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27/03/2021

Em pauta: O encarceramento feminino no Brasil

Por Rafaella Pacheco.


“Nunca se esqueça que basta uma crise política,
econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres
sejam questionados. Esses direitos não são permanentes.
Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
[Simone Beauvoir]
 

           Certa vez, passando pela frente de um sebo, o livro Prisioneiras de Drauzio Varella me chamou até ele. Levei essa conversa para casa, pois havia recentemente lido Quarto de Despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, e a temática sobre as condições de vidas femininas no Brasil foi cada vez mais crescente em meu repertório.

           Carolina, na década de 1950, compartilhou em sua obra seus relatos como mulher, negra, catadora de papel, da favela e as situações que viveu, enfrentou, bem como, suas indagações e reflexões diante do difícil cenário político, econômico e opressor que vivera. Por meio de uma identidade literária única e íntima, em seu diário cultivado por anos a fio na esperança de ser publicado um dia, nós temos o retrato de uma mulher que continuamente afirmava viver num cômodo da cidade destinado aos dejetos, o quarto de despejo da sociedade paulistana: a favela.

            Já em Prisioneiras de Varella não encontramos mais um cômodo, em que o que não se quer ver é fechado num quarto (que poderíamos situar geograficamente naquele quartinho minúsculo que está para além da área de serviço) e que é aberto com o raiar do sol para a manutenção dos demais cômodos da casa. A obra de Drauzio nos apresenta o que está trancado para o lado de fora, à margem e inacessível a casa: a penitenciária feminina. E aqui, determinamos em específico as penitenciárias femininas pois , como o médico e escritor bem pontuou em sua experiência enquanto observador da realidade daquele espaço, as mulheres praticamente não recebem visitas. Logo, aqueles que residem na casa, mesmo que no quarto de despejo, não levam um pedaço do lar para as mulheres em cárcere. O afeto não chega até elas, elas são esquecidas e rejeitadas. Já em penitenciárias masculinas o dia de visitas é contemplado por filas enormes de mulheres ansiosas para ver seus filhos e esposos.

          Neste mês de março o documentário Flores do Cárcere dirigido pela cineasta Barbara Cunha foi lançado na plataforma digital Now. E, assim como em Prisioneiras, denuncia a realidade por trás das grades das penitenciárias femininas. Cenas de precarização da vida da mulher em cárcere são apresentadas através dos relatos das experiências vividas pelas ex-detentas. O documentário além de retratar o interior do cárcere, também apresenta as dificuldades vividas na reinserção social pós privação da liberdade. E o que vemos é o peso da desigualdade de gênero quando se trata do acolhimento dessas mulheres durante o cumprimento de pena e depois dele.

        Conforme a segunda edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres, de 2018, dos doze países com maior população prisional feminina do mundo, o Brasil ocupava o quarto lugar com 42.355 mulheres privadas de liberdade, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia e China. O estado de São Paulo possui a maior concentração de mulheres privadas de liberdade (15.104), seguido de Minas Gerais (3.279) e Paraná (3.251).

Foi analisada também a evolução da taxa de aprisionamento feminino num lapso de tempo de 16 anos, referente a 2000 a 2016. Enquanto os Estados Unidos havia aumentado sua população prisional feminina em 18%, o Brasil, neste mesmo período havia aumentado 455%. Além disso, observou-se que a maior parte dos estabelecimentos penais são projetados para o público masculino. Dos 1449 existentes apenas 7% dos estabelecimentos penais são destinadas ao público feminino e 16% caracterizam-se enquanto mistos pois possuem alas/celas específicas para o cumprimento de penas privativas de liberdade de mulheres.

Avaliou-se a média de visitas sociais por pessoa privada de liberdade durante o primeiro semestre de 2016, e foi constatado que um homem em regime fechado recebe em média 7,8 visitas ao longo do semestre, enquanto em estabelecimentos femininos e mistos uma mulher privada de liberdade recebe em média 5,9. Nos estados do Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte a taxa de visitação para homens é cinco vezes maior que para mulheres.

É precária também a realidade das gestantes e lactantes em cárcere, sendo que apenas 55 unidades penais de todo o país declararam possuir cela ou dormitório para gestantes. E para em relação ao acompanhamento de seus filhos ao longo da amamentação durante o cumprimento de suas penas, apenas 14% das unidades femininas ou mistas possuem berçário ou centro de referência materno-infantil (para crianças de até 2 anos) e apenas 3% das unidades prisionais possuem creche para crianças acima de 2 anos.

Identificou-se nesta pesquisa sobre a população prisional feminina que 50% é composta por jovens de até 29 anos e 45% não concluíram o ensino fundamental e 17% não terminaram o ensino médio. Além disso, destaca-se o racismo estrutural presente no encarceramento feminino ao observarmos o fato de que 62% das mulheres privadas de liberdade no Brasil são negras e 37% brancas.

 

Ao examinar a conjunção social da maioria das mulheres latinas, percebe-se que elas estão imersas no constante agravamento da crise econômica e social que os seus países enfrentam. As dificuldades que sofrem, como mães solteiras, sozinhas, sem escolaridade e emprego formal, acarretam saídas que, por vezes, se revelam únicas, como o tráfico de drogas. Adentrando-se nessa realidade, vê-se ainda que a sociedade patriarcal estabelece uma hierarquia, cujo lugar de ocupação feminino está em posições mais baixas que as dos homens. Inclusive, por esses motivos, ficam mais expostas ao flagrante, sendo seus papéis, conforme exposto anteriormente, secundários ou subordinados, conhecidos como “vapor” ou “bucha”. (REZENDE; OSÓRIO, 2020, p. 13)

Corroborando com a pesquisa de Rezende e Osório sobre o encarceramento feminino, o INFOPED Mulheres apresentou os dados de distribuição de crimes tentados/consumados por tipo penal que levaram ao cárcere mães e esposas, constatando que a massiva maioria foi detida por envolvimento com o tráfico, flagranteadas enquanto “vapor” ou “bucha”, ou seja, enquanto cúmplices.


           Rezende e Osório também destacaram que grande parte dessas mulheres privadas de liberdade entraram para o tráfico devido seus envolvimentos com traficantes. Tal relacionamento implica em fidelidade e subordinação, sendo o dever delas proteger e manterem o vínculo estabelecido.


