Foto: Parque Lage - Fonte: Wikipedia
No presente artigo será
abordado um caso concreto em que foi preciso utilizar regras de Direito
Internacional Privado para definir a lei aplicável à situação. Na sequência,
haverá uma análise dos principais conceitos desse ramo do direito que foram
aplicados no caso e, por fim, será trazida jurisprudência atual sobre o tema.
Um caso emblemático acerca
da aplicação do Direito Internacional Privado é o da cantora lírica Gabriella
Bezansoni Lage. Ela, italiana, casou-se, em 1925, com Henrique Lage, empresário
de nacionalidade brasileira, e passaram a morar na cidade do Rio de Janeiro. Em
homenagem a ela, o marido construiu um palacete. Contudo, após a morte dele, a cantora
voltou a morar em seu país de origem.
Um tempo depois, ela veio a
falecer em Roma, deixando um testamento particular, obedecendo às regras
italianas, feito à mão e sem a presença de testemunhas, no qual dispunha sobre
bens situados no Brasil.
De acordo com as leis
italianas, o testamento era regular, devendo ser cumprido no Brasil. O juiz
brasileiro, à época, declarou-se competente para julgar a causa sucessória, pois
os bens estavam situados no território nacional.
Igualmente, acerca do
conteúdo do documento, entendeu a justiça brasileira que o documento não feria
a ordem pública brasileira. A discussão, portanto, era sobre a validade da
forma utilizada para sua elaboração, pois a legislação brasileira exigia cinco
testemunhas para a validade do testamento.
O
caso chegou ao STF, que decidiu pela aplicabilidade da lei italiana sobre os
requisitos formais, ou seja, a lei do local onde o testamento foi produzido,
segundo o princípio do locus regit actum,
constante do artigo 9º, § 1º da LINDB: “Art.
9° Para qualificar e reger as
obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1º
Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma
essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira
quanto aos requisitos extrínsecos do ato”. Desse modo, o testamento foi
considerado válido porque seus elementos formais estavam de acordo com a
legislação italiana.
Nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de inventário. Testamento
lavrado no Brasil que foi revogado por testamento alemão, de pessoa falecida
domiciliada na Alemanha. Herdeiro pugna para que tenha validade em relação aos
bens deixados no Brasil o testamento aqui lavrado. Impossibilidade.
Reconhecida a validade do testamento lavrado na Alemanha por sentença
transitado em julgado. Contudo, cumpre frisar que, em relação aos bens
situados no Brasil, os mesmos serão regulados pela lei brasileira em benefício
do agravante, sempre que não lhe for mais favorável a lei estrangeira, nos
termos do art. 10º, § 1º da LICC. Decisão agravada que se mantém. NEGADO
PROVIMENTO AO RECURSO.
(TJ-RJ -
AI: 00702032120198190000, Relator: Des(a). MARGARET DE OLIVAES VALLE DOS
SANTOS, Data de Julgamento: 04/12/2019, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL)
Pois bem. O primeiro
conceito relevante ao tema é o referente a qual lei será aplicável para o
conteúdo do testamento. Em regra, quanto ao conteúdo do Direito Sucessório, a
lei aplicável é a do último domicílio daquele que deixou o testamento, ou seja,
essa é a regra de conexão. Segundo Nádia de Araújo, nas questões de sucessões
com bens em vários países, haverá uma pluralidade de soluções, porque cada país
terá uma regra de conexão local. Se houver bens no Brasil, o Código de Processo
Civil determina que a competência para julgar a ação de inventário e partilha
será brasileira (art. 23, II, CPC). A partir disso, será definida a lei
aplicável dentro daquele processo.
Já a capacidade que os
herdeiros têm para suceder (questões de herdeiros ou legatários, regras de
indignidade), tem como elemento de conexão o domicílio destes, conforme artigo
10, § 2º da LINDB. Ressalta-se que, para as disposições testamentárias e para
seu conteúdo, aplica-se a lei do último local de domicílio do falecido, ou
seja, o direito da época do falecimento.
