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01/07/2020

Mulheres de Destaque: Tanya K. Kozicki de Mello, professora de Direito Constitucional e Chefe do Departamento de Direito Público do UNICURITIBA


Indiscutivelmente este foi um semestre desafiador, principalmente por conta da crise sanitária global que instaurou uma grande instabilidade em termos de saúde pública e exaltou verdades acerca da supremacia dos interesses econômicos e da desigualdade social que há muito cultivamos em nosso país. Mas, não podemos deixar o momento que estamos vivendo no afetar de forma a esquecer os bons exemplos de profissionais que nesta pandemia demonstram diariamente o seu papel social e transformador no mundo. Sim, os profissionais da saúde salvam nossos corpos e os profissionais da educação salvam a nossa alma ao cultivarem a curiosidade e o conhecimento em nós estudantes.
Por conta disso, retomamos nesta semana uma coluna muito cara em nosso blog. Com carinho, publicamos em nossa seção Mulheres de Destaque nossa homenagem a professora Tanya K. Kozicki de Mello, para agradecer, não apenas a ela, mas a todas as nossas professoras do UNICURITIBA que arduamente trabalharam neste semestre para que o ensino de qualidade chegasse em nossos lares, mostrando que além de amarem o magistério, acreditam verdadeiramente que a educação é fundamental, tanto por seu potencial transformador, como por seus efeitos em nossas vidas. E gostaria de destacar que tais efeitos vão muito além das salas de aula, eles nos moldam enquanto seres humanos.
A professora Kozicki de Mello ministra as inspiradoras aulas de Direito Constitucional II do Centro Universitário Curitiba. Seu domínio do conteúdo e reflexão crítica nos envolvem em suas aulas. Além disso, é daquelas professoras que fala dirigindo-se a nós, alunos, olhando em nossos olhos, com os nossos nomes na ponta da língua, para responder com muita generosidade todas as nossas dúvidas. Uma professora exemplar, de didática extraordinária e organização impecável. Ter aulas com a professora Tanya é um aprendizado para a vida, principalmente aos alunos que possuem como meta a vida na docência. E, nos 21 anos dedicados as aulas de Constitucional no UNICURITIBA, muitos dos professores que hoje são seus colegas outrora foram seus alunos, e a tiveram como exemplo e inspiração no magistério e na advocacia.
Em conversa com a professora, buscamos conhecer um pouco do início de sua trajetória acadêmica e como trilhou os caminhos da pesquisa e da docência. Ela nos compartilhou que sempre teve certa facilidade em se expressar e em argumentar e, além disso, teve sua irmã mais velha como um exemplo motivador. Kozicki de Mello iniciou na docência ministrando aulas de inglês concomitantemente ao seu ingresso na graduação de Direito na Universidade Federal do Paraná, período em que a Constituição Cidadã completava dois anos. Teve como palestrante da aula magna de seu ano um grande constitucionalista, o atual ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o jurista Luís Roberto Barroso. Relembrou, também, que foi um período de grandes discussões na academia uma vez que se tratava de um momento de enorme repercussão nacional, o confisco realizado pelo Presidente Fernando Collor de Melo, em que o instituto da medida provisória era algo novo no ordenamento jurídico brasileiro e suas implicações e amplitude ainda eram desconhecidas.
            Ao longo da graduação, procurou sempre ser uma estudante ativa nas atividades e eventos da universidade, e foi bolsista CAPES nos dois últimos anos de seu curso pelo grupo PET (Programa de Educação Tutorial), um programa de iniciação científica que se dá de forma individual e coletiva com a orientação de um professor que, à época, foi iniciado sob a tutoria da professora Maria de Lourdes Seraphico Peixoto. Para a professora Tanya, participar deste programa apurou consideravelmente seu interesse pela pesquisa e a academia.
Quando iniciou o magistério no UNICURITIBA, ingressou como professora da disciplina de Direito Constitucional e, em 2003, a convite do então coordenador e professor da Faculdade de Direito de Curitiba, Daniel Ferreira, e do ex-Diretor Luís Cesar Esmanhotto, a professora assumiu a chefia do Departamento de Direito Público do curso de Direito da instituição, passando a integrar a coordenação. A época possuía uma advocacia mais intensa, e quando questionamos como administrava todas estas funções de forma exemplar, respondeu que acredita que quando encontramos a nossa própria vocação a organização se torna facilitada.
Cinco anos após a nomeação de Chefe do Departamento de Direito Público no UNICURITIBA, Kozicki de Mello retomou suas investigações acadêmicas – na área do Constitucionalismo e a Democracia –, ingressando no mestrado em Direito Econômico e Socioambiental na PUCPR. Suas primeiras investigações foram no Direito Administrativo e eram de caráter mais dogmático, período em que foi aluna do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, Roque Antonio Carrazza, Paulo de Barros Carvalho e Elizabeth Nazar Carrazza, na PUCSP. Mas, no mestrado, caminhou para uma área da Teoria Constitucional e da Filosofia Política – estreitando os laços com as obras de autoras como Hannah Arendt e Chantal Mouffe –, considerando um momento importante em sua vida acadêmica pois permitiu ampliar o seu vocabulário e olhar sobre o mundo.
Certa vez, a redatora que vos escreve, estava sentada na primeira carteira da aula de Constitucional II, e a professora Tanya propunha uma interpretação de uma pintura do artista paranaense Carlos Eduardo Zimmermann em diálogo com o conteúdo trabalhado na disciplina. Ali percebi a extensão de sua sensibilidade crítica e visual. Além nutrir na arte uma paixão, Kozicki de Mello pratica golfe, e nesta entrevista revelou a contribuição de ambos em sua vida. Para ela a arte e o golfe estão intimamente ligados à contemplação daquilo que é belo – seja diante de uma obra de arte ou de uma melodia, seja frente a paisagem de um campo de golfe em que observa a mudança de tons que a passagem das estações denuncia –, provocam na professora momentos de apreciação e reflexão.
Ao falar sobre a importância da arte, citou como referência o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”. E, acerca do esporte que pratica desde 2015, a professora apontou características do jogo em si que vão além da contemplação, alcançando a esfera da reflexão sobre a moral, ou seja, da Ética.

