11/06/2019

Em pauta: Decreto regulamenta Lei da Segurança Jurídica (Nova LINDB)






Foi publicado hoje no Diário Oficial da União o Decreto nº 9.831/2019[1], que regulamenta os 10 (dez) últimos artigos recentemente acrescidos à antiga Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). As alterações feitas pela Lei 13.655/2018, ocorridas no ano passado, visaram proporcionar segurança jurídica nas decisões públicas.

De início, é importante frisar que a Lei de introdução é uma lei sobredireito, ou seja, prevê a maneira de aplicação da legislação no tempo e no espaço, o seu sentido lógico e as fontes do direito, complementando a Constituição[2]. Assim, serve de norte interpretativo e integrativo do ordenamento jurídico brasileiro, sem, contudo, reger diretamente as ações ou omissões dos indivíduos[3].



1. Motivação e decisão



A LINDB prescreve que a decisão que se baseia exclusivamente em valores jurídicos abstratos (normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração)[4] deve expressar as suas consequências práticas. O grande problema desse mandamento era o modo pelo qual o julgador deveria indicar essas consequências. O decreto buscou solução no seguinte sentido: “o decisor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos[5].

Ou seja, não se exige que a motivação contenha todas as consequências práticas da decisão, em um exercício hercúleo do julgador. Porém, partindo dos autos – para ficarmos com o exemplo judicial –, o magistrado, movido pela obrigação legal de ser diligente, indicará as consequências mais importantes em termos econômicos, político-administrativos e sociais[6].

O Decreto também torna mais clara a referência feita pelo art. 20, parágrafo único, da LINDB, aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade (necessidade e adequação)[7], impondo a observação dos critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade. Mais clara, porém, a referência, mas não sua aplicabilidade, sobre a qual inclusive a indeterminação ainda existe, apesar das tentativas da lei em comento e da vasta bibliografia sobre o tema.

O modo de se indicar as consequências jurídicas e administrativas da decisão de invalidação de atos, contratos, processos ou normas administrativas, segue o mesmo parâmetro. O distintivo reside na exigência de que, sempre que possível, o decisor indique as condições de regularização da situação de invalidade – de modo proporcional, equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.

Ainda sobre as consequências jurídicas e administrativas, o regulamento cria a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão de invalidação em apreço, a qual poderá restringir os efeitos da declaração ou determinar que sua eficácia inicie em momento posteriormente definido. De acordo com o regramento, todo esse raciocínio se guiará pela mitigação dos ônus e perdas tanto dos administrados como da administração pública.



2. Mudança de orientação geral e nova interpretação jurídica



Destaca-se nesse ponto a vedação de se declarar inválida situação plenamente constituída devido à mudança posterior de orientação geral (aqui, “mudança posterior” especifica o que já prescreve o caput do art. 24, da LINDB). A proibição, entretanto, não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futuros de relação em curso.

O Decreto define se tratar de nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento anteriormente consolidado e, para o cumprimento desse dever ou condicionamento de direito, deve-se instituir regime de transição que será motivado conforme o discorrido no item anterior deste texto. Esse regime transitório também deve prever, quando possível:



1) os órgãos e as entidades da administração pública e os terceiros destinatários.



2) as medidas administrativas a serem adotadas para adequação à interpretação ou à nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado.



3) o prazo e o modo para que o novo dever ou novo condicionamento de direito seja cumprido.



Isto é, a partir desses nortes interpretativos, restringe-se a mudança de entendimento, e privilegia-se a segurança jurídica, propósito das alterações ocorridas na Lei de introdução. Sendo a Lei aplicável no âmbito administrativo e judicial, é possível pensar neste como um dos caminhos para o problema da guerra de liminares e do subjetivismo judicial[8].







3. Compensação de danos



Com o objetivo de evitar procedimentos contenciosos de ressarcimento de danos, a decisão do processo administrativo poderá impor diretamente à pessoa obrigada compensação por benefícios indevidos ou prejuízos “anormais ou injustos” resultantes do processo ou conduta dos envolvidos. Para isso, deve-se possibilitar manifestação prévia dos obrigados, e o ajuste terá celebrado por meio de Compromisso.



