adolescente menor que 16 anos. Esses sujeitos de direito devem ser resguardados, protegidos, amparados e respeitados , pois de outro modo a própria dignidade humana estaria sendo massacrada”. 


REFERÊNCIAS:
CARVALHO NETO, Inácio de. Responsabilidade Civil no Direito de Família, 3 ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 363.
LUZ, Valdemar da. Manual de Direito de Família. 1 ed. Barueri: Manole, 2009, p 16 - 18.
OLIVEIRA, James Eduardo. Código civil anotado e comentado: doutrina e jurisprudência.  Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 1455.
SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva. Família e sucessões. 7 ed. São Paulo : Atlas, 2014, p. 14 – 15.
BRASIL. Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019. Confere nova redação ao art. 1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 12 de março de 2019. Disponível em:
 <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6259.htm>.


** Helem Keiko Morimoto é acadêmica do nono período de Direito do UNICURITIBA e integra a equipe editorial do Blog UNICURITIBA Fala Direito, Projeto de Extensão coordenado pela Profa. Michele Hastreiter.


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20/04/2019

Me indica uma série? - Coisa Mais Linda: as conquistas jurídicas femininas do Século XX e XXI








Por Giovanna Maciel**

Ao final da década de 50, em São Paulo, encontramos uma moça conservadora e completamente dependente de seu pai – Ademar – e de seu marido - Pedro. No entanto, sua vida toma um rumo completamente diferente quando Pedro desaparece ao viajar para o Rio de Janeiro a fim de montar um restaurante. Maria Luiza, é claro, segue os rastros do marido e, em terras cariocas, essa jovem passa a descobrir um novo mundo na companhia de mulheres feministas e liberais, ao som da Bossa Nova.

Protagonizada por quatro personagens, cada uma com seus problemas e dilemas a série mostra que, unidas, elas são capazes de superar seus impasses, ainda que vivam em realidades diferentes. Uma premissa da série é que, por mais que se passe nos anos 1950 e começo dos anos 1960, muitos dos pensamentos da época permanecem enraizados em nossa sociedade.

A questão em si, não é sobre os ideais feministas, nem se cada uma delas consegue superar seus próprios obstáculos. Também, não diz respeito apenas sobre a amizade das mulheres, bebedeiras e bossa nova. A questão trazida pela série é muito mais profunda. Diz respeito aos direitos das mulheres – ou falta deles. Assistindo a série com um pouco de empatia, nos deparamos com alguns questionamentos que, apesar de comuns à época devido à falta de legislação, ainda permanecem em nosso cotidiano.

Dentre estes questionamentos, a falta de direitos civis das mulheres. Maria Luiza não consegue pedir empréstimos ou dar andamento ao seu projeto do clube de música por um motivo: não ser homem.  A própria personagem faz uma passagem quanto à preocupação do banco em exigir a assinatura de um homem para conceder um empréstimo, mas pouco terem se preocupado com o fato de que foi um homem quem levou todo o seu dinheiro. Em breve análise da evolução dos direitos da mulher, percebe-se que só em meados dos anos 1960 houve alteração no Código Civil a fim de ampliar os direitos da "MULHER CASADA". Isso mesmo! Só a partir de 1962 as mulheres que fossem casadas não precisavam mais PEDIR AUTORIZAÇÃO do marido para trabalhar, receber heranças e ficar com a guarda dos filhos em caso de separação. Engraçado é que, por mais que a expressão “pedir autorização” nos choque nos dias atuais, não é raro ver situações de mulheres que não são capazes de adquirir sua liberdade financeira porque seus cônjuges ou companheiros as impedem ou dificultam o acesso ao mercado de trabalho.
          
Em linha oposta, encontramos Thereza. Seu marido não vê problemas quanto ao trabalho e ainda a incentiva. Entretanto, o impasse está justamente em seu local de trabalho: uma revista FEMININA composta apenas por editores HOMENS. Ainda, ao propor pautas que saíssem um pouco do padrão "bela, recatada e do lar", teve que ouvir de seu chefe – homem – que assuntos mais revolucionários não interessavam às mulheres (claro, porque um homem sempre sabe o que mais interessa à mulher). Como se não bastasse, ao sugerir contratar uma redatora mulher, usou o argumento de que mulheres recebem menos do que os homens e, por isso, seria mais vantajoso contratá-la. Aqui, ao invés de inexistirem direitos à mulher, ressalta-se que em 1951, anos antes do tempo cronológico da série, a Organização Internacional do Trabalho aprovou a igualdade de remuneração entre trabalho masculino e feminino para igual função. Por óbvio, mesmo quase 60 anos após a normativa, ainda vemos corriqueiramente mulheres recebendo salários bem inferiores, mesmo desempenhando o mesmo papel de seu colega.