"Se costuma dizer que para se conhecer bem uma pessoa, basta jogar uma rodada de golfe com ela, pois o golfe possui este condão de revelar muito de como as pessoas são e como se comportam na vida. [...] É um esporte que, em última análise, não tem juiz. Dependendo da situação que você se encontrar, você pode, inclusive, não noticiar que cometeu uma infração. E isso é uma coisa que talvez só você saiba. Mas, como é um jogo onde você joga contra você mesmo, e contra o campo, é o tipo de trapaça que jamais faz sentido, pois isso significaria trapacear-se."[1]
           
            Quem já teve a oportunidade de ser aluno da professora Tanya, ou mesmo colega de magistério, consegue identificar com clareza tais elementos de sua vida na forma de conduzir profissionalmente sua carreira e funções. Esta homenagem do Blog UNICURITIBA Fala Direito à professora Tanya K. Kozicki de Mello é para agradecer por toda sua dedicação, sensibilidade e postura profissional e ética em tudo que se propõe a fazer. Por isso, é uma mulher de destaque em nossa instituição e um exemplo a ser seguido.
           
     



[1] Professora Tanya K. Kozicki de Mello em entrevista para o Blog UNICURITIBA Fala Direito.
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29/03/2020

Em pauta: De quem realmente é a competência para decidir sobre a quarentena?




Por Beatriz Duma de Oliveira*

Na terça-feira, 24 de março, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento oficial que causou grande comoção Brasil afora. O Presidente defendeu o fim de medidas restritivas, como a quarentena decretada pelo governador de São Paulo, para conter a transmissão local do novo Coronavírus. No dia seguinte, as reuniões entre Presidente e governadores dos estados foi marcada por diferenças quanto à adoção de medidas restritivas. Nesse cenário, surgem dúvidas como: Quem tem competência para decretar quarentena? E é possível que algum órgão ou ente possa suspendê-la?

Para responder essas questões conversei com Luiz Gustavo de Andrade, professor de Direito Constitucional na Unicuritiba. Ele me explicou que, primeiramente, precisamos entender como funciona o Pacto Federativo no Brasil. 

Pela Constituição de 88, são entes da federação: a União (ou Governo Federal), os estados, municípios e o Distrito Federal. Cada um desses entes possui competência para exercer algumas funções. Os serviços postais e a emissão de moeda, por exemplo, são competências exclusivas da União. Ou seja, estados e municípios não podem criar seu próprio serviço de Correios ou sua própria moeda. 

Mas também existem funções que são de competência comum entre os entes da federação, como é o caso da educação e da saúde - sendo a última prevista no artigo 23, II da Constituição. Portanto, tanto o Governo Federal, quanto o Estadual e o Municipal não só podem como devem prestar serviço de saúde para a sua população. Contudo, a Constituição não elencou qual área da saúde cada ente federado deve atuar preferencialmente. Dessa forma, todos prestam serviço e tem competência para tomar as medidas cabíveis para a promoção da saúde, em suas várias formas. Além disso, de acordo com o artigo 24, XII da Constituição, tanto a União quanto os estados podem legislar sobre a saúde de forma concorrente, ou seja, o Governo Federal edita normas gerais (§1°), e os governos estaduais particularizam essas normas à sua localidade, sem contrariá-las (§2°).

Essas noções de Direito Constitucional são necessárias para compreendermos como um estado pode atuar na questão da saúde nessa pandemia da Covid-19. Além de criar leis locais, os estados podem usar de um instrumento chamado "Decreto Executivo", que é uma ordem editada pelo chefe do executivo no nível estadual - o governador - que versa sobre ações administrativas. 

Por via de decreto, um governador pode, por exemplo, suspender as aulas em escolas e fechar alguns estabelecimentos, com objetivo de evitar a transmissão do novo Coronavirus. Porém, como é uma ordem editada pelo poder Executivo, um decreto não pode trazer nenhuma medida que não esteja prevista em lei - tendo em vista que, pela Tripartição de Poderes, cabe ao Legislativo criar normas jurídicas, e ao Executivo, executá-las. Não poderia, por exemplo, um decreto criar e impor um tributo que não estivesse previsto em legislação, pois vimos que o decreto não pode inovar no mundo jurídico.