4. Instrumentos propostos: Compromisso e Termo de Ajustamento de Gestão (TAG)



O Compromisso, assim como o Termo Ajustamento de Gestão, surge na linha das resoluções adequadas de conflitos. No primeiro caso, o instrumento serve para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público.

Assim, entendendo a autoridade ser conveniente a sua celebração, atendidas as condições (oitiva do órgão jurídico, consulta pública e razões de relevante interesse geral), deve o instrumento prever:



1) as obrigações das partes.

2) o prazo e o modo para seu cumprimento.

3) a forma de fiscalização quanto a sua observância.

4) os fundamentos de fato e de direito.

5) a sua eficácia de título executivo extrajudicial.

6) as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.



Importante ressaltar que a decisão pela celebração do Compromisso deve resultar de processo, o qual será instruído no mínimo com : (1) parecer técnico conclusivo do órgão competente sobre a viabilidade técnica, operacional e, quando for o caso, sobre as obrigações orçamentário-financeiras a serem assumidas; (2) parecer conclusivo do órgão jurídico sobre a viabilidade jurídica do compromisso, que conterá a análise da minuta proposta; e (3) minuta do compromisso, que conterá as alterações decorrentes das análises técnica e jurídica acima mencionadas.

Relevante salientar a vedação de desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecido por orientação geral no Compromisso (proibição repetida da LINDB). Conforme o Decreto, o instrumento terá validade com a respectiva publicação.

Quanto ao Termo de Ajustamento de Gestão (TAG), tem o objetivo de corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, e assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e sua assinatura será comunicada ao órgão central do sistema de controle interno. Na hipótese de danos ao erário praticado, por agente público, com dolo ou erro grosseiro, resta impossibilitado o ajuste.

Cumpre-se acentuar que o TAG é instrumento existente no âmbito dos tribunais de contas estaduais há algum tempo. No Estado do Paraná, foi incorporada pelo TCE/PR em 2017[9]. Luciano Ferraz afirma que o TAG, como instituto jurídico-administrativo,



Afina-se com a moderna tendência da Administração Pública e do Direito Administrativo, menos autoritário e mais convencionais, imbuídos do espírito de ser a consensualidade alternativa preferível à imperatividade, sempre que possível […] sempre que não seja necessário aplicar o poder coercitivo[10].



A previsão é interessante. Porém, no caso dos tribunais de contas, em razão dos longos prazos para o cumprimento dos ajustes, não existem dados muito concretos a respeito de sua eficiência[11].

Por fim, é relevante registrar que todas as decisões pela celebração de Compromisso ou de TAG são motivadas da mesma maneira em que se expressam as consequências já aventadas nas primeiras linhas do texto.



5. Responsabilização do agente público e responsabilização por decisões ou opiniões técnicas



O Decreto 9.830/2019 também trouxe especificidades da responsabilização do agente público, a qual só poderá ser imputada nos casos de dolo (direto ou eventual) e erro grosseiro cometidos no desempenho das funções. Tal situação ou circunstância deve ser comprovada no procedimento de responsabilização, sendo insuficiente o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, bem como a expressividade do dano ao erário. Além disso, complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente devem ser consideradas.

Segundo o regulamento, considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Gustavo Binenbojm e André Cyrino sustentam que a mudança em análise implicou, de um lado, a admissão do erro pelo agente público, salvo quando grosseiro[12].

No que diz respeito à responsabilização por opinião técnica, somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião, ou se houver conluio entre os agentes. Segundo os juristas supracitados,



A opinião técnica a que alude o dispositivo compreende a manifestação de advogados públicos no exercício de atividade consultiva. A norma dirige-se ao parecerista e lida com o problema relativo aos limites de sua responsabilização por suas opiniões jurídicas. Trata-se de questão antiga, mas recorrente, a qual foi inicialmente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do MS nº 24.073/DF, em 2002[13].



Ademais, só responderá por culpa in vigilando (pela omissão, inércia)[14] aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo no exercício do poder hierárquico.