Esse envolvimento é conhecido popularmente como “amor bandido”, que é uma das razões para o encarceramento feminino por drogas. Um dos reflexos desse amor é percebido, ao analisar a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na qual há um considerável número de mulheres condenadas que tenta adentrar presídios masculinos com drogas. (REZENDO; OSÓRIO, 2020, p. 13)

Na obra Prisioneiras, Drauzio percebeu com pesar essa realidade e em vários relatos das detentas. A presença de uma figura masculina em suas vidas que as inseriu nas drogas e no tráfico é um contexto recorrente que ecoa das celas. Para Varella os efeitos e desdobramentos do tráfico de drogas na sociedade e precisamente sobre inchaço populacional nos presídios são questões de saúde pública e não propriamente de segurança pública.

     Mencionamos no Toga News desta semana sobre a cultura do encarceramento feminino e a necessidade de se combater o punitivismo e a misoginia que ainda permeia nossa jurisprudência afetando consideravelmente o agravamento populacional no sistema carcerário, bem como, promovendo a manutenção das desigualdades de gênero e social enfrentadas pelas famílias das camadas mais vulneráveis da sociedade.

          Destacamos novamente a pesquisa realizada pela Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, entre 2019 e 2020, de nome “Mulheres nas audiências de custódia no Rio de Janeiro”. Apresentando dados alarmantes a respeito da quantidade de mulheres que poderiam estar em liberdade provisória, mas permanecem em privação de liberdade por determinação do juiz. Em cada quatro mulheres presas em flagrante no estado do Rio de Janeiro ao menos uma preenche todos os critérios para responder em liberdade, e estes são ignorados. Os dados foram apresentados no início deste mês de março no evento "Encarceramento feminino em perspectiva: 10 anos das regras de Bangkok" (clique aqui para assistir ao evento).

         Em vista disso, reforçamos as palavras de Beauvoir citadas no início do texto, uma vez que ser mulher na sociedade em que vivemos por si só é uma luta diária. E as mulheres que possuem o direito de liberdade ceifado pelo sistema jurisdicional para o cumprimento de suas penas, estas se encontram em maior risco. O cárcere em nosso país não contribui em nada para o reajuste e reinserção de um indivíduo na sociedade, o retrato de nossos presídios são do cumprimento de pena enquanto punitivismo, tortura e vingança. Quando o único direito do qual a pessoa em conflito com a lei deveria ter falta é a de liberdade, os demais direitos fundamentais, principalmente a dignidade humana, não deveriam por hipótese alguma ser violados pelo Estado.  

 

REFERÊNCIAS:

AZENHA, Manuela. Como a Covid-19 tem ecoado nas penitenciárias femininas no estado de SP. São Paulo: Editora Globo, Rev. Marie Claire, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/05/como-covid-19-tem-ecoado-nas-penitenciarias-femininas-no-estado-de-sp.html>. Acesso em: 18.03.2021.

DOCUMENTÁRIO “Flores do Cárcere” aborda o encarceramento feminino com histórias reais. Rio de Janeiro: EBC Radios, 2021. Disponível em: <https://radios.ebc.com.br/arte-clube/2021/03/documentario-flores-do-carcere-aborda-o-encarceramento-feminino-com-historias>. Acesso em 21.03.2020.

ITO, Carol. A pandemia nas prisões femininas. São Paulo: Revista Trip, 07 mai. 2020. Acesso em: < https://revistatrip.uol.com.br/tpm/a-pandemia-nas-prisoes-femininas>. Acesso em: 18.03.2021.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

REZENDE, G. A. de; OSÓRIO, F. C. Encarceramento feminino: da (in)visibilidade à garantia de direitos. Rio Grande do Sul: PUCRS, 2020. Disponível em: <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2020/08/giullia_rezende.pdf>. Acesso em: 21.03.2020.

SANTOS, Thandara (Org.). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível em: <https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf>. Acesso em: 22.03.2021.

VARELLA, Dráuzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

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07/10/2020

Me indica um filme: The Social Dilemma

 

Por Rafaella Pacheco. 

“Dataísmo é niilismo. Ele renuncia inteiramente ao sentido. Dados e números são aditivos, não narrativos. O sentido, ao contrário, baseia-se na narração. Os dados preenchem o vazio do sentido.” Byung-Chul Han, 2018.

            O docudrama norte-americano The Social Dilemma (O Dilema das Redes) foi lançado pela plataforma Netflix em setembro deste ano e, além de ter sido taxado por Mark Zuckerberg de sensacionalista, tem promovido algumas reações aos que o assistiram, em conversas com amigos e em grupos de WhatsApp. A descrição contida na plataforma de streaming enfatiza a proposta do filme de alertar sobre os impactos devastadores das redes sociais sobre a democracia e sobre a humanidade. E sim, ele alerta sobre pontos já conhecidos acerca das redes sociais, mas nada que promova uma grande transformação no agir humano. Até porque é pequeno o estímulo por parte desta produção audiovisual para nos desconectarmos por completo das redes sociais (afinal, ela mesma veicula-se numa plataforma de streaming mundialmente conhecida que chegou a grande maioria dos espectadores através de uma massiva propaganda a respeito). Nem mesmo o medo da vigilância ou a consciência da manipulação contínua são suficientes para a maioria dos usuários das mídias sociais mencionadas no filme deletarem suas contas.

 Sobre a película

As questões levantadas em The Social Dilemma, dirigido por Jeff Orlowski, são necessárias e a película funciona muito bem como uma introdução ao debate sobre o papel e os efeitos da tecnologia em nossas vidas. Mas a mensagem do docudrama fica apenas na superfície, limitando-se às falas de profissionais do meio que afirmam que as redes sociais fazem mal e transformam o sujeito em um produto. O que não é uma grande novidade se voltarmos nossos olhos aos teóricos críticos da Escola de Frankfurt, por exemplo.

É um filme com uma fórmula já conhecida, em que intercala depoimentos de especialistas em tecnologia, engenheiros e idealizadores do Google, Facebook, Pinterest, Youtube, Instagram e Twitter, com o drama de uma família de classe média em que os filhos não conseguem desconectar de seus aparelhos de celular e têm suas inseguranças potencializadas pela rede, de modo a reforçar a mensagem destes profissionais entrevistados.