Sintetizando os conceitos apresentados, para verificar se decretos estaduais são válidos no que diz respeito à questão da saúde, precisamos a) ver se os dispositivos nele presentes possuem base legal, pois os decretos são atos normativos secundários, ou seja, estão abaixo da lei, e não podem criar algo que já não exista nela; b) verificar se contrariam as normas gerais determinadas pela União, conforme artigo 20, § 2º, da Constituição. Toda essa linha de raciocínio serve para entendermos por qual razão o decreto do estado de São Paulo[1], que determinou a quarentena, é ilegal. E como outros decretos estaduais podem sofrer do mesmo status.

O decreto editado por João Dória não é contrário às normas gerais estabelecidas pela União. Na Lei n° 13.979/2020[2], artigo 2º, II, é permitido declarar quarentena em razão da disseminação do novo Coronavírus. E no parágrafo 7º, II do mesmo artigo, determina-se que os gestores locais (como prefeitos e governadores) podem adotar essa medida de restrição, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde. Também reafirma essa questão a Portaria n° 356 de 11/março/2020[3], do Ministério da Saúde, no artigo 4º, §1º prevê que a quarentena pode ser adotada mediante ato administrativo formal, por órgãos federais, estaduais e municipais de saúde. Nesse aspecto, o decreto do Governador é válido. A questão problemática é que, para que o decreto de quarentena fosse legal, deveria existir uma lei estadual que regulamentasse como a quarentena aconteceria. Essa lei não existe e, ao que tudo indica, nenhum estado do Brasil criou uma lei sobre essa questão. 

O que vemos, portanto, é um grande problema jurídico, pois os decretos tanto de São Paulo como de outros estados podem ser anulados por inovarem no mundo jurídico sem previsão legal, ou seja, maculados por uma ilegalidade. No entanto, caso decretada a nulidade da medida de quarentena, o efeito pode ser um maior número de infectados e mortos pelo novo Coronavirus, além da sobrecarga do Sistema de Saúde das localidades afetadas. Ressalto, para esclarecer, que caso houvessem leis estaduais regulamentando a quarentena, que foi permitida por lei federal, esses decretos estariam dentro da legalidade.

O problema, no entanto, não é apenas esse. Como a Lei 13.979/2020 permite a quarentena apenas com autorização do Ministério da Saúde, o chefe do Executivo em nível federal, Presidente Jair Bolsonaro, caso queira intervir nesse Ministério, pode acabar com as quarentenas que já estão acontecendo, as desautorizando. Por essa razão, mesmo se os decretos fossem válidos, as quarentenas poderiam ser suspensas, já que dependem de uma validação do Governo Federal.

Essa centralização de poder nas mãos da União, reforçada pela Medida Provisória 926 de 20/março/2020[4], fere a autonomia dos estados em cuidar da saúde de sua população frente à pandemia, porque os incapacita de tomar medidas, como a quarentena, caso haja discordância de opinião do Governo Federal.

Sobre a referida MP, o ministro do STF Marco Aurélio reafirmou que os estados e municípios tem poder para tomar medidas de proteção à saúde, já que é competência comum dos entes da federação. Contudo, não declarou nula a MP, que possui o caráter centralizador já mencionado. Ainda sim, faz-se necessária a lei local e não apenas um Decreto.

Para evitar o “caos social”, o secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabardo Reis, em coletiva de imprensa no dia 26/03, disse que a população deve seguir as normas previstas no seu município, sejam elas medidas restritivas, no caso de quarentena, ou o isolamento social aconselhado pelas autoridades locais. Vale lembrar que compete aos Municípios a edição de normas acerca dos interesses locais - art. 30, I, da Constituição.

Vemos, nesse cenário atual, como o Direito não está preparado para lidar com essa situação, na qual a população, os especialistas e os órgãos nacionais e internacionais defendem a adoção de medidas como a quarentena. Entretanto, para que os decretos estaduais estivessem em conformidade com o Direito, seria necessário esperar a conclusão do processo de criar, debater, votar e aprovar uma lei estadual. Esse processo legislativo demora mais do que o tempo que temos para tomar medidas, de forma que possam diminuir a transmissão comunitária do vírus, que ameaça todo o corpo social.

O que se conclui, portanto, é que, quando superada essa terrível pandemia, será preciso repensar nosso pacto federativo.  Neste caso particular, a divergência de opinião entre a esfera federal, que centraliza muito poder, e as esferas estaduais e municipais, pode gerar muitas mortes e o colapso do sistema de saúde nas localidades mais afetadas.





*Beatriz Duma de Oliveira é aluna do 3° período de Direito, apresentadora do Talks Channel e integrante do grupo de pesquisa "Criminologia - Cultura, Violência e Desigualdade" e voluntária no projeto "Formação Constitucional nas Escolas" - além de integrante da equipe de 2020 do Blog Unicuritiba Fala Direito. 

