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09/06/2020

Me indica um livro: A Cruel Pedagogia do Vírus


Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.[1]

            Em abril deste fatídico ano de 2020, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos publicou o livro A Cruel Pedagogia do Vírus[2]. Uma breve, porém densa, obra em que elencou lições que poderíamos tirar deste momento de pandemia global em que vivemos. O autor tentou nos trazer clareza sobre como contornar esta calamidade, mostrando que, para tal, depende-se muito mais de uma mudança estrutural na postura e pensamento da humanidade em relação ao mundo, do que apenas o combate à doença em si. Santos dividiu o livro em cinco capítulos, e destacaremos os pontos que julgamos mais importantes a serem refletidos.

Conhecimentos: conhecidos e desconsiderados
            O primeiro capítulo Vírus: tudo que é solido se desfaz no ar faz uma clara referência à obra Tudo que é sólido se desmancha no ar do filósofo estadunidense Marshall Berman[3] responsável por promover uma densa reflexão crítica da modernidade que, por sua vez,  retirou o título do Manifesto Comunista de Marx e Engels (citação da qual iniciamos este presente texto). E, tal propositura não poderia ser mais atual, pois nos situa diante da pandemia, evidenciando o enfrentamento inevitável de nossas estruturas sociais que, a cada dia, demonstram o quão suas bases são frágeis e ineficazes. Assim, o sociólogo português nos propôs retirar deste confronto com a realidade pandêmica — que denunciou os extremos e evidenciou nossas feridas sociais — alguns conhecimentos.
            O primeiro deles refere-se a crise enquanto normalidade, enfatizando que a instabilidade não é uma novidade do covid-19, pois vivemos em um estado permanente de crise desde a ascensão neoliberal do capitalismo na década de 1980. O sociólogo explicou que, por essência, crises são transitórias e passageiras, o que faz com seu status permanente seja paradoxal. Mas, quando se propõe a tal permanência, a crise passa de sintoma a ser curado para se tornar a doença causadora de todo sintoma subsequente. Basta olharmos para a contínua, e crescente, desigualdade social instaurada por um sistema econômico que legitima a concentração de riquezas e que nega, bem como contribui para o colapso ecológico que vivemos.
Outro ponto trabalhado é a sensação de segurança que é aniquilada pelo surto viral. Por se tratar de uma pandemia — ou seja, por compreender todo o povo —, o fato de haver alvos específicos não isenta a necessidade de uma comunidade solidária que demanda o isolamento coletivo. E, tal isolamento exigiu uma mudança abrupta na forma de consumir, trabalhar e conviver. Denunciando o que o Sousa Santos denominou de elasticidade social, comprovando que há alternativas às imposições do hipercapitalismo e que, infelizmente, ao invés de serem debatidas no âmbito político (que há muito foram expulsas da pauta de discussões), tais alternativas constantemente têm emergido de crises.
O autor apontou, ainda, que as medidas enérgicas impostas pelos Estados para controlar a disseminação do vírus, para muitos, foram tomadas como posturas antidemocráticas. No Brasil, tivemos grandes discussões sobre o tema dada a dissonância entre os governos estaduais e federal em relação a quais medidas seriam adotadas para o enfrentamento da epidemia e para a proteção da economia nacional. Além da importância colaborativa das esferas pública e privada, Sousa Santos ressaltou que a letalidade costuma ser menor em países democráticos que prezam pela transparência de informações aos seus cidadãos.
Como podemos notar, são conhecimentos que o Brasil, não tem aplicado (seja por falta de testagem, seja por falta de seriedade do governo federal com a pandemia e o número crescente de mortes que diariamente aumenta) demonstrando porque a credibilidade de nosso país é lamentável internacionalmente. É sabido que processos antidemocráticos têm sido cada vez mais frequentes em democracias já instauradas, e censurar o acesso à informação é uma das formas mais eficazes para questionarmos se de fato nosso Estado está sendo democrático. Para contribuir com tais incertezas, basta observarmos a Medida Provisória nº 928, de 23 de março de 2020[4], que suspendeu os prazos de resposta da Administração Pública quanto aos pedidos de acesso à informação[5], ou mesmo, o nosso Ministério da Saúde que tem sido displicente quanto a divulgação de dados sobre casos e óbitos por covid-19[6] em nosso país.

Sobre os renegados do Sul
O sociólogo finalizou o primeiro capítulo falando da sociologia das ausências, que se destaca pelo protagonismo de pautas sobre a pandemia que acaba por criar sombras acerca de outros problemas que já existiam e que, com o covid-19, tiveram suas pautas de debate suspensas e suas demandas negligenciadas.