De outro lado, tem-se as
regras concernentes à forma do testamento – sua validade, forma prescrita ou
não defesa em lei. Nesse aspecto, é aplicável a lei do lugar onde o testamento
foi elaborado. Desse modo, acerca dos seus elementos formais, caso o testamento
tenha sido feito no exterior, aplica-se a lei estrangeira; ao passo que o
testamento feito em solo brasileiro será regido pela lei pátria.
Sobre
o exposto, há jurisprudência nesse sentido:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE
INSTRUMENTO. PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO. AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA.
TESTAMENTO. COMPETÊNCIA. HERANÇA. APRESENTAÇÃO DE NOVAS DECLARAÇÕES. PROMOÇÃO
DA CITAÇÃO DAS HERDEIRAS E LEGATÁRIAS FALTANTES. EXCESSO NAS DISPOSIÇÕES
TESTAMENTÁRIAS DEIXADAS PELO AUTOR DA HERANÇA. BENS SITUADOS NO ESTRANGEIRO.
RECURSO IMPROVIDO. 1. Agravo de instrumento interposto contra a decisão
proferida em ação de inventário e partilha. (...) 2. A apresentação de novas
declarações não importa, de plano, em prejuízo à agravante, na medida que está
entre seus encargos como inventariante (art. 620, CPC). 3. O reconhecimento da
validade do testamento deixado pelo de cujus, por intermédio de procedimento de
jurisdição voluntária (2010.01.1.043567-6) não afasta a competência do Juízo
sucessório para apreciar a regularidade da partilha. 4. Não há plausibilidade
na alegação da agravante, quando sustenta que a legítima não teria sido
atingida, por causa dos bens em nome do extinto situados no estrangeiro. 5.
No presente inventário somente poderão ser incluídos os bens situados no
Brasil, e sobre os mesmos devem ser observados os limites da legítima (art.
1.846, Código Civil). 6. Os bens situados no estrangeiro estão além da
competência jurisdicional nacional, consoante disposto no art. 23, II, do CPC,
e do art. 12, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(antiga Lei de Introdução ao Código Civil), que restringem a competência da
jurisdição brasileira aos bens que estiverem no país. 6.1. Ou seja, os bens do
falecido que estiverem no exterior dependem da homologação de sentença
estrangeira perante o Superior Tribunal de Justiça, para que possam a integrar
a partilha (art. 105, i, i, Constituição Federal). 7. Recurso improvido.
(TJ-DF
07152783820178070000 DF 0715278-38.2017.8.07.0000, Relator: JOÃO EGMONT, Data
de Julgamento: 25/04/2018, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE
: 30/04/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
No que tange à realização do
testamento, seja em território tupiniquim seja em outro Estado, a legislação –
pátria – é clara em delimitar a forma para realização do testamento, conforme
bem demonstrado anteriormente, todavia, o problema maior enfrentado pela
legislação brasileira, recaí no fato do falecido ter deixado patrimônio no
exterior e tenha vindo a falecer em território nacional.
Diante
deste problema e, com base nas regras do Direito Internacional Privado, o STJ
pacificou o entendimento no que tange à competência do Poder Judiciário em
analisar o cumprimento do testamento deixado pelo de cujus quando houver bens
imóveis existentes no exterior.
Assim, a Corte Superior brasileira entendeu que não compete ao Judiciário
brasileiro decidir sobre esses bens, mesmo que o último domicílio do falecido,
bem como o local de sua morte ou a realização do testamento tenha sido feito em
território nacional.
Sobre isso, cumpre mencionar
a decisão do STJ sobre um imóvel localizado na Alemanha, o qual foi transferido
unicamente para a tia residente lá e, que, posteriormente os seus sobrinhos
descobriram que a tia teria vendido o imóvel, o qual seriam eles os verdadeiros
proprietários do referido bem.