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22/03/2020

Em pauta: Reflexões sobre as fronteiras e outros sintomas






“(...) poderíamos dizer, historicamente, que a sociedade humana nasceu com a compaixão e com o cuidado do outro, qualidades apenas humanas. A preocupação contemporânea está toda aí: levar essa compaixão e essa solicitude para a esfera planetária. Sei que gerações precedentes já enfrentaram essa tarefa, mas vocês terão de prosseguir nesse caminho, gostem ou não, a começar por sua casa, por sua cidade — e já.”[1]

Nesta última semana tivemos posicionamentos mais incisivos em relação ao controle epidemiológico do COVID-19. Grande parte das instituições de ensino suspenderam suas atividades acadêmicas, e os entes federados, bem como seus respectivos órgãos, tem se pronunciado acerca de medidas de prevenção e controle sobre a doença. Destacamos as orientações a respeito de cuidados individuais como higiene das mãos, evitar aglomerações, manter os ambientes ventilados, e não compartilhar seus objetos pessoais. Em caso de resfriado, ou mesmo gripe, a orientação é ficar em casa e observar seu quadro de sintomas. Caso apresente febre, tosse e dificuldade de respirar, deve-se procurar auxílio médico[2].
Mas, além das medidas informativas de saúde, o governo federal determinou o fechamento temporário das fronteiras terrestres do Brasil, inicialmente pelo prazo de 15 (quinze) dias. Num primeiro momento apenas com a Venezuela, em divisa com o estado de Roraima, e posteriormente com a Argentina; Bolívia; Colômbia; Guiana Francesa; Guiana; Paraguai; Peru; e Suriname. Cabe ressaltar que a Portaria nº 125 que trata sobre a restrição de acesso ao nosso país nesse período de pandemia, apoiou-se nas recomendações da Anvisa, e não se aplica aos brasileiros, natos ou naturalizados; imigrantes com prévia autorização de residência definitiva em território brasileiro; profissionais estrangeiros em missão a serviço de organismo internacional, desde que devidamente identificado; e aos funcionários estrangeiros acreditado junto ao Governo brasileiro.[3]
Tais restrições também não impedem o tráfego do transporte rodoviário de cargas; a execução de ações humanitárias transfronteiriças previamente autorizada pelas autoridades sanitárias locais; e o tráfego de residentes de cidades gêmeas com linha de fronteira exclusivamente terrestre[4]. Outro ponto a se observar são as sanções em caso de descumprimento de tais medidas, implicando em responsabilização civil, administrativa e penal do agente infrator; bem como, na deportação imediata do agente infrator e a inabilitação de pedido de refúgio.[5]
Recentemente, o podcast Hora do Intervalo[6] trabalhou questões relevantes sobre a nova epidemia, e dentre elas, a questão do controle de fronteiras. Nossa colega de redação, Manuela Paola, destacou que a saúde deveria ser um tema que ultrapassasse fronteiras, haja vista que a epidemia não as respeita. E o professor Gustavo Blum, do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, ressaltou a importância do controle das fronteiras para a manutenção das atividades estatais, como da própria segurança e da saúde pública do país.

“Jamais deixaremos de ser estrangeiros: permaneceremos assim, e não interessados em interagir, mas, justamente porque somos vizinhos uns dos outros, destinados a nos enriquecer reciprocamente. (...) quanto mais o espaço e a distância se reduzem, maior é a importância que sua gente lhe atribui; quanto mais é depreciado o espaço, menos protetora é a distância, e mais obsessivamente as pessoas traçam e deslocam fronteiras.”[7]

Zygmunt Bauman está se referindo às fronteiras entre pessoas em espaços reduzidos, mas acredito que possamos espelhar tal concepção sobre as fronteiras entre países de um mesmo continente. Esta afirmação pode ser claramente vista nas questões de cunho migratório e na transformação de países hegemônicos em enclaves fortificados. Podemos ainda transpor tal olhar ao posicionamento do Brasil em relação aos demais países fronteiriços da América Latina.
O antropólogo norueguês Fredrik Barth, é citado por Bauman em sua obra Confiança e medo na cidade para ressaltar que o objetivo das fronteiras não está em delimitar diferenças, ao contrário, é o fato de demarcarmos fronteiras que as distinções se consolidam e, por sua vez, tornam-se legitimadas. Mas, sendo a delimitação uma justificativa para o fortalecimento de uma identidade e soberania nacional, a ausência de fronteiras em relação ao direito universal à saúde e, como destacado por Manuela, não reconhecida pela própria epidemia, não deveria ser um motivador para caminharmos em sentido oposto? Entendemos a questão do isolamento como fundamental para o controle da epidemia, mas no caso da Venezuela, a justificativa para a restrição de seus nacionais em nosso território brasileiro foi atribuída por nosso presidente, Jair Bolsonaro, à fragilidade do país venezuelano. Esta fragilidade não deveria ser abraçada por uma solidariedade entre nações, em busca de uma integração e fortalecimento através da colaboração e reciprocidade em prol da humanidade?
            Retomando o podcast Hora do Intervalo, a professora Edna Torres Felício, do curso de Direito do Unicuritiba, pontuou sobre a competência administrativa acerca da esfera da saúde, compreendendo a atuação estatal fundamental para a vigilância epidemiológica da saúde individual e coletiva. Outro ponto destacado pela professora é a ausência de legislação sobre quarentena, e para tanto, foi expedida em caráter emergencial a Lei nº 13979, de 06 de fevereiro de 2020, a respeito de medidas de urgência para enfrentamento da epidemia do corona vírus[8].
            A professora Edna nos explicou que alguns direitos individuais podem vir a ser suprimidos em prol da saúde pública, dentre eles, o direito de ir e vir. Para isso, ela nos relembrou que os direitos fundamentais possuem estrutura de princípios e por isso podem vir a colidirem, demandando a harmonização no caso concreto. E, neste sentido, deve-se respeitar a temporariedade, a legalidade e a proporcionalidade, para se evitar uma ampliação do controle estatal de forma arbitrária.
Apoiando-se no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, Torres reforçou que momentos de insegurança, como a da presente pandemia, suscitam a instauração de estados de exceção que podem vir a ser tomados como paradigmas de normalidade. Nesse aspecto o medo pode ser utilizado como ferramenta para a insurgência de um estado não democrático. Algo similar ao papel do terror para a manutenção de poder num sistema totalitário, outrora analisado por Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Esta parte final da fala da professora Edna é muito importante pois nestes últimos dias as palavras “estado de sítio” têm-se apresentado temerosamente presentes e constantes na mídia.

