Por Nicoly Schuster.
Fundamental para todo o Direito é o princípio da segurança jurídica, o qual pode ser entendido sob dois prismas: primeiro, é a garantia de que, se tudo permanecer o mesmo, os negócios feitos entre as pessoas serão cumpridos e, segundo, caso o não sejam, pode-se buscar a tutela jurisdicional para que os faça cumprir. O princípio, portanto, pauta-se na ideia de confiança entre os contratantes - de que cumprirão o acordo - e no Poder Judiciário - que prestará sua tutela em caso de descumprimento do pactuado. Nesse sentido, o professor e jurista Eros Roberto Grau, ao falar sobre as implicações da instalação de um vínculo contratual afirma que
cada parte tem a aparente certeza e a segurança
que dele deflui, de que, na hipótese de descumprimento do contrato, poderá
recorrer a meios jurídicos adequados à obtenção de reparação por esse
descumprimento, ou mesmo a execução coativa da avença. (2001, p. 424)
Esse princípio tem relação com um outro, o qual
determina que o contrato faz lei entre as partes, representado pelo brocardo
latino pacta sunt servanda - que
significa, em linhas gerais “os acordos devem ser cumpridos”. A noção de
confiança entre os contratantes, portanto, decorre da certeza de que aquilo que
foi convencionado será cumprido. Deste modo, em condições de normalidade, esses
são os pilares que devem reger as relações contratuais entre particulares.
Entretanto, como é sabido, no direito nenhum
princípio é absoluto, de modo que em alguns casos, por conta da característica
imprevisível de determinados acontecimentos, nem sempre será possível que
permaneçam inalteradas as condições sob as quais foi realizado um pacto. É
inegável que em tempos de pandemia, sobrevém situações imprevisíveis e
incontroláveis que acarretam desequilíbrio entre o cumprimento das prestações
assumidas pelas partes de uma relação contratual, tornando extremamente difícil
o adimplemento do que foi convencionado.
Toda a economia tem sofrido, em escala global,
as consequências ocasionadas pela pandemia do novo coronavírus. A
obrigatoriedade do fechamento de estabelecimentos, a restrição da circulação de
pessoas e restrição de eventos que gerem aglomerações são exemplos de fatores
que afetaram diretamente a renda das pessoas e de estabelecimentos -
especialmente os pequenos. Com a redução de renda ou receita, consequentemente,
ficou comprometida a capacidade das pessoas de honrarem os seus contratos.
Tendo em vista essas situações extraordinárias e
imprevisíveis, o Código Civil brasileiro prevê algumas hipóteses que, de certa
forma, relativizam o princípio que determina que “o pactuado deve ser cumprido”.
Trataremos aqui de três delas: da não responsabilização do devedor por
prejuízos em caso de força maior (art. 393, CC); da resolução por onerosidade
excessiva (art. 478) e da possibilidade de revisão contratual (arts. 317, 479 e
480).
O art. 393, do Código Civil, prevê a
desresponsabilização do devedor em caso de prejuízos decorrentes de caso
fortuito ou força maior, que são aqueles acontecimentos impossíveis de evitar
ou impedir sua ocorrência. Esses [caso fortuito ou força maior] são espécies do
gênero caso fortuito externo, que
refere-se aos riscos que não se
relacionam com o objeto das prestações. Nesse caso, é afastada a
responsabilidade civil do devedor, ou seja, ele não mais responde com o seu
patrimônio pelos danos causados. Note-se que somente a responsabilidade pelos danos é afastada, devendo, além disso,
ser analisada se existe ainda a possibilidade de cumprir a prestação avençada
ou não.
Apesar disso, nem sempre um evento imprevisível
é capaz de afastar a responsabilidade civil do devedor. Caso tenha sido
convencionado que uma das partes tomaria para si a responsabilidade por
determinado acontecimento (art. 393, p. ún, CC), ou, ainda, se for entendido
que o caso fortuito faz parte do risco inerente ao desempenho da atividade
objeto da contratação (Enunciado 443, da V Jornada de Direito Civil) não há
afastamento da responsabilidade civil, vez que se caracteriza caso fortuito interno.