O cenário de Lígia é um pouco diferente. Ela é casada e parece estar sempre feliz. Mas ao longo dos capítulos, conhecemos sua realidade... Ao se casar, ela abriu mão do seu maior sonho: ser cantora. Infelizmente, seu marido não aceita que ela trabalhe e, muito menos, que viva da música, mesmo sabendo o quanto isso a faria feliz. No desenrolar da história, vemos inúmeras cenas de violência doméstica, em sua forma psicológica, física, sexual e, indiretamente, até econômica. A personagem se depara com estupro marital, diversas agressões físicas, xingamentos e ofensas, mas não conta para ninguém sobre os fatos, nem para suas amigas, devido seu marido ser pessoa rica, da alta sociedade e possuir bom relacionamento político. Aos poucos ela deixa sua vida e desejos de lado para manter a boa imagem de seu cônjuge. Ressalto, ainda, que foi apenas com a Lei Maria da Penha, em 2006, que o governo passou a olhar um pouco para essas mulheres vulneráveis. Até então, a máxima de “em briga de marido e mulher não se mete a colher” era fielmente seguida. Ainda que hoje, mais de 10 anos após a promulgação desta lei vejamos situações como esta todos os dias, é muito mais difícil de imaginar o sentimento da mulher do século passado, sem qualquer amparo.


 Finalmente, temos Adélia. Uma mulher negra, mãe solteira, moradora do morro e doméstica. Somente por ser negra, ela vive uma realidade completamente diferente das demais. A cada capítulo a personagem passa por alguma forma de discriminação, seja pela sua antiga chefe, impedindo-a de usar o elevador social do prédio, seja pelas demais protagonistas da série, em especial Lígia. Ao contrário das demais, Adélia não busca seu lugar na sociedade e consequentes direitos civis. Ela busca seu reconhecimento como humana, pois não era tratada e vista como tal. Em minha opinião, é neste contexto que há mais falhas da produção. Pouco se mostra da realidade dos negros no Brasil daquela época, dando mais ênfase na dificuldade em erguer o clube de música, do que das dificuldades de aceitação de uma mulher negra na sociedade carioca – e brasileira. Coincidentemente, este é um dos fatos que mais nos deparamos nos dias atuais. Ainda que mulheres continuem ganhando menos, ainda que continuem sofrendo diariamente violências domésticas e tenham seus direitos civis subestimados, nada se compara à realidade desta tripla vulnerabilidade. Mulher. Negra. Pobre. O modo como as coisas acontecem para Adélia parecem, de certo modo, simples, nada compatível com a realidade, já que rapidamente adquire um alto cargo no clube de música e não recebe nenhum tipo de discriminação por parte dos clientes. Isso abre precedente para o questionamento: a alta sociedade da época aceitaria uma negra como sócia de um estabelecimento, sem qualquer manifestação contrária? Eu acredito que não.


É possível notar o tamanho da diferença entre os contextos sociais vividos entre as personagens por uma questão simples, igualmente presente no nosso cotidiano. Tanto Maria Luiza, quanto Adélia possuem filhos, entretanto, ao deixar São Paulo e ir atrás do marido no Rio de Janeiro, Maria Luiza contou com todo o apoio de sua mãe, a qual se dispôs a cuidar de seu filho. Por outro lado, Adélia não tinha com quem deixar sua criança, tendo que leva-la, inclusive, para o trabalho por não ter outra opção naquele momento.

No geral, a série é incrível, com uma ótima produção e demonstra, em sua maioria, o machismo presente no nosso cotidiano mesmo com a lenta evolução dos direitos femininos. Não subestimem a trama pelo simples fato de ser brasileira, muito menos por ser protagonizada por quatro mulheres. Mas, ao assistirem, aproveitem o tempo para refletir, que é o real motivo de sua produção. Claro, ainda há muito que se discutir e acredito que por essa mesma razão tenham deixado o capítulo final em aberto, possibilitando uma continuação.