Os pontos que mais norteiam é a relação entre saúde mental e o uso das mídias sociais, destacando como foram desenvolvidos algoritmos de alienação contínua nas telas de nossos celulares e computadores. Nós manipulamos a tecnologia para benefício próprio ou somos manipulados através dela (e não por ela) para atender demandas políticas e econômicas específicas? Infelizmente a película fomenta tais questões, mas não as trabalha de maneira profunda que este tema demanda. E o entendimento sobre o poder disciplinador em Michel Foucault e a análise sobre a psicopolítica neoliberal de Byung-Chul Han são fundamentais a este debate.

 Sobre o não dito

A palavra dilema pressupõe duas premissas contrárias e mutuamente excludentes. Mas, ao atentarmos à palavra central que encabeça o título do filme, ao término dele, percebemos ser uma escolha terminológica inapropriada, pois não se trata de um dilema e nem nos é apresentado como uma escolha sobre as redes sociais (como, por exemplo, viver sem elas ou sujeitar-se a elas).

O que fica claro aos olhos atentos é que tais redes são ferramentas úteis – no que tange a facilidade e agilidade de trocas de informações. Porém, são projetadas para nos entreter, de tal modo que, possam mapear nossas ações e desejos e então nos catalogar e nos transformar em um produto deste mercado que nos molda – potencializando vícios e modulando ideias – para atender às necessidades dos empreendedores e empresários deste mercado muito especifico de mapeamento e manipulação de intenções humanas.

Portanto, o que temos para além da superfície de The Social Dilemma é uma denúncia de que vivemos num processo de coisificação natural do capitalismo em que um seleto grupo tira vantagem de uma grande, e porque não dizer massiva, quantidade de pessoas. Logo, é notório, nesta equação que o bônus é todo desse seleto grupo de negociantes, enquanto o ônus é de grande parte da população global usuária de redes sociais. Demonstrando que não há dilema nem para o seleto grupo detentor dos dados e do poder da manipulação tecnológica da comunicação e da informação; nem mesmo a grande massa de corpos dóceis que está imersa na dependência de programas e aplicativos.

Alguns exemplos simples de como a tecnologia pode facilitar e ao mesmo tempo criar dependências nada saudáveis ao desenvolvimento de nosso intelecto são reveladas em pequenos questionamentos, como: quantos professores ao corrigirem trabalhos manuscritos de seus alunos perceberam que estes não fazem ideia de como separar sílabas ou mesmo acentuar palavras, pois digitalmente este artificio é dispensável e o corretor ortográfico existe para isso. Ou, você sabe de cabeça o telefone das cinco pessoas mais próximas de você para o caso de uma emergência em que você não tenha o seu celular em mãos? E o Google virou seu oráculo que tudo responde e tudo encontra e o site dos sinônimos seu fiel companheiro de redação?

 Sobre a coisificação dos indivíduos e dos afetos

Em Modern Times (Tempos Modernos), de 1936, Chaplin já nos alertava sobre a transformação do homem em engrenagem dentro de um sistema voltado para metas e lucros. The Social Dilemma, de maneira menos poética, apresenta que a importância de permanecermos conectados à internet reside, não apenas em sermos inundados por propagandas e moldados aos interesses das startups e empresas de tecnologia do Vale do Silício, mas para mantermos outros de nós também conectados, em rede. Sim, o sistema foi feito para nos prendermos a ele, mas se você não curte, não comenta, não publica nada, ou mesmo não tem uma conta na plataforma x, isso já dificulta parte do domínio sobre você.

 O regime neoliberal emprega emoções como recursos para alcançar mais produtividade e desempenho. A partir de certo nível de produção, a racionalidade, que representa o médium da sociedade disciplinar, atinge seus limites. [...] De repente, a racionalidade atua de forma rígida e inflexível. Em seu lugar entra em cena a emocionalidade, que está associada ao sentimento de liberdade que acompanha o livre desdobramento individual. Ser livre significa deixar suas emoções correrem livres. O capitalismo da emoção faz uso da liberdade. A emoção é celebrada como expressão da subjetividade livre. A técnica neoliberal do poder explora essa subjetividade livre. (HAN, 2018, p. 65)

 O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua pequena, porém feroz, obra Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder[1] destinou um capítulo para refletir acerca do capitalismo das emoções, que neste debate é essencial. O pensador distinguiu sentimentos, emoções (e afetos) e disposição para demonstrar seus graus de profundidade no ser e suscetibilidade em termos de manipulação e comoção social. E, em sua reflexão, constatou que a circulação de emoções e afetos são mais fáceis de moldar na sociedade, por serem subjetivas, não-narráveis (por isso frases isoladas de teor provocativo causam um efeito imediato), fugaz, dinâmicas e situacionais, e desta forma são favorecida pela comunicação digital que possui descarga imediata. Logo, as emoções e afetos são mais fáceis de suscitar e induzir ações impulsivas nos indivíduos, e por consequência, na sociedade.

 [...] as emoções são controladas pelo sistema límbico, no qual também se assentam os impulsos. Eles formam o nível pré-reflexivo, semiconsciente e corporalmente impulsivo da ação, do qual frequentemente não se tem consciência de forma expressa. A psicopolítica neoliberal se ocupa das emoções para influenciar ações sobre esse nível pré-reflexivo. Através da emoção, as pessoas são profundamente atingidas. Assim, ela representa um meio muito eficiente de controle psicopolítico do indivíduo. (HAN, 2018, p. 68)

 Dentro de tais considerações, explica-se a insurgência dos outsiders detentores de discursos autoritários e/ou de ódio no cenário político de países democráticos, gerando insegurança e instabilidades aos pilares da democracia. Infelizmente, ao olharmos para a atual conjuntura, perceberemos que a verdade, outrora perdida, dissolveu-se por completo em Fake News, e processos de massificação hoje são confundidos com identificação coletiva.

 Sobre o poder disciplinar

 A vigilância digital é mais eficiente porque é aperspectivista. Ela é livre de limitações perspectivistas que são características da óptica analógica. A óptica digital possibilita a vigilância a partir de qualquer ângulo. Assim, elimina pontos cegos. Em contraste com a óptica analógica e perspectivista, a óptica digital pode espiar até a psique. (HAN, 2018, p. 78)

 Por fim, é crucial voltarmos ao pensamento de Michel Foucault para uma maior compreensão acerca da sistemática de dominação e sujeição que o docudrama ilustra em sua narrativa. O filósofo francês entendia o poder enquanto algo que funciona em cadeia, ou seja, enquanto algo que se exerce em rede. Aqui enfatiza-se o papel dos usuários de mídias sociais para que essa estrutura de servidão se mantenha ativa. Pois, é nessas cadeias de sujeição e opressão que o poder circula, sendo que, um mesmo sujeito pode dominar e ser oprimido ao mesmo tempo dentro das relações que estabelece no tecido social.