O Código Civil de 2002 prevê, ainda, mecanismos
de resolução ou revisão contratual, com base na teoria da imprevisão. A teoria estabelece que, caso exista
acontecimento superveniente ao momento da celebração do contrato, que faça com
que se altere drasticamente o equilíbrio entre as partes a ponto de comprometer
o adimplemento das prestações assumidas, o contrato pode ser resolvido ou
revisto.
As hipóteses de resolução por onerosidade
excessiva encontram-se dispostas no art. 478 do Código Civil, que estabelece o
seguinte
Art. 478. Nos contratos de execução continuada
ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,
com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da
sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Aqui, retoma-se a ideia de riscos que são
inerentes à natureza do objeto contratado e aqueles que não tem relação com as
prestações avençadas. De acordo com o enunciado 366, da IV Jornada de Direito
Civil, “O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva
é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da
contratação.” Além disso, note-se que a resolução somente é possível em
contratos de execução continuada (aqueles nos quais são estabelecidas
prestações contínuas) ou diferida (aqueles em que a prestação ocorrerá uma
única vez em algum momento futuro).
Já a revisão contratual é tratada pelos arts.
317, 479 e 480, os quais, combinados, estipulam que a prestação anteriormente
avençada pode ser modificada ou reduzida em caso de acontecimento que venha a
tornar desproporcional o cumprimento de determinada obrigação. Esse artifício
permite que seja evitada a resolução contratual e que se restabeleça o
equilíbrio entre os contratantes. Assim, dispõe o Código Civil que
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a
modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes,
poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de
executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução,
poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto
possível, o valor real da prestação.
Como o momento presente é permeado de
incertezas, o Poder Legislativo já se movimentou no sentido de criar de normas
que buscam dar alguma estabilidade para as relações contratuais no contexto da
pandemia gerada pelo novo coronavírus. O Projeto de Lei n° 1179, de 2020, de
autoria do Senador Antonio Anastasia - que tramitou no senado no último mês
(abril) e agora aguarda a sanção ou veto presidencial - estabeleceu algumas
regras que, de certa forma, limitam as hipóteses de revisão contratual durante
e em decorrência da pandemia.
Além de outras disposições que tratam do direito
privado, em seu art. 7º, o Projeto de Lei estabelece que, para as hipóteses de
revisão ou resolução contratual acima tratadas, não são considerados como caso
fortuito o aumento da inflação, a
variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.
Essa disposição, entretanto, não se aplica às hipóteses de resolução das
relações contratuais regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078)
e pela lei que regulamenta os contratos de locação urbanos (Lei nº 8.245).
Considerando a pandemia, percebe-se estar
presente uma grande instabilidade no mundo jurídico, especialmente no que se
refere às relações contratuais, uma vez que nunca se viu uma crise econômica de
tamanha proporção. Aliar a manutenção da segurança jurídica ao equilíbrio entre
as partes de um contrato faz parte dos enormes desafios enfrentados pelos
operadores do Direito nesse momento, o que exige especial atenção à legislação
vigente e a possíveis alterações que certamente terão impacto nas relações
jurídicas dos brasileiros.
REFERÊNCIAS
BRASIL. (2002). Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 janeiro 2002.
_______. Congresso Nacional. Projeto de Lei PL n° 1179/2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Substitutivo da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8111748&ts=1590156573848&disposition=inline> . Acesso em: 23 maio 2020.
GRAU, E. R. Um novo paradigma dos contratos?. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 96, p. 423-433, 1 jan. 2001.
PATRÍCIA, S. C. Contratos instantâneos e continuativos: uma análise da atualidade da classificação à luz da qualificação dos contratos. Revista Quaestio Iuris, UERJ. v. 5, n. 2 p. 310-345, 2012.
STJ. Caso fortuito, força maior e os limites da responsabilização. Disponpivel em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Caso-fortuito--forca-maior-e-os-limites-da-responsabilizacao.aspx> Acesso em: 24 maio 2020.
SENADO NOTÍCIAS. Projeto que cria regime jurídico especial durante a pandemia vai a sanção. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/19/projeto-que-cria-regime-juridico-especial-durante-pandemia-vai-a-sancao?fbclid=IwAR2e2-ZMfYH81g0KVGH2ymxtd1pMpbPrVKIwVwQh7GYJ0w9L-jHZ6TKICWo> Acesso em: 24 maio 2020.
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