[...] os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria), há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os internados não podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível. Como estas condições prevalecem igualmente na fronteira sul dos EUA, também aí está a América invisível. E as zonas de invisibilidade poderão multiplicar-se em muitas outras regiões do mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de nós. Talvez baste abrir a janela.[7]

Nesta esteira, no capítulo três, intitulado A sul da quarentena, o autor destinou-o para apontar os grupos de vulnerabilidade que, mesmo antes da pandemia, já sofriam com a exploração capitalista, a discriminação racial ou sexual (ou ambas), bem como as demais formas de dominação. Tais grupos tiveram suas necessidades potencializadas e violações agravadas, e Sousa Santos nomeou-os de Sul, sendo eles: as mulheres; os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos; trabalhadores da rua, como vendedores ambulantes; a população em situação de rua e sem abrigos; os moradores das periferias pobres das cidades e favelas; como apontado anteriormente, campos de internamento para refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente; deficientes; idosos; população carcerária; e pessoas com problemas de saúde mental, a exemplo, a depressão.[8]

A pandemia enquanto uma alegoria
Três seres invisíveis e um quarto ser sem-abrigo transcendental, três reinos e três unicórnios. No segundo capítulo[9] da obra, o sociólogo nos apresentou a pandemia enquanto uma alegoria e nela o autor enfatizou como ela pode clarificar e materializar-se nos permitindo enxergar, interpretar e avaliar o “futuro da civilização em que vivemos”[10] que, do jeito que está, não parece ir nada bem.
A metáfora inicia-se com a apresentação dos três seres onipresentes e oniscientes, que pode ser grande como uma representação metafísica de divindade, ou pequeno como o próprio vírus, ou, ainda, disforme, como os mercados.

Apesar de omnipresentes, todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o vírus, nos corpos; deus, nos templos; os mercados, nas bolsas de valores. Fora desses espaços, o ser humano é um ente sem-abrigo transcendental. Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano e toda a vida não-humana de que depende não podem deixar de ser iminentemente frágeis.[11]

Sousa Santos situou os três seres invisíveis e imprevisíveis no reino da glória ou perdição infernal e só tem acesso a ele os mais santos, jovens e ricos. Abaixo situa-se o reino das causas habitado por três unicórnios[12] poderosos, dominadores e selvagens: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Estes, também são onipresentes nas relações humanas e invisíveis por conta de uma educação e doutrinação que alimentam suas existências.
Por fim, o sociólogo narrou o reino das consequências onde o poder dos poderosos invisíveis se manifesta tornando-se visível para grande parte da população. Nele duas paisagens se formam: “a escandalosa concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/iminente catástrofe ecológica”[13].

As lições da pedagogia do vírus
            Em sua análise, Sousa Santos enumerou algumas lições iniciais que podemos tirar deste período caótico, e a primeira delas referiu-se ao papel da política e sua mediação em relação as crises, e como o tempo e modo de atuação interferem de forma fatal na vida da população. No Brasil, em abril — período de publicação do livro —, o número de casos notificados eram de 6.932 e de óbitos era de 247. Hoje são 710.887 confirmados da doença e 37.312 mortes, com grandes problemas em relação a transparência dos dados por parte do governo federal, contribuindo com a desinformação e descaso da população com a seriedade da pandemia que só aumenta, e não diminui.
            A segunda lição ressaltou que há discriminação também em relação a ação pandêmica que, assim como as demais violências sofridas por aqueles nomeados outrora pelo filósofo argentino, Enrique Dussel, de oprimidos (mulheres, negros, indígenas, imigrantes refugiados, pobres, idosos e marginalizados), também segrega e mata. E nosso país demonstra com eficiência os males da discriminação potencializados nestes tempos de covid-19 em que empregadas domésticas não são dispensadas de seus ofícios em período de isolamento social e, quando o são, o afastamento se dá sem remuneração. Nesta seara, outra lição apontada pelo intelectual português diz respeito à vivacidade e ao reforço do colonialismo e patriarcado intensificados pela crise. Não trataremos aqui da dolorosa questão racial implícita neste câncer social chamado racismo e classismo que nosso país insiste em alimentar, para tal, recomendamos a leitura da matéria publicada neste último domingo (07) por nosso colega de redação Alan José de Oliveira Teixeira[14].
            A lição seguinte diz respeito ao modelo social falho que o capitalismo reitera não apenas diante de crises, mas em seu habitual modus operandi pautado na competição, sujeição e desigualdade. A obra de Sousa Santos enfatizou que pandemia iluminou, como um holofote em um palco em que a peça se chama “Os males do capitalismo”, a ascensão do mercado sobre os demais princípios de regulação das sociedades modernas — o Estado e a comunidade.