Partindo dessa compreensão basilar sobre as relações de poder, podemos então adentrar no entendimento de Foucault acerca do poder disciplinar, para visualizarmos a extensão da problemática que vemos na ponta do iceberg apresentado em The Social Dillema.

A dominação utiliza-se do poder disciplinar – que é uma modalidade de poder sobre os corpos, ações e a própria constituição do indivíduo –, para se manifestar. E o pensador francês determinou quatro ordens de ações disciplinadoras que, através de um processo de adestramento, objetivam a constituição de corpos dóceis[2], sendo elas: a celular, dada pela repartição espacial; a genética, pela acumulação do tempo; a orgânica, através da codificação das atividades; e a combinatória, compreendida pela composição das forças.[3]

            Estas ações se realizam por meio de três instrumentais, que são entendidos enquanto recursos para o bom adestramento: a vigilância hierárquica (através de nossos aparelhos que viraram o panóptico da contemporaneidade); a sanção normalizadora (dada por pequenos mecanismos penais que instituem um processo de normalização, a exemplo: a exclusão daqueles que não estão conectados); e o exame (compreende a catalogação do indivíduo afim de controlá-lo e vigiá-lo; é a base da big data, que permite qualificar, classificar e punir).

            Portanto, o capitalismo da vigilância funda-se no que Foucault denominou de saber-poder – essencial para se conhecer o indivíduo e então melhor discipliná-lo – e a disciplina – que mascara o poder deixando a mostra seus súditos, os rostos na timeline, que transforma os indivíduos em produtos, objetos de poder.

“Enquanto o poder soberano ostentava o direito de matar, o biopoder, da era disciplinar, 
 deixam viver para investirem sobre a vida.”[4]

 



[1] HAN, Byung-Chu. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.

[2] O homem é o principal alvo e objeto do poder, que tem como meta, a tarefa de incorporar nos corpos características de docilidade. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.” (FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 126).

[3] MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro, Guanabara-Koogan, s/d, p. 67-68.

[4] MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 81.

 

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29/04/2020

Me indica uma série: Os Julgamentos de Gabriel Fernandez





"É normal que as mães batam nos filhos?"
“É normal bater com cinto?”
“É normal sangrar?”

Gabriel Fernandez tinha apenas 08 anos quando foi torturado e morto pela sua mãe e padrasto, em 2013. Meses antes o menino tinha acionado um “alerta” em sua professora ao fazer os questionamentos acima e, assustada com o que Gabriel poderia estar passando, ela recorreu ao auxílio da Assistência Social.
          Mais uma vez, a Netflix investe em uma minissérie, com seis episódios, demonstrando um relato completo e documentado do que aconteceu com esse menino que morava em Palmdale, norte de Los Angeles, EUA. Em “The Trials of Gabriel Fernandez” (“Os Julgamentos de Gabriel Fernandez”), além de contemplar a série de abusos sofridos pelo garoto durante oito (longos) meses, destaca as falhas de um sistema que não evitou o pior resultado.
Esse caso ficou famoso pela decisão sem precedentes nos Estados Unidos, que acarretou no julgamento de Pearl Fernandez (mãe), Isauro Aguirre (padrasto) – pela tortura e homicídio – e quatro assistentes sociais, pelo abuso infantil e falsificação de registros públicos. Isauro foi condenado à morte e aguarda execução na prisão de San Quentin, na Califórnia; Pearl decidiu se declarar culpada para evitar um julgamento e a pena de morte. Ela foi condenada à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. Já os assistentes sociais não chegaram a ser julgados, tendo acusações arquivadas.
          Responsável pelo caso, o Promotor de Justiça Jon Hatami atua como fio condutor do documentário, mostrando seu lado pessoal além de detalhes do caso. Além disso, os episódios contam com testemunhos de familiares e conhecidos do Gabriel, Pearl e Isauro, paramédicos, assistentes sociais e policiais responsáveis pelo caso.
Segundo os paramédicos que atenderam a ocorrência que levou o menino a óbito, havia diversas contusões na cabeça, costelas quebradas, pele queimada com cinzas de cigarro e mãos inchadas. Também, conforme o médico legista que realizou a autópsia, Gabriel estava com o estomago cheio de areia e fezes de gato.
Em declaração no Tribunal à portas fechadas, os irmãos da criança relataram que Pearl e Isauro costumavam o trancar em uma caixa de madeira, sem comida e sem o deixar ir ao banheiro, além dos espancamentos e insinuações de o garoto seria homossexual.
Durante oito meses, Gabriel viveu um verdadeiro pesadelo e era agredido constantemente pela sua mãe. Desesperado pela situação que estava vivendo em casa e sem saber para quem pedir ajuda, acabou contando tudo que estava acontecendo para sua professora Jennifer Garcia, que imediatamente tomou providências. 
Mesmo após a denúncia, Gabriel continuou sendo violentado. De acordo com colegas e a professora, constantemente a criança aparecia com o couro cabeludo machucado, lábios inchados, feridas no rosto e perfurações no corpo ocasionadas por tiros de pistola de ar comprimido.
Mais uma vez Garcia foi até as autoridades, e desta vez teve ajuda de familiares do garoto, que também estavam preocupados. Poucos dias antes do crime, policiais chegaram a visitar o local, mas nada fizeram.
Em sua sentença, o juiz Geoge L. Lomeli não hesitou em considerar os dois como culpados. “A vossa conduta foi horrenda e desumana. Até podia dizer que foi animalesca, mas isso seria errado porque até os animais sabem cuidar das suas crias ao ponto de sacrificarem as suas próprias vidas”, declarou.
Ao contrário de “Olhos que Condenam”, a falha aqui não foi do Judiciário, e sim de toda a estrutura que o antecede, em especial os assistentes sociais e a polícia, que negligenciaram as inúmeras denúncias realizadas pela professora e parentes do menino, fazendo com que o resultado fosse fatal.
Por fim, a minissérie apresenta outros casos similares, posteriores ao julgamento, demonstrando que o sistema continua falho e vidas continuam sendo roubadas ante a negligência Estatal e crueldade humana.
São cenas duras, relatos dolorosos e imagens extraídas do julgamento real, indo além de mera simulação dos fatos. Precisa ter estomago e sensibilidade para assistir os seis episódios e abrir os olhos para evitar que, aquilo que aconteceu com Gabriel, ocorra também com outras crianças.