“As fronteiras e deslocamentos migratórios são processos econômicos e socioculturais, como são estudados pelos demógrafos, antropólogos e sociólogos, e também processos simbólicos que se expressam como metáforas, e não apenas como conceitos.[9]

            Utilizando da comparação proposta por Canclini das fronteiras e deslocamentos, e porque não das restrições a estes, como processos simbólicos dados por metáforas, torna-se inevitável nos remetermos ao entendimento de sintoma para Freud e Lacan[10]. Este último, compreendia o inconsciente enquanto linguagem e o sintoma enquanto mensagem-metáfora, ou seja, um significante de um significado recalcado. Para Freud, o caminho da gênese da neurose é trilhado pelo inconsciente diante de um trauma que o recalca e se manifesta sob as vestes de sintoma.
O ponto que gostaria de chegar na questão sobre as fronteiras, suas delimitações e medidas de contenção, reside exatamente nesta concepção de metáfora que Canclini sugeriu, e que podemos correlacionar com a compreensão de sintoma para a psicanálise. Um sintoma que na verdade não guarda enquanto trauma, ou significado recalcado, a pandemia que vivemos, mas é um sintoma similar à crise migratória, à desigualdade entre os povos, e a manutenção de estruturas de poder que consolidam blocos hegemônicos. Portanto, finalizo com uma proposta de reflexão: qual é o trauma, em termos de humanidade, que estes sintomas sociais, políticos e econômicos tentam nos revelar?





[1] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 90.
[2] BRASIL. Corona vírus – COVID-19. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/>. Acesso em:20/03/2020.
[3] BRASIL. Portaria nº 125, de 19 de março de 2020. Brasília: Diário Oficial, 2020. Art. 4º. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/portaria-125-fechamento-fronteiras.pdf >. Acesso em, 20/03/2020.
[4] BRASIL, 2020, art. 5º.
[5] BRASIL, 2020, art. 6º.
[6] Podcast dos Blogs Internacionalize-se e Unicuritiba Fala Direito.
[7] BAUMAN, 2009, p. 75.
[8] BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília: Diário Oficial da União, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm>. Acesso em: 21/03/2020.
[9] CANCLINI, Nestor García. O Mundo Inteiro como Lugar Estranho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. p. 65.
[10] VILLELA DIAS, Maria das Graças L. O Sintoma: de Freud a Lacan. Psicologia em Estudo: Maringá, v. 11, n.2 maio/2006.
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21/03/2020

Em pauta: A portaria do coronavírus e a restrição de direitos fundamentais em tempos de pandemia




Com o avanço dos casos de coronavírus pelo Brasil, os ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Saúde editaram uma portaria que muda regras e altera condições consolidadas no Direito Brasileiro no que tange direitos individuais. O ato normativo está amparado por lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no início de fevereiro (Lei 13.979/2020) e que trata de medidas emergenciais para enfrentamento do Covid-19, vírus já presente em 151 países.
A portaria prevê, por exemplo, que o descumprimento de determinações médicas de quarentena, isolamento ou internação pode incorrer em dois artigos do Código Penal (CP), isso se o fato não constituir crime ainda mais grave.
Os dois crimes previstos pela portaria são os artigos 268 e 330 do CP:
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
        Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
        Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
                       Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