Possíveis soluções quase impossíveis...
            O último capítulo possui uma carga de esperança acerca de possíveis medidas a serem adotadas e das alternativas que a situação pandêmica mostrou em termos de consumo, produção e proteção ambiental. Mas, com lucidez, Sousa Santos relembrou que antes do vírus muitas manifestações acerca da desigualdade social e corrupção ocorriam no globo. E, destacou que, muito provavelmente, finalizada a quarentena os saques e protestos retornariam com grande força, uma vez que a crise potencializou a revolta e a pobreza, e vemos isso diariamente na mídia[15].
            O sociólogo afirmou a importância da cidadania organizada[16] em unir as questões relativas a processos civilizatórios com as pautas políticas, outrora separadas simbolicamente pela queda do muro de Berlim. Por processos civilizatórios o autor compreende o debate, reflexão crítica e ética acerca dos caminhos enquanto humanidade em relação a proteção e manutenção do ecossistema do global. Sem a seriedade e o debate na esfera pública e privada acerca de meios e alternativas ao sistema de produção predatório e compulsivo que vivemos este vírus será apenas o primeiro de outros que decretarão o fim de toda a vida em nosso planeta.
            E para a defesa da vida, os processos políticos precisam estar comprometidos com os processos civilizatórios, demandando uma ruptura epistemológica, cultural e ideológica. Mas a proposta de Sousa Santos pressupõe um esforço solidário, dialógico e fraterno em escala individual, social e política (municipal, estadual, nacional e internacionalmente), algo que — em meu humilde e desgostoso desabafo — temo não conseguirmos estabelecer.



[1] MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, 1848. Porto Alegre: L&PM, 2009.
[2] SANTOS, Boaventura Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. 33 p. [Imagem: capa da edição Boitempo]
[3] BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Editora Schwarcz, 1986. 385 p.
[4] BRASIL. Medida Provisória nº 928, de 23 de março de 2020. Brasília: Presidente da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv928.htm>. Acesso em: 05.06.2020.
[5] A suspensão, se aplica àquelas respostas que dependem de acesso presencial de agentes públicos para sua realização, bem como, aos setores e agentes envolvidos com as medidas de enfrentamento da emergência instaurada pela epidemia do coronavírus.
[6] MACHADO, D.; BRANT, D. Ministério da Saúde agora diz que vai publicar total de mortes e casos de Covid-19. Brasília: Folha de São Paulo, jun. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/ministerio-da-saude-agora-diz-que-vai-publicar-total-de-mortes-e-casos-de-covid-19.shtml>. Acesso em: 08.jun.2020.
[7] SANTOS, 2020, p. 8-9.
[8] Ibid., p. 15-21.
[9] A trágica transparência do vírus.
[10] Ibid., p. 10.
[11] Ibid, p. 11.
[12] A referência simbólica aos unicórnios por Sousa Santos se dá pela leitura de Leonardo da Vinci, que os compreendia como seres “destemperados, ferozes e incapazes de se dominar” (SANTOS, 2020, p. 11), porém, que sucumbem a astúcia daqueles que souberem identificá-los.
[13] Ibid, p. 13.
[14] TEIXEIRA, Alan J. de O. Opinião – Black Lives Matter, as duas pandemias e a luta que nunca acaba: sobre o que é importante. Curitiba: UNICURITIBA Fala Direito, 2020. Disponível em: <http://unicuritibafaladireito.blogspot.com/2020/06/opiniao-black-lives-matter-as-duas.html>. Acesso em: 07.06.2020.
[15] Na supervalorização do mercado ao invés de vidas humanas — pessoas, com famílias, vivências e sonhos — por parte das elites empresariais e do governo federal de nosso país; por como a pandemia pode estar sendo utilizada como instrumento genocida da população negra e pobre de nosso país; o descaso com a população carcerária que encontram-se em situação de alto risco de proliferação da doença; entre tantos outros males que sempre existiram e que, como já enfatizado neste texto insistentemente, estão em ebulição.
[16] “[...] partidos políticos, movimentos e organizações sociais, mobilizações espontâneas de cidadãos e cidadãs” (SANTOS, 2020, p. 30)
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26/04/2020

Opinião - Em tempos de crise, lutemos pela poesia!