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07/04/2020

Me indica um filme: O Julgamento de Nuremberg



Por Ricardo Passos e Karen Arçamenia*


Trate-se de um filme que remonta a história dos acontecimentos pós segunda guerra mundial, em que os países aliados formaram um tribunal militar internacional a fim de julgar, imparcialmente, 24 comandantes nazistas. Nuremberg foi a cidade alemã que contemplou o julgamento, e isso ocorreu em função dela ter se tornado, durante o período da ascensão nazista, a sede oficial dos Comícios do Partido Nazi - as reuniões de Nuremberg. Nesse cenário, os quatro países aliados formaram uma corte e garantiram o direito dos acusados à defesa. Certamente, os dirigentes nazistas tinham ciência de que seriam condenados, ainda assim articularam-se com o intuito de promover um debate que gerasse reflexão e, talvez, hesitação por parte da promotoria.


              Dos 24 indiciados, apenas 22 participaram, de fato, do julgamento, posto que um deles cometeu suicídio e o outro foi dispensado em virtude de sua saúde debilitada. As discussões, até então inéditas, abrangeram questões que envolviam direito e moralidade. O promotor-chefe, Robert H. Jackson, argumentou que a Alemanha havia promovido uma conspiração de ordem global, de modo que atrocidades como crimes de guerra e crimes contra a humanidade deviam ser consideradas pelos juízes. Essa argumentação, de certa forma, reacendeu o conceito de jusnaturalismo, uma vez que a ideia de moral, nesse caso, se associa necessariamente ao sistema jurídico. O direito à vida, por exemplo, devia ser reconsiderado dentro de um ordenamento, a fim da universalização de tal lei de cunho naturalista. 

No entanto, respaldado justamente na ideia do juspositivismo, a defesa argumentava que os dirigentes nazistas apenas cumpriam as normas que lhes eram atribuídas, isto é, o ordenamento jurídico era válido e tinha a aprovação da população alemã dentro de seu território. Hermann Göering, que dominava a retórica, se baseou na ideia de que a lei devia se impor. Eximiu-se da culpa agarrado nessa argumentação, como se a moral, que não estava imbuída na lei vigente, não tivesse importância nesse caso. Aqui vale ressaltar a máxima nullum crimen nulla poena sine lege, já que se deve, segundo essa defesa, garantir que exista uma lei previamente estabelecida para que se possa haver justiça no julgamento, e, como essa lei não existia, o que se seguiam eram as leis vigentes naquele contexto.


              Em face dessa argumentação, Jackson encontrou dificuldades em promover uma antítese. No entanto, foi amparado por uma enormidade de provas que acusavam e contradiziam os próprios comandantes nazistas. Ainda assim, com vistas ao conceito positivista, do direito objetivo, a tentativa de acusação culminou gerando um embate que contribuiu para o surgimento da corrente pós positivista, cuja finalidade consiste em imputar, novamente, valor moral ao direito, sem deixar de considerar a objetividade do sistema normativo. Pode-se concluir que essa corrente teve êxito, posto que o alto escalão nazista foi condenado pelos crimes cometidos.


              O filme apresenta a ideia do julgamento dos vencedores, de modo a provocar reflexões sobre questões inéditas, como a formação de órgãos internacionais. Por outro lado, uma vez que se foi instituído um tribunal de exceção (constituído à posteriori e exclusivamente para aquele fim), o próprio juízo natural que diz respeito aos direitos fundamentais de defesa, estavam sendo violados pela formação desse julgamento. Os réus não puderam escolher os advogados, já que os países aliados ditaram as regras de todo esse processo. 


              Fica ainda, nesse sentido, a impressão não muito bem definida acerca da legitimidade de um julgamento desse porte, ainda que, a qualquer olho humano, as imagens promovidas pelos nazistas tenham sido assustadoras. Reflete-se, em todo caso, sobre os direitos fundamentais dos acusados, do mesmo modo que estes renegaram os direitos fundamentais de suas vítimas. Contudo, a maioria dos comandantes foram condenados, alguns à morte, outros à prisão. Poucos foram absolvidos. E assim, como valor doutrinário, o filme registra o dilema em que se encontraram os envolvidos no tribunal de Nuremberg, no caso inédito em que se pretendeu revestir de legalidade um julgamento através de um sistema pós estabelecido, isto é, que não existia antes da guerra eclodir.

*Ricardo e Karen são alunos do Primeiro Período de Direito do UNICURITIBA. O filme "O Julgamento de Nuremberg" foi trabalhado em sala de aula pela Professora Michele Hastreiter, na disciplina de Teoria do Direito, com o intuito de discutir a superação do positivismo jurídico e a necessidade de resgatar os elementos axiológicos ao Direito. A professora solicitou aos alunos que elaborassem uma resenha crítica do filme. O texto de Ricardo e Karen foi eleito para postagem no Blog.


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22/02/2020

Sugestões para o Carnaval: Dicas de filmes, séries e livros dos blogueiros


Além de estarmos antenados às notícias que ocorreram durante as férias, a nossa equipe aproveitou o descanso para curtir bons livros, filmes e séries. E, não poderíamos deixar de compartilhá-los com vocês.  Por isso, escolhemos seis sugestões de obras instigantes para vocês acompanharem com um balde de pipoca ou, no caso dos livros, com uma bebida quente numa xícara reconfortante.

O CONTO DA AIA (livro)
Apesar de ter ganhado notoriedade apenas recentemente, com o lançamento da série homônima, O Conto da Aia foi escrito em 1985 por Margaret Atwood, claramente inspirada na Revolução Islâmica de 1979. Ao imaginar um país comandado por cristãos radicais, a autora mostra as várias possibilidades de dominação que povos podem sofrer, vez que em momentos de fragilidade, as pessoas tendem a confiar naqueles que trazem as soluções rápidas, mesmo que para isso seja preciso sacrificar um pouco da tão falada liberdade.
O Conto da Aia é uma obra-prima da literatura de ficção científica cuja leitura causa incômodo e desconforto, principalmente por enxergamos nítidos traços de realidade em suas páginas. É uma distopia poderosa para ser lida e assimilada em toda a sua essência, alertas e mensagens.

QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA (livro)
A obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada foi escrita na década de 1950 e trata-se de relatos do cotidiano da catadora de papel Carolina Maria de Jesus em seu diário. Conhecido como literatura-verdade, o livro é de uma profunda honestidade acerca da realidade de sua vida, do contexto social que ela viveu, e sobre a precariedade e isolamento da favela em relação à cidade. Devido a isso, a autora intitulou a favela como o quarto de despejo da cidade, ou seja, uma região abandonada, temida e excluída pela população e pelo Estado.
A obra de Carolina é uma denúncia de um sistema econômico e político falhos, e socialmente excludentes. Além das dificuldades impostas por uma vida repleta de restrições e violações — por ser mulher, negra e moradora da favela —, a fome é o cerne da obra. Caso ainda estivesse viva, gostaria de poder dizer a escritora que, setenta anos após o seu diário, todos possuem uma moradia e alimentação dignas, e que a desigualdade social, o racismo e o machismo acabaram. Mas, infelizmente não é possível dizer à Carolina — uma mulher forte, detentora de uma verdade sincera e olhar lúcido sobre seu entorno — que essas violências à dignidade humana foram vencidas. Hoje ainda temos fome, física e moral.

SEX EDUCATION (série)
E no exato momento em que o governo federal incentiva a abstinência sexual de adolescentes como programa para evitar a gravidez precoce, a dica de série de volta às aulas é uma que não tem medo de falar exatamente sobre sexo: Sex Education.
Produzida no Reino Unido, a série é protagonizada pelo jovem Otis (Asa Butterlfield), que é filho da sexóloga Jean Milburn (Gillian Anderson). O que mais chama a atenção na produção é justamente o enfrentamento de temas que muitas vezes parecem ser tabus na sociedade.
Primeira vez, masturbação, masculinidade tóxica, homossexualidade, relação abusiva, aborto, abuso sexual, sororidade feminina. Todos esses temas fazem parte da adolescência e da juventude e, ao contrário do governo federal, não são deixados de lado em momento algum, fazendo com que o expectador enfrente toda essa realidade de uma forma natural.
As duas temporadas estão disponíveis no catálogo da Netflix e merecem uma chance.

THE PURGE (série)
Distribuída mundialmente pela Amazon Prime a série é baseada na franquia “Uma noite de Crime” (2013-2018), que mostra a autorização do governo estadunidense em liberar para que os cidadãos cometam crimes durante uma noite sem que sejam punidos por isso. Com os EUA em crise, o argumento da “noite do expurgo” é diminuir o número de crimes cometidos, vez que esta seria uma forma de os humanos liberarem seus instintos assassinos durante 12 horas, diminuindo, assim, os crimes no restante do ano. Por óbvio a ideia não dá certo, embora o governo tente vender a imagem de que tudo está dentro dos conformes.
The Purge” tinha como objetivo trazer ao espectador críticas ao governo, bem como demonstrar a decadência norte-americana e falar dos menos favorecidos, das mulheres subjugadas e da divisão de classes. Entretanto, ao invés de focar nisso, acaba focando mais nas histórias de terror da referida noite, esquecendo-se da ideia principal do seriado.

A MENTE DO ASSASSINO: AARON HERNANDEZ (minissérie)
A minissérie da Netflix é divida em três partes, as quais discorrem sobre os crimes envolvendo o ex-jogador da NFL, Aaron Hernandez, explorando as respostas de pessoas próximas e distantes do astro. Ao longo dos episódios, que passam por traços de sua infância e juventude, o público é capaz de perceber uma trágica e horripilante história por trás do então astro de futebol americano.
Com uma narrativa não linear, “A Mente do Assassino” apresenta diversos aspectos da vida de Hernandez, fazendo um verdadeiro suspense e que nos mantém tentando adivinhar o “porquê” da história, através de diferentes perspectivas.

NEGAÇÃO (filme)
Sob a direção de Mick Jackson, o filme Negação foi lançado em 2017, e trata-se de um drama de tribunal, baseado em fatos reais. Como o próprio nome do filme revela, a trama se debruça sobre a negação de David Irving, um autodeclarado historiador, que defendeu veementemente a ideia de que o holocausto não ocorreu. Ele processou por difamação a escritora e pesquisadora Deborah Lipstadt por tê-lo desacreditado enquanto historiador em sua obra.
Muitas questões interessantes para reflexão são apresentadas no filme. Dentre elas, a questão ética no desenvolvimento de uma pesquisa e produção científica, vista principalmente no viés ideológico adotado por Irving, que o levou a distorcer fatos históricos para que corroborassem com sua versão da Segunda Guerra Mundial. Outro ponto pertinente — principalmente aos futuros advogados e juristas —, é o fato de que o longa apresenta o gradual entendimento sobre o sistema processual britânico por Lipstadt. Sendo ela uma historiadora, americana e leiga no mundo jurídico, isso gerou, por vezes, grandes desentendimentos com seus próprios advogados. Pois, as estratégias adotadas por eles em sua defesa, não faziam sentido para ela num primeiro momento. Mas, é um filme interessante tanto para se conhecer uma pincelada desse sistema judiciário britânico, quanto pela forma como os advogados de Lipstadt conduziram o processo e a relação cliente-advogado.