As definições de quarentena, isolamento e internação são definidas justamente pela Lei 13.979/2020, norma que já no parágrafo 1º do Art. 1 diz que as medidas “objetivam a proteção da coletividade.”
Segundo a lei, isolamento é a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”. Já quarentena é a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”
A Lei 13.979/2020 determina ainda a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas e tratamentos médicos específicos.
Aqui destaca-se que a implementação das medidas independe de autorização judicial. “No exercício de polícia administrativa, a autoridade policial pode encaminhar o infrator a sua residência ou ao estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas “, diz o texto.
Mas constitucionalmente, essas medidas são possíveis, mesmo que infrinja direitos individuais?
Professora de Direito Constitucional no UniCuritiba, Edna Torres Felício explica que os direitos fundamentais têm estrutura de princípios e podem colidir entre si. “Quando isso ocorre, é preciso harmonizar os direitos fundamentais no caso concreto. Aqui, vê-se que estão em colisão direitos fundamentais individuais e a proteção da saúde pública, logo interesses individuais podem ceder em detrimento da necessidade de controle da epidemia”, diz.
A conclusão que chegamos é que sim. Diante da necessidade de preservar a coletividade de um vírus potencialmente perigoso, a coletividade pode se sobrepor às necessidades individuais. Logo, o Governo Federal tem tomado medidas que são amparadas pela Constituição, pelo menos até aqui.
Edna Torres lembra que a Constituição Federal prevê medidas ainda mais enérgicas, como o estado de defesa ou de sítio e a intervenção federal. “Eu não acredito que cheguemos a situações extremas de comprometimento da ordem pública ou da paz social, que poderiam ensejar o estado a lançar mão do sistema constitucional de crises. Mas, precisamos ter em mente, que qualquer medida extrema deve respeitar o princípio da temporalidade, com duração apenas enquanto prevalecer o motivo; legalidade, com respeito à Constituição e leis; e proporcionalidade, com o problema sendo enfrentado dentro da proporção aos problemas enfrentados”, conclui.
Confira a íntegra das normativas:
Lei 13.979: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm
Portaria Interministerial Nº5 2020: in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-5-de-17-de-marco-de-2020-248410549


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02/12/2019

Evento: Congresso debate Eleições e Gestão Pública em Curitiba





Ocorrerá em Curitiba, entre os dias 04 e 06 de dezembro, o VI Congresso Interestadual da Vereança. Vários professores do UNICURITIBA participarão do evento. No dia 04, o Professor Luciano Reis irá debater a “Implementação do Compliance na Administração Publica”. No dia 05, pela manhã, o Professor Luiz Gustavo de Andrade participará da palestra sobre “Ilícitos de Campanha e Abuso de Poder”, mediando os Professores Roosevelt Arraes e Dalton Borba, este último vereador em Curitiba.

O evento é organizado pela UVEPAR (União dos Vereadores do Paraná) e ocorrerá no Hotel Lancaster em Curitiba-PR.
Veja abaixo a programação:



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11/06/2019

Em pauta: Decreto regulamenta Lei da Segurança Jurídica (Nova LINDB)






Foi publicado hoje no Diário Oficial da União o Decreto nº 9.831/2019[1], que regulamenta os 10 (dez) últimos artigos recentemente acrescidos à antiga Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). As alterações feitas pela Lei 13.655/2018, ocorridas no ano passado, visaram proporcionar segurança jurídica nas decisões públicas.

De início, é importante frisar que a Lei de introdução é uma lei sobredireito, ou seja, prevê a maneira de aplicação da legislação no tempo e no espaço, o seu sentido lógico e as fontes do direito, complementando a Constituição[2]. Assim, serve de norte interpretativo e integrativo do ordenamento jurídico brasileiro, sem, contudo, reger diretamente as ações ou omissões dos indivíduos[3].



1. Motivação e decisão



A LINDB prescreve que a decisão que se baseia exclusivamente em valores jurídicos abstratos (normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração)[4] deve expressar as suas consequências práticas. O grande problema desse mandamento era o modo pelo qual o julgador deveria indicar essas consequências. O decreto buscou solução no seguinte sentido: “o decisor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos[5].

Ou seja, não se exige que a motivação contenha todas as consequências práticas da decisão, em um exercício hercúleo do julgador. Porém, partindo dos autos – para ficarmos com o exemplo judicial –, o magistrado, movido pela obrigação legal de ser diligente, indicará as consequências mais importantes em termos econômicos, político-administrativos e sociais[6].

O Decreto também torna mais clara a referência feita pelo art. 20, parágrafo único, da LINDB, aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade (necessidade e adequação)[7], impondo a observação dos critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade. Mais clara, porém, a referência, mas não sua aplicabilidade, sobre a qual inclusive a indeterminação ainda existe, apesar das tentativas da lei em comento e da vasta bibliografia sobre o tema.

O modo de se indicar as consequências jurídicas e administrativas da decisão de invalidação de atos, contratos, processos ou normas administrativas, segue o mesmo parâmetro. O distintivo reside na exigência de que, sempre que possível, o decisor indique as condições de regularização da situação de invalidade – de modo proporcional, equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.

Ainda sobre as consequências jurídicas e administrativas, o regulamento cria a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão de invalidação em apreço, a qual poderá restringir os efeitos da declaração ou determinar que sua eficácia inicie em momento posteriormente definido. De acordo com o regramento, todo esse raciocínio se guiará pela mitigação dos ônus e perdas tanto dos administrados como da administração pública.



2. Mudança de orientação geral e nova interpretação jurídica



Destaca-se nesse ponto a vedação de se declarar inválida situação plenamente constituída devido à mudança posterior de orientação geral (aqui, “mudança posterior” especifica o que já prescreve o caput do art. 24, da LINDB). A proibição, entretanto, não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futuros de relação em curso.