“E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?”[2]

            A Terra, ao revolve-se sobre si, nos permite conhecer aquilo que nomeamos de dia e noite. Em tempos de enfermidade epidêmica na política, na economia e na saúde, tal movimento rotacional se dá por um caminhar contínuo dos ponteiros do relógio ao ritmo de incertezas, indignações e reflexões. E diante de tais aflições, uma entrevista do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin[3], para a Folha de São Paulo, pode nos ajudar a elucidar um caminhar possível para o enfrentamento de problemas complexos da vida em sociedade.  
            O sociólogo advertiu acerca dos perigos em sustentarmos uma política voltada para o imediatismo e para a urgência de resultados financeiros. Neste aspecto, Morin não se referiu a um imediatismo e urgência como medidas de resolução a crises já instauradas, mas sim em como tais posturas dentro do âmbito político são causadoras de instabilidades e autodegradação da humanidade. Portanto, para ele, uma política voltada para o imediatismo e a urgência conferem um grande potencial lesivo naquilo que de fato é essencial: o ensino e desenvolvimento de uma consciência humana sobre a própria humanidade.
A supremacia do dinheiro resultou na crise democrática que vivemos, evidenciado pela proliferação da corrupção e, consequentemente, na ausência de confiança em nossos governantes. Para Morin, a desconfiança no Estado Democrático se instaura no seio da corrupção com o vazio do pensamento, abrindo as portas para a proliferação de regimes neoautoritários.
O filósofo mencionou como a imposição de regras liberais econômicas absolutas, propostas inicialmente pelos governos de Margaret Thatcher[4] e Ronald Reagan[5], foram fundamentais para a soberania do dinheiro sobre a política. E essa, para o filósofo francês, é a constituição da crise da democracia: a sujeição da política à dominação de um sistema econômico voltado exclusivamente para o lucro. Tal sujeição, “não tem consciência do destino da humanidade[6], ou como colocado por Boaventura Sousa Santos, inviabiliza o debate acerca dos processos civilizatórios.

A prova é a degradação da biosfera, que é evidente, e que vivemos na degradação da Amazônia ou na poluição das cidades, por exemplo, mas que é ignorada em detrimento de um benefício imediato. Assim, damo-nos conta de que vivemos em uma época de cegueira e sonambulismo. Isso participa da crise da democracia.[7]

Para Morin, agimos por muito tempo como sonâmbulos, acreditando que os problemas futuros — oriundos do imediatismo e urgência em se acumular riquezas sem medir as consequências, ignorando o potencial destrutivo da exploração desmedida da natureza e do próprio ser, que se dão e se mantém pelo desequilíbrio social e político — nunca chegariam. O combate ao sonambulismo, para o sociólogo, só é possível pelo regate da consciência enquanto comunidade e enquanto ao destino da humanidade.
A resolução de grandes problemas, requer uma pluralidade de conhecimentos que possibilitam um olhar amplo acerca da complexidade do conflito que se apresenta. A crise do pensamento e a crise da democracia em que vivemos, para o sociólogo origina-se da carência de reflexão política. Morin salientou que tal crise do pensamento não nega a existência de grandes pensadores políticos como Karl Marx e Toqueville, porém houve um distanciamento do debate intelectual na aplicabilidade e prática dessas reflexões no exercício político. Neste ponto, podemos traçar um diálogo com o posicionamento dado por Sousa Santos[8] acerca dos problemas decorrentes do distanciamento do debate político com o debate civilizatório. Este último debate, é entendido pelo sociólogo português como constituído de reflexões críticas acerca de alternativas políticas, econômicas, sociais e culturais que rompeu simbolicamente com o debate político a partir da queda do Muro de Berlim.
Para Sousa Santos, a articulação de ambas as esferas — civilizatória e política — é basilar para a constituição de uma sociedade mais humana e humilde[9]. A academia possui densa produção intelectual que alimenta o debate ético em termos daquilo que Santos nomeia de processos civilizatórios, que se inserido ao processo político possibilitará grandes saltos para a transformação social. Tal transformação, para Morin, só é possível pela instauração de um senso de solidariedade e proteção de interesses coletivos de perspectiva global, humanitária e universal. Para isso, a preservação da resistência e dos valores universalistas, humanistas e planetários são fundamentais.
Morin, ainda pontuou em sua entrevista que a incerteza — geradora de angústias e provedora de instabilidades institucionais férteis à ascensão de políticas e políticos autoritários —, deve ser enfrentada com coragem pela sociedade, pautando-se na fraternidade. Para isso, o ensino acerca do viver, que permitem o conhecimento humano e humanitário, é basilar para o enfrentamento de crises, superação de dogmas e aceitação de certezas e incertezas.
Temos dificuldade de enfrentamento e solução de problemas diante da vida, tanto enquanto indivíduo, como enquanto cidadão. E exatamente por isso o filósofo defende um ensino que debata e investigue a identidade humana para que de fato uma consciência humana se funde e que obstáculos que violam o bem estar coletivo, como a corrupção e a sujeição ao dinheiro em detrimento da saúde pública, da educação e da cultura, sejam superados.