Segundo o relator do
recurso, Ministro Marco Aurélio Bellizze, a discussão
(...) no caso era definir qual
estatuto deveria ser aplicado à sucessão de bem situado no exterior: se a lei
brasileira, que considera a lei do domicílio do morto, ou se a lei da Alemanha,
onde está o imóvel e onde o testamento foi feito.
Para o relator, a prevalência da lei
do domicílio do indivíduo para regular suas relações jurídicas pessoais não é
absoluta. A conformação do direito internacional privado exige a ponderação de
outros elementos de conectividade que deverão, a depender da situação,
prevalecer sobre a lei de domicílio do falecido.
No caso, observou o ministro, não
bastasse o imóvel, objeto da pretensão de sobrepartilha, encontrar-se situado
na Alemanha, circunstância suficiente para tornar inócua a incidência da lei
brasileira (a do domicílio da de cujus), a autora da herança, naquele país
deixou testamento lícito, segundo a lei alemã regente à época de sua confecção,
conforme decidido pelo órgão do Poder Judiciário alemão.
(...) Bellizze apontou que a própria
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) dispõe no seu artigo
8º, caput, que as relações concernentes aos bens imóveis devem ser reguladas
pela lei do país em que se encontrem. (IBDFAM, 2015).
Complementa, ainda, que “A lei brasileira, de domicílio da autora da
herança, não tem aplicação em relação à sucessão do bem situado na Alemanha
antes de sua consecução, e, muito menos, depois que o imóvel passou a compor a
esfera jurídica da única herdeira”. Aplicando em síntese, o “princípio da
territorialidade”, tendo em vista a localização do bem imóvel.
De
acordo com a doutrinadora Nádia, no Brasil vigora a regra de conexão, ou seja,
do “último domicílio do de cujus”,
independentemente da situação que se encontre eventuais bens deixados por ele.
Ressalta, ainda, que, esse sistema é utilizado por outros países também. E, por
fim, complementa “(...) Se uma determinada sucessão tiver bens em mais de um
país, não será possível aplicar o princípio da universalidade sucessória, pois
haverá pluralidade de foros sucessórios.” Segundo ela, isso acontece porque a
norma processual tem competência absoluta na maioria dos países e, por este
motivo, eventual decisão proveniente de país diverso do qual se encontra os
imóveis, não serão consideradas para processamento e destinação desses bens.
Portanto, resta saber que, se
o testamento foi realizado no Brasil, caberá ao judiciário brasileiro, ou, em
país estrangeiro, sendo a lei daquele país competente seja o último domicílio
do de cujus ou o país onde o testamento foi elaborado. Ainda, em relação aos
bens imóveis deixados pelo de cujus, se esses bens foram deixados no Brasil,
será o juiz brasileiro competente e a lei aplicável a brasileira. Por outro
lado, em relação a bens imóveis deixados no exterior, esses estão além da competência
do judiciário brasileiro. Por fim, os bens deixados no exterior dependem de
homologação da sentença estrangeira pelo STJ para compor a partilha.
REFERÊNCIAS
[2]
RAMOS, André de Carvalho; GRAMSTRUP, Erik Frederico. Comentários à Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. São Paulo: Saraiva, 2016.
[3]
DEL’OMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Privado. 10. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[4] IBDFAM. STJ decide que legislação brasileira não se
aplica à herança de imóvel do exterior. Disponível em
<http://www.ibdfam.org.br/noticias/5639/STJ+decide+que+legisla%C3%A7%C3%A3o+brasileira+n%C3%A3o++se+aplica+%C3%A0+heran%C3%A7a+de+im%C3%B3vel+do+exterior>.
Publicado em 20 de maio de 2015.
*Melissa, Gisele e Juliano são alunos do décimo período de Direito e elaboraram o artigo acima como parte da avaliação da disciplina de Direito Internacional Privado, ministrada pela Professora Michele Hastreiter.
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