O Decreto define se tratar de nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento anteriormente consolidado e, para o cumprimento desse dever ou condicionamento de direito, deve-se instituir regime de transição que será motivado conforme o discorrido no item anterior deste texto. Esse regime transitório também deve prever, quando possível:



1) os órgãos e as entidades da administração pública e os terceiros destinatários.



2) as medidas administrativas a serem adotadas para adequação à interpretação ou à nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado.



3) o prazo e o modo para que o novo dever ou novo condicionamento de direito seja cumprido.



Isto é, a partir desses nortes interpretativos, restringe-se a mudança de entendimento, e privilegia-se a segurança jurídica, propósito das alterações ocorridas na Lei de introdução. Sendo a Lei aplicável no âmbito administrativo e judicial, é possível pensar neste como um dos caminhos para o problema da guerra de liminares e do subjetivismo judicial[8].







3. Compensação de danos



Com o objetivo de evitar procedimentos contenciosos de ressarcimento de danos, a decisão do processo administrativo poderá impor diretamente à pessoa obrigada compensação por benefícios indevidos ou prejuízos “anormais ou injustos” resultantes do processo ou conduta dos envolvidos. Para isso, deve-se possibilitar manifestação prévia dos obrigados, e o ajuste terá celebrado por meio de Compromisso.



4. Instrumentos propostos: Compromisso e Termo de Ajustamento de Gestão (TAG)



O Compromisso, assim como o Termo Ajustamento de Gestão, surge na linha das resoluções adequadas de conflitos. No primeiro caso, o instrumento serve para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público.

Assim, entendendo a autoridade ser conveniente a sua celebração, atendidas as condições (oitiva do órgão jurídico, consulta pública e razões de relevante interesse geral), deve o instrumento prever:



1) as obrigações das partes.

2) o prazo e o modo para seu cumprimento.

3) a forma de fiscalização quanto a sua observância.

4) os fundamentos de fato e de direito.

5) a sua eficácia de título executivo extrajudicial.

6) as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.



Importante ressaltar que a decisão pela celebração do Compromisso deve resultar de processo, o qual será instruído no mínimo com : (1) parecer técnico conclusivo do órgão competente sobre a viabilidade técnica, operacional e, quando for o caso, sobre as obrigações orçamentário-financeiras a serem assumidas; (2) parecer conclusivo do órgão jurídico sobre a viabilidade jurídica do compromisso, que conterá a análise da minuta proposta; e (3) minuta do compromisso, que conterá as alterações decorrentes das análises técnica e jurídica acima mencionadas.

Relevante salientar a vedação de desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecido por orientação geral no Compromisso (proibição repetida da LINDB). Conforme o Decreto, o instrumento terá validade com a respectiva publicação.

Quanto ao Termo de Ajustamento de Gestão (TAG), tem o objetivo de corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, e assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e sua assinatura será comunicada ao órgão central do sistema de controle interno. Na hipótese de danos ao erário praticado, por agente público, com dolo ou erro grosseiro, resta impossibilitado o ajuste.

Cumpre-se acentuar que o TAG é instrumento existente no âmbito dos tribunais de contas estaduais há algum tempo. No Estado do Paraná, foi incorporada pelo TCE/PR em 2017[9]. Luciano Ferraz afirma que o TAG, como instituto jurídico-administrativo,



Afina-se com a moderna tendência da Administração Pública e do Direito Administrativo, menos autoritário e mais convencionais, imbuídos do espírito de ser a consensualidade alternativa preferível à imperatividade, sempre que possível […] sempre que não seja necessário aplicar o poder coercitivo[10].



A previsão é interessante. Porém, no caso dos tribunais de contas, em razão dos longos prazos para o cumprimento dos ajustes, não existem dados muito concretos a respeito de sua eficiência[11].

Por fim, é relevante registrar que todas as decisões pela celebração de Compromisso ou de TAG são motivadas da mesma maneira em que se expressam as consequências já aventadas nas primeiras linhas do texto.



5. Responsabilização do agente público e responsabilização por decisões ou opiniões técnicas



O Decreto 9.830/2019 também trouxe especificidades da responsabilização do agente público, a qual só poderá ser imputada nos casos de dolo (direto ou eventual) e erro grosseiro cometidos no desempenho das funções. Tal situação ou circunstância deve ser comprovada no procedimento de responsabilização, sendo insuficiente o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, bem como a expressividade do dano ao erário. Além disso, complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente devem ser consideradas.

Segundo o regulamento, considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Gustavo Binenbojm e André Cyrino sustentam que a mudança em análise implicou, de um lado, a admissão do erro pelo agente público, salvo quando grosseiro[12].

No que diz respeito à responsabilização por opinião técnica, somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião, ou se houver conluio entre os agentes. Segundo os juristas supracitados,



A opinião técnica a que alude o dispositivo compreende a manifestação de advogados públicos no exercício de atividade consultiva. A norma dirige-se ao parecerista e lida com o problema relativo aos limites de sua responsabilização por suas opiniões jurídicas. Trata-se de questão antiga, mas recorrente, a qual foi inicialmente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do MS nº 24.073/DF, em 2002[13].