Sobre poesia eu não penso, eu simplesmente faço: a minha poesia nasce do espanto. Qualquer coisa pode espantar um poeta, até um galo cantando no quintal. Arte é uma coisa imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida. E quem diz que fazer poesia é um sofrimento está mentindo: é bom, mesmo quando se escreve sobre uma coisa sofrida. A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A arte existe porque a vida não basta.[10]


            O escritor e crítico de arte Ferreira Gullar compreendia o potencial reflexivo da poesia para o entendimento do ser e do viver. Uma vida, sem ela, ficaria restrita ao que Morin definiu de prosa — relativa à sobrevivência, ao cotidiano repetitivo instaurado pelo processo de industrialização e a burocratização de nossas instituições em que temos o compromisso da sujeição —, causadora da degradação da qualidade de vida.
O entendimento de prosa proposto pelo filósofo francês, dialoga com a noção de esfera do agir racional-com-respeito-a-fins da Teoria da Ação habermaziana. Tal agir pauta-se em resultados e no lucro, prezando pela celeridade do desenvolvimento econômico, próprio de um mundo tecnicizado. Mas, esta é apenas uma das duas esferas do agir que compõem as atividades humanas, sendo a outra esfera denominada de interação. Nesta última reside aquilo que o filósofo alemão compreende por dimensão genuína da espécie humana: a linguagem e a nossa capacidade comunicativa. Na esfera da interação é onde a reflexão crítica, o debate intelectual e a poesia se manifestam.
A poesia, para Morin, corresponde à resistência do âmbito privado[11] em relação à hegemonia da prosa. Ela se dá nas relações de afeto e no jogo (que podemos traduzir por lazer, prazer, arte, produção de conhecimento e interações próprias do viver) que promovem a manutenção da qualidade de vida.
Vivemos num processo de despolitização que se funda na compressão da esfera interativa (a poesia) pela esfera do agir-com-respeito-a-fins (a prosa). Mais trabalho, mais consumo e mais exploração desmedida de recursos naturais para a concentração de renda, resultam na autocoisificação do homem que o distanciam de sua identidade humana, da criatividade, do diálogo, do viver fraterno em comunidade. Portanto, o combate à degradação política e democrática que estamos presenciando só é possível pela poesia.

Poetize-se!
E permaneça em casa.


[1] Estudante do Curso de Direito do Unicuritiba, e integrante do Grupo de Pesquisa de Ética, Política e Democracia da instituição.

[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 40. [fragmento do poema Nosso tempo, a Oswaldo Alves.]

[3] PASSOS, Úrsula. Seguimos como sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, diz Edgar Morin. São Paulo: Folha de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/seguimos-como-sonambulos-e-estamos-indo-rumo-ao-desastre-diz-edgar-morin.shtml>. Acesso em: 24.04.2020.

[4] Primeira-Ministra do Reino Unido de 1979 a 1990.

[5] 40º presidente dos Estados Unidos, de 1981 a 1989.

[6] MORIN in PASSOS,2019, p. 3.

[7] MORIN in PASSOS,2019, p. 3.

[8] SANTOS, Boaventura Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. 33 p.

[9] SANTOS, 2020, p. 30-31.

[10] TRIGO, Luciano. 'A arte existe porque a vida não basta', diz Ferreira Gullar. Paraty: G1, 07/08/2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html>. Acesso em: 25/04/2020.


[11] Cabe ressaltar a distinção entre privado e íntimo, no âmbito da psicanálise. De acordo ao professor e psicanalista Christian Dunker, ao se pensar a mistura da esfera pública com a privada, a zona intermediária da intimidade se perde. Privacidade é aquilo que pertence ao indivíduo e tem sua privacidade regulada por ele. A intimidade como o nome mesmo o diz, é mais íntimo, aquilo que de fato corresponde ao que o indivíduo é, seus anseios e angústias. Nesse aspecto, podemos pensar numa dissolução dentro do próprio âmbito privado pela planificação/achatamento do ser pela prosa, proposta por Morin, em que o íntimo não se revela naquilo que apresentamos enquanto privado.
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