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09/09/2019

Me Indica um Filme: Bacurau, uma terra do Brasil sem lei







Imagine viver em uma cidade onde a lei parece não mais existir. Uma cidade dominada pela falta de água, na qual as pessoas precisam umas das outras em todos os momentos para sobreviver. Bacurau retrata o futuro (mas não tão distante assim) de uma cidade fictícia de mesmo nome, localizada no interior de Pernambuco.
Com uma história bastante brasileira, o filme faz metaforicamente várias críticas à condição de miserabilidade vivida por milhares de pessoas no Nordeste e, ao mesmo tempo, exige uma atenção especial de seu espectador para ‘pegar’ referências que são bastante nossas. Graciliano Ramos, Canudos, Antônio Conselheiro, Lampião...Todos são elementos que de forma não óbvia ajudam a enriquecer a aura da obra.
Temos, por exemplo, o político que só aparece em tempos de eleição, com donativos e uma clara busca pela compra de votos. Temos a prostituição evidenciada como única forma de sobrevivência para algumas pessoas. Temos o posto de saúde que sofre para ter um abastecimento mínimo de medicamentos e vacinas.
Partindo daí, a trama do filme passa a tratar de uma série de assassinatos que passam a ocorrer na pequena cidade. Com um único carro de polícia (que é uma lata velha que nem pode sair do lugar), os moradores passam a tentar descobrir por si só o que está acontecendo. O filme é tenso, misterioso e muitas vezes agoniante, o que nesse caso é ótimo.
Mesmo com nomes importantes do cinema, como Sônia Braga, Bacurau não tem um protagonista definido, o que faz a cidade como um todo ganhar ainda mais importância. É uma aposta no seu povo e na força do coletivo.
Bacurau é uma aula e um filme necessário para o Brasil atual. Questões como xenofobia são bastante presentes, seja aquela de sulistas com nordestinos, seja de estrangeiros com brasileiros.
Dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme é um faroeste que remete a, por exemplo, Quentin Tarantino, mas sem deixar de ser brasileiro em momento algum. Confesso que também lembrei da série britânica Black Mirror ao assistir, com vários momentos de “explodir a cabeça” sobre o que está acontecendo.
O tom político e as várias camadas sociais tratadas são seu maior atrativo para entender, mesmo que de forma exagerada, o Brasil atual. A violência exacerbada e o uso de armas também são elementos que merecem atenção ao acompanhar o desenrolar da história.
Premiado em Cannes, Bacurau já ganhou a atenção do mundo, isso sem deixar de ser Brasil em momento algum.


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26/08/2019

Me indica uma série: Mindhunter e o Direito Penal


Por Giovanna Maciel


          Há pouco, a Netflix lançou a segunda temporada da série “Mindhunter” e, devido a ligação com o direito penalista, não poderíamos deixar de comentá-la aqui!

Para quem não conhece:
          Criado por Jonathan Penhall e com direção de David Fincher, “Mindhunter” é baseado em uma história real e a partir da obra “Mind Hunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit” (ou “Mind Hunter: o primeiro caçador de serial killers americano”). Possui como cenário o final dos anos 70 e acompanha o trabalho de agentes do FBI que atuam na investigação de crimes cometidos por assassinos em série.
          É importante saber que, na época, sequer existia o termo “serial killer”, e os estudos se baseavam em entrevistas, cara a cara, com dezenas de assassinos famosos, para desenvolver técnicas e traçar os perfis de assassinos para, assim, não só prever os próximos passos deles, mas também resolver outros casos a partir de um padrão (ou padrões).
          Ao contrário de outras séries famosas (como Law & Order e Criminal Minds), a produção da Netflix não possui muitas cenas de ação, focando muito mais em diálogos e na psicologia, e explorando comportamentos dos criminosos e dos próprios agentes: Holden Ford (Jonathan Groff), Bill Tench (Holt McCallany) e Wendy Carr (Anna Tory).
          Mesmo sem mostrar as cenas de crime ou fazer flashbacks, a série prende a atenção pelo tom de voz dos criminosos, a naturalidade em que são mostrados e como nos damos conta da potencial crueldade da mente humana.

Segunda temporada:
          Enquanto na primeira temporada o foco era no desenvolvimento de uma técnica, a continuação se preocupa com a sua efetiva aplicação, deixando aquela tensão no ar e criando expectativa no espectador.
          Com a mesma fórmula de diálogos bem construídos, faz discussões extremamente relevantes e pertinentes, em pauta mesmo depois de décadas: homofobia, racismo, opressão, culpa e a inexatidão das contas. Além disso, Honden, Tench e Wendy acabam por perceber que, os mesmos fantasmas encontrados em suas vidas profissionais, também rondam suas vidas pessoais, demonstrando que a realidade das mentes criminosas não está tão distante assim da realidade de qualquer outra pessoa.
          Dentre os casos explorados ao longo dos episódios, o que mais chama atenção e uma série de assassinatos de crianças negras em Atlanta. Além de demonstrar o claro descaso das autoridades para com as comunidades negras, a série retrata a culpa que alguns brancos sentem, levando-os a se verem como “salvadores da pátria”. É ai que entra Ford nessa temporada, que se comove ao ser procurado pelas mães das vítimas. Afinal, afinal, o que o move a querer tanto capturar o assassino das crianças? É a vontade de fazer justiça, o desejo de estudar a mente de mais um serial killer, ou seu senso de auto importância, de se ver – e ser visto – como herói para a comunidade negra que vem perdendo seus filhos de maneira cada vez mais alarmante?

Psicopatas criminais[i]:
         
          Mindhunter demonstra com maestria o perfil dos Psicopatas Criminais: frios, calculistas, sedutores, manipuladores, inescrupulosos e sem remorso do que fazem. Provavelmente, o primeiro caso mais reconhecido no mundo foi o de “Jack, o Estripador” (Londres, 1888), mas não faltam casos recentes, inclusive no Brasil, como o de Tiago Henrique Gomes da Rocha, que confessou ter assassinado em torno de 29 pessoas em Goiás entre 2011 e 2014.
          Todavia, ainda há uma incógnita entre a responsabilidade penal desses indivíduos com doenças e transtornos mentais. Isso porque as decisões quanto à imputabilidade deles não é uníssona, visto que não há exatamente um padrão de avaliação desses homens e mulheres.
Ou seja, ainda há dúvidas entre juristas, psicólogos e psiquiatras quanto a imputabilidade desses sujeitos, não sabendo de devem ser tratados como imputáveis (que entendem completamente o caráter ilícito do crime praticado), inimputáveis (que são inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do crime praticado) ou semi-imputáveis (que não têm plena capacidade para entender o caráter ilícito do ato praticado).
“Mindhunter”, mesmo em um contexto um pouco diferente do atual, nos mostra que, mesmo com evolução dos estudos na área, a mente dos criminosos com distúrbios psicopatas ainda é extremamente difícil de compreender, o que torna igualmente difícil a responsabilização deles pelos atos cometidos. Do mesmo modo, a complexidade do tema instiga pesquisadores a tentar desvendar os mistérios da mente humana e os consequentes comportamentos.