E caso você ainda esteja se perguntando porque esta resenha veio parar num blog de Direito, eis aqui sua resposta: a série é interessante justamente por ilustrar a importância das conquistas jurídicas femininas ao longo do Século XX e XXI, bem como para refletir sobre sua aplicabilidade. Aproveito o momento para deixar mais uma pergunta: apenas a criação de normas tem sido eficaz no combate à discriminação das mulheres, ou há algo a mais que precisa ser feito neste sentido?

Por fim: mulheres, ao assistir a série, pensem nos seus direitos, nas lutas das nossas antepassadas e em como podemos lutar para conquistar a real paridade de gêneros. Pensem na união feminina, em como uma pode ajudar a outra, ao invés de apontar os dedos umas para as outras. Homens assistam com suas namoradas, amigas, sozinhos. Reflitam sobre o machismo implícito em suas condutas do dia a dia e em como isso afeta não só a elas, mas a vocês mesmos. Não tenham medo de “passar vergonha” por assistir uma “série de menininha” – isso é só mais uma consequência do machismo!

** Giovanna Maciel é acadêmica do nono período de Direito do UNICURITIBA e integra a equipe editorial do Blog UNICURITIBA Fala Direito, Projeto de Extensão coordenado pela Profa. Michele Hastreiter. 
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01/03/2016

A Tomada de Decisão Apoiada e o Direito Sucessório

O estudo do Direito de Família sempre se desenvolveu nas clássicas dimensões do direito matrimonial e convivencial, do direito parental e do direito assistencial ou protetiva, compondo os títulos I a IV, do Livro IV, da Parte Especial do Código Civil em vigor. A par do texto codificado, uma torrencial legislação extravagante atualizadora e dinamizadora desse ramo do Direito, na compreensão da evolução pessoal e social do Homem.

Agora e outra vez, uma nova lei – com vigência desde o dia 3 de janeiro do corrente ano – promove significativas alterações no Código Civil de 2002 e nele introduz inovador capítulo no derradeiro título do Livro de Família, acrescentando após os institutos da Tutela (Cap. I) e da Curatela (Cap. II) o Da Tomada de Decisão Apoiada (Cap. III). Trata-se da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, publicada oficialmente no dia imediato, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Pessoa com deficiência, define a lei, é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Seu artigo 115 altera a denominação do atual Título IV, do Livro da Família, que passa a viger sob a rubrica “Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada” e seu artigo 116 introduz capítulo inédito, que contempla novo instituto, o “Da Tomada de Decisão Apoiada”.

Inaugurando esse novo capítulo, o artigo 1.783-A conceitua o modelo: “A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.” Seu paradigma mais próximo é o artigo 43 do Novo Código Civil e Comercial argentino, que assim conceitua o novel instituto, em tradução livre do Autor: “Entende-se por apoio qualquer medida de caráter judicial ou extrajudicial que facilite à pessoa que o necessite a tomada de decisões para dirigir sua pessoa, administrar seus bens e celebrar atos jurídicos em geral.” Sua função precípua é promover a autonomia, facilitar a comunicação, a compreensão e a manifestação da vontade da pessoa com deficiência para exercer seus direitos.

Anote-se desde logo que a Tomada de Decisão Apoiada afasta a designação de curador. E por isso distingue-se dos demais institutos protetivos da pessoa, seja por sua pouca idade (tutela) ou por decreto de sua interdição (curatela), pois objetiva não a proteção da pessoa, mas a promoção de todos os seus direitos como pessoa. Diferentemente, então, da tutela e da curatela, a prestação de apoio tem por fim promover o exercício pessoal da capacidade jurídica pelo próprio afetado. Na Tomada de Decisão Apoiada a pessoa conserva sua capacidade de fato sem limitações ou impedimentos, autodeterminando-se. Portanto, a Tomada de Decisão Apoiada não é forma de interdição, pois preserva a vontade da pessoa, agindo os apoiadores complementarmente ao exercício da capacidade da pessoa. Ombreando com Nelson Rosenvald, “o apoio é uma medida de natureza ortopédica, jamais amputativa de direitos.” ²

Também não se confunde nem se substitui – como se poderia imaginar - pela figura do mandato para alcançar os mesmos objetivos, pois o mandatário não age em conjunto com o mandante, mas em nome dele. Na Tomada de Decisão Apoiada o beneficiário não corre o risco da inexecução do mandato ou de sua má execução, pois os apoiadores sofrem rigorosa e severa fiscalização do Juiz e do Ministério Público.