Ademais, só responderá por culpa in vigilando (pela omissão, inércia)[14] aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo no exercício do poder hierárquico.



6. Direito de regresso, decisão sancionadora e outros instrumentos à segurança jurídica



Restringindo o disposto no art. 37, § 6º, da Constituição, o art. 14 do Decreto impera que, no âmbito do Poder Executivo Federal o direito de regresso somente pode ser exercido se o agente público houver agido com dolo ou erro grosseiro em suas decisões ou opiniões técnicas.

Registre-se que quando da tramitação do PL 7.448/2017, a Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União já argumentava no sentido de que a questão do erro grosseiro poderia suscitar eventual inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de introdução, justamente por restringir direito constitucional. O Decreto, definindo o que é erro grosseiro, e de modo expresso afirmando ser essa a única hipótese de exercício do direito de regresso, enseja no mínimo dúvidas quanto à extrapolação do seu poder regulamentador, pois a LINDB nem sequer menciona direito de regresso.

O art. 16 do regramento obriga a consideração, na decisão de imposição de sanção ao agente público: da natureza e a gravidade da infração cometida; dos danos que dela provierem para a administração pública; das circunstâncias agravantes ou atenuantes; dos antecedentes do agente; do nexo de causalidade; e da culpabilidade do agente. Ainda, na dosimetria das demais sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato, as sanções aplicadas ao agente público também devem ser levadas em conta.

O Decreto regulamentador da LINDB prevê ainda outros instrumentos para proporcionar segurança jurídica ao Direito Público, como a consulta pública para edição de atos normativos (preferencialmente por meio eletrônico), orientações normativas do órgão central de sistema, enunciados, sendo os dois últimos instrumentos vinculantes ao próprio órgão ou entidade.







[1] BRASIL, Decreto nº 9.830/19. Regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, DF, Brasília, 10 de junho de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9830.htm>.

[4] Postulados como a boa-fé, interesse público e os princípios jurídicos em geral, são exemplos de fórmulas com o nível de abstração referido.

[5] Art. 3º, § 2º, do Decreto nº 9.830/2019.

[6] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21 da LINDB: Indicando consequências e regularizando atos e negócios. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 43-61, nov. 2018. p. 58.

[7] A referência aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade é feita pelo parágrafo único do art. 20, da LINDB. Sobre os atributos do referido princípio cf. TORRES, Heleno Taveira. Segurança Jurídica e Limites do Âmbito de Aplicação do Princípio da Proporcionalidade. In: MARQUES NETO, Floriano Azevedo et al. Direito e Administração Pública: Estudos Em Homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 136.

[8] Tomo liberdade de divulgar trabalho publicado em livro sobre o tema. Destaco o seguinte trecho: “o direito exige, especialmente hoje, que se observe o entendimento consolidado dos tribunais, sendo exceção a mudança de entendimento, especialmente em sede de medida cautelar, sem manipulação dos enunciados jurídicos pelo sentimento de justiça do julgador”. TEIXEIRA, Alan José de Oliveira; ANDRADE, Luiz Gustavo de. Guerra de liminares e fragilidade jurídica no controle judicial da nomeação do ex-presidente Lula à Casa Civil e o caso Moreira Franco. In: ANDRADE, Luiz Gustavo de; ARRAES, Roosevelt (Org.). Guardiania judicial: entre a segurança jurídica e a política. Curitiba: Appris, 2018. p. 185-204. p. 199.

[9] PARANÁ (Estado). Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Re­solução nº 59/2017. Normatiza o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) no âmbito do Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Diário Eletrônico do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Curitiba, n. 1530, 7 fev. 2017. p. 40-41.

[10] FERRAZ, Luciano. Termo de ajustamento de gestão e o alerta previsto no art. 59, § 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal: dez anos de­pois. Revista Técnica dos Tribunais de Contas, Belo Horizonte, ano 1, p. 205-214, set. 2010.

[11]O Tribunal de Contas dos Municípios do Estado Pará (TCM-PA) divulgou um ranking de resultado de atendimento do TAG, no que tange aos municípios. Fez-se um estudo do percentual de atendimento. Veja-se que
pelo menos 16 (dezesseis) municípios cumpriram integralmente o acordo proposto, ao passo que 61 (sessenta e um) cumpriram ao menos 50% do termo celebrado, enquanto que do restante de 67 (sessenta e sete) municípios estudados apenas 13% não cumpriram absolutamente nada do acordo”. Cf. TEIXEIRA, Alan José de Oliveira. Termo de Ajustamento de Festão no controle eficiente da Administração Pública. Rev. Controle, Fortaleza, v. 15, n.2, p. 235-258, jul/dez, 2017. Disponível em: <http://revistacontrole.ipc.tce.ce.gov.br/index.php/RCDA/article/view/393>.

[12] BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB: A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 203-224, nov. 2018. p. 221.

[13] Ibidem, p. 208.

[14] Segundo Cretella Júnior, “a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem corno bonus administrator. Foi negligente. Às vezes imprudente ou até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito, se não previu a possibilidade de concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação, física ou mental”. CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1966, V. 1-5; 1969, V. 6 e 7; 1970, V. 8; 1972, V. 10.
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