[i] ROSA, Larissa Alves da. KNOPHOLZ, Alexandre. A Responsabilidade Penal do Psicopata. Artigo científico apresentado como requisito para obtenção de nota parcial do Trabalho de Conclusão de Curso do UNICURITIBA, 2019. Disponibilizado pela autora para o Blog Unicuritiba Fala Direito.
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19/08/2019

Me indica um filme: Suffragettes




Por Vitória Farias



Podemos dizer que o século XX representa o nascimento social da mulher, pois foi nessa época que conquistaram o direito ao voto, esse de extrema importância, uma vez que representa o exercício da cidadania. Nesse contexto se passa o filme “As sufragistas”, lançado em 2015 e dirigido pela britânica Sarah Gavron. Conta com a participação de grandes atrizes como Carey Mulligan, Helena Bunham e Meryl Steep, que interpretam mulheres revolucionárias que viveram durante a primeira onda feminista da Inglaterra.

O filme apresenta uma grande crítica ao governo, machista e opressor, desse período histórico. A mulher era inferiorizada e a sociedade excessivamente sexista. Ela era vista como uma propriedade que pertencia e obedecia ao homem. O casamento era a passagem da responsabilidade de cuidar, proteger e, principalmente, chefiar do pai para o marido. As mulheres não tinham independência sobre suas vidas e suas escolhas. Todo o seu salário era entregue ao seu companheiro. Ela não tinha liberdade e muito menos autonomia.

A sociedade como um todo, era submetida a péssimas condições de trabalho: locais fechados, sem equipamentos de segurança e com emissão diária de gases e produtos tóxicos. Mas isso se ampliava ainda mais em relação às mulheres. Suas cargas horárias de trabalho eram extensas e cansativas. Muitas sofriam abuso sexual, verbal e psicológico de homens com cargos superiores. O filme expõe, através da protagonista Maud Watts, que muitas vezes as mulheres grávidas trabalhavam exaustivamente, inclusive na etapa final da gestação e pouco após terem os bebês. Maud afirma que nasceu na fabrica em que trabalha. Começou seu oficio, durante meio período, aos sete e aos doze anos assumiu a mesma carga horaria de todas as outras. O filme representa uma sociedade afastada do humanismo e deixa a pensar quantas outras mulheres não morreram por não aguentar essa carga excessiva.

A política era exercida exclusivamente por homens. E aí surge uma provocação ao assistir ao filme: Os homens poderiam representar as mulheres? Durante o longa, é possível compreender que homens não exprimem as vontades e as necessidades de uma mulher, pois eles não sabem o que elas vivem e como a discriminação as afeta. Afirmo isso, pois, se as representassem, elas ganhariam o mesmo salario que seus maridos, teriam a mesma carga horária de trabalho, autonomia sobre sua vida e seu dinheiro.  Se assim fosse, dariam a ela o direito ao ensino e a vida política. Durante uma discussão no parlamento o filme nos traz os argumentos que eram utilizados para impedir o voto feminino. Eles alegavam que elas seriam de um sexo frágil e não teriam equilíbrio hormonal para exercer tal atividade. Declaram também, que elas não precisam desse direito, pois seus maridos já elegiam por elas, porque saberiam quais seriam suas exigências.

Existem vários pontos importantes a serem analisados no filme, e um deles é a atitude rebelde que essas mulheres adquiriram como forma de chamar a atenção para as suas reinvindicações. As sufragistas apelaram para uma campanha nacional de desobediência civil. Existem várias cenas no filme que demonstram isso: mulheres quebrando vitrines e explodindo lugares públicos gritando pelo direito ao voto, escrevendo os próprios jornais, já que a imprensa não era verdadeira sobre suas pautas. Esse aspecto traz um pensamento valorativo do voto. Muitas vezes ele parece ser natural. Não paramos para pensar o quanto lutamos pra isso e quantas mulheres morreram para que hoje todas nós possamos exercer nossos direitos e deveres como cidadãs.

Outro ponto marcante ao assisti-lo, é a mudança extraordinária que ocorre na vida de Maud após ser inserida na causa sufragista. Maud, uma mulher comum para a época que trabalhava, era casada e tinha um filho, uma mulher que achava normal as condições de trabalho que ela, e muitas outras, se submetiam (ela chega inclusive a afirmar que os patrões eram bons), a forma como inferiorizavam as mulheres e os abusos que sofriam. Era comum Maud se sentir inferior e sempre obedecer à lei sem ao menos confronta-la. Aos poucos, com a ajuda de outras mulheres que defendiam a causa, Maud foi começando a entender os problemas sociais e políticos que enfrentava e porque o voto poderia mudar isso. O momento que ela afirma, com orgulho, ser uma sufragista é emocionante. A protagonista percebe que a lei não está e nunca esteve ao lado de mulheres e vai lutar para que ela e outras possam mudar isso, como ela mesma deixa claro no filme: “O senhor me disse que ninguém ouve garotas como eu. Eu não posso mais viver com isso. Toda minha vida eu fui respeitosa, fazendo o que os homens me pediam. Agora eu sei. Não valho nada mais, nada menos que você. A Sra. Pankhurst disse uma vez que se é certo para os homens lutar por sua liberdade, então é certo para as mulheres lutarem pelas delas.” A partir desse momento nasce uma nova mulher. Uma Maud totalmente engajada no movimento sufragista e que se importa com a situação da mulher na sociedade.

O filme se encerra com um momento trágico, no qual Emily Davidson (Natalie Press), que até então não tinha um destaque na história, toma uma atitude extremamente importante para a luta do direito ao voto feminino. A ação de Emily trouxe a atenção e a visibilidade que o movimento precisava, mas teve um custo alto.

Após muita luta e a prisão de várias mulheres, elas conquistam o direito ao voto em 1918, para aquelas que tinham mais de 30 anos. Em 1928 esse direito se iguala ao dos homens.

Trazendo essa luta para o Brasil, observamos que em 1932, na Era Vargas, as mulheres obtiveram a garantia ao voto. Porém nessa época, o Código Civil vigente (1916) mantinha elementos profundos da subordinação da mulher e da visão dela como propriedade masculina. Somente em 1988, com a nova Constituição, que foi introduzido o principio da igualdade entre homens e mulheres perante a lei.

É importante que tenhamos uma reflexão sobre essa conquista: as sufragistas deram o “ponta pé inicial” para toda essa luta. Hoje todas nós, mulheres, podemos votar e escolher quem melhor nos representa e como cidadãs temos o dever de continuar lutando por uma maior inclusão e representatividade.
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