Ademais, o mandato cessa com a morte ou a interdição do mandante, ato judicial de proibição, vedação ou privação para execução de certos atos, manifestamente incompatível com a figura da Tomada de Decisão Apoiada.

A disciplinação legal do instituto, extremada nos onze parágrafos do novo artigo 1.783-A, do Código Civil, insere os apoiadores (com o mister de proteção) na realização das concretas e efetivas necessidades e interesses do beneficiário, nos limites do termo de apoio formulado em juízo (§ 1º). Para os demais atos aí não incluídos, não necessitará do auxílio dos apoiadores. Nessa linha inclusiva da lei, a preservação da capacidade do beneficiário vem contemplada expressamente no artigo 6º da Lei: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”, reconhecendo-lhe igualdade perante a lei: “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.” Desse modo, em não havendo reservas no termo de apoio formulado em juízo (§§ 1º e 4º), o beneficiário do modelo pode livremente testar, pois imune à interdição, conservando assim sua capacidade plena de se expressar e fazer-se compreender. A situação (Tomada de Decisão Apoiada) valida o ato de disposição de última vontade, não discriminando o beneficiário da proibição do artigo 1.860 do Código Civil. Não mais sendo considerada a pessoa com deficiência absolutamente incapaz, pela revogação dos incisos do art. 3º do Código Civil em vigor, mantendo como tal apenas os menores de 16 anos, é forçoso concluir que inexiste no direito brasileiro maior incapaz. Na mesma toada, deixaram de ser relativamente incapazes “os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” (art. 4º, EPD). Em resumo: o portador de transtorno mental, que sempre foi considerado incapaz, com a nova lei passa a ser plenamente capaz. Essa é a regra. Sendo assim, ostenta plena capacidade ativa para testar.

Vencida a questão da capacidade testamentária ativa do beneficiário da nova figura, outra se apresenta para o debate: a da incapacidade para receber herança ou legado (CC/2002, art. 1.801, incs. I a IV) das pessoas eleitas pela pessoa com deficiência, os apoiadores, incluídas na proibição legal, enquanto fornecem elementos e informações necessários para que o beneficiário da medida possa realizar ato da vida civil? A resposta parece ser afirmativa em se considerando que a pessoa com
deficiência exerce seus direitos em igualdade de condições com as demais pessoas (no plano inclusivo da lei). A símile, tornam-se os apoiadores incapazes de receber herança ou legado, não porque escreveram a rogo o testamento da pessoa que devem apoiar, ou lhe serviram de testemunhas, mas em vista da situação especial que ocupam relativamente à pessoa do testador. Independentemente ou não de previsão no termo apresentado ao pronunciamento sobre o pedido de Tomada de Decisão Apoiada.

A plena e efetiva igualdade no exercício da capacidade jurídica da pessoa com deficiência com as demais pessoas, assegurada pela nova lei, além das questões acima propostas, outras ainda ensejarão inúmeros debates na doutrina e na jurisprudência para demonstrar sua efetividade, indispensáveis ao reconhecimento desse novo modelo social, especialmente no plano da teoria das incapacidades. Só o tempo se encarregará disso.

WALDYR GRISARD FILHO¹

¹ Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor
Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito do UNICURITIBA. Membro Efetivo do Instituto dos
Advogados do Paraná. Sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM – e
Presidente de sua Comissão de Ensino Jurídico de Família. Advogado e Consultor em Curitiba.

² ROSENVALD, Nelson. A Tomada de Decisão Apoiada – Primeiras Linhas Sobre um Novo Modelo Jurídico Promocional da Pessoa com Deficiência. In: Revista IBDFAM Famílias e Sucessões, vol. 10 – jul/ago. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 11-19.

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