6. Direito de regresso, decisão sancionadora e outros instrumentos à segurança jurídica



Restringindo o disposto no art. 37, § 6º, da Constituição, o art. 14 do Decreto impera que, no âmbito do Poder Executivo Federal o direito de regresso somente pode ser exercido se o agente público houver agido com dolo ou erro grosseiro em suas decisões ou opiniões técnicas.

Registre-se que quando da tramitação do PL 7.448/2017, a Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União já argumentava no sentido de que a questão do erro grosseiro poderia suscitar eventual inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de introdução, justamente por restringir direito constitucional. O Decreto, definindo o que é erro grosseiro, e de modo expresso afirmando ser essa a única hipótese de exercício do direito de regresso, enseja no mínimo dúvidas quanto à extrapolação do seu poder regulamentador, pois a LINDB nem sequer menciona direito de regresso.

O art. 16 do regramento obriga a consideração, na decisão de imposição de sanção ao agente público: da natureza e a gravidade da infração cometida; dos danos que dela provierem para a administração pública; das circunstâncias agravantes ou atenuantes; dos antecedentes do agente; do nexo de causalidade; e da culpabilidade do agente. Ainda, na dosimetria das demais sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato, as sanções aplicadas ao agente público também devem ser levadas em conta.

O Decreto regulamentador da LINDB prevê ainda outros instrumentos para proporcionar segurança jurídica ao Direito Público, como a consulta pública para edição de atos normativos (preferencialmente por meio eletrônico), orientações normativas do órgão central de sistema, enunciados, sendo os dois últimos instrumentos vinculantes ao próprio órgão ou entidade.







[1] BRASIL, Decreto nº 9.830/19. Regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, DF, Brasília, 10 de junho de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9830.htm>.

[4] Postulados como a boa-fé, interesse público e os princípios jurídicos em geral, são exemplos de fórmulas com o nível de abstração referido.

[5] Art. 3º, § 2º, do Decreto nº 9.830/2019.

[6] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21 da LINDB: Indicando consequências e regularizando atos e negócios. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 43-61, nov. 2018. p. 58.

[7] A referência aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade é feita pelo parágrafo único do art. 20, da LINDB. Sobre os atributos do referido princípio cf. TORRES, Heleno Taveira. Segurança Jurídica e Limites do Âmbito de Aplicação do Princípio da Proporcionalidade. In: MARQUES NETO, Floriano Azevedo et al. Direito e Administração Pública: Estudos Em Homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 136.

[8] Tomo liberdade de divulgar trabalho publicado em livro sobre o tema. Destaco o seguinte trecho: “o direito exige, especialmente hoje, que se observe o entendimento consolidado dos tribunais, sendo exceção a mudança de entendimento, especialmente em sede de medida cautelar, sem manipulação dos enunciados jurídicos pelo sentimento de justiça do julgador”. TEIXEIRA, Alan José de Oliveira; ANDRADE, Luiz Gustavo de. Guerra de liminares e fragilidade jurídica no controle judicial da nomeação do ex-presidente Lula à Casa Civil e o caso Moreira Franco. In: ANDRADE, Luiz Gustavo de; ARRAES, Roosevelt (Org.). Guardiania judicial: entre a segurança jurídica e a política. Curitiba: Appris, 2018. p. 185-204. p. 199.

[9] PARANÁ (Estado). Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Re­solução nº 59/2017. Normatiza o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) no âmbito do Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Diário Eletrônico do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Curitiba, n. 1530, 7 fev. 2017. p. 40-41.

[10] FERRAZ, Luciano. Termo de ajustamento de gestão e o alerta previsto no art. 59, § 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal: dez anos de­pois. Revista Técnica dos Tribunais de Contas, Belo Horizonte, ano 1, p. 205-214, set. 2010.

[11]O Tribunal de Contas dos Municípios do Estado Pará (TCM-PA) divulgou um ranking de resultado de atendimento do TAG, no que tange aos municípios. Fez-se um estudo do percentual de atendimento. Veja-se que
pelo menos 16 (dezesseis) municípios cumpriram integralmente o acordo proposto, ao passo que 61 (sessenta e um) cumpriram ao menos 50% do termo celebrado, enquanto que do restante de 67 (sessenta e sete) municípios estudados apenas 13% não cumpriram absolutamente nada do acordo”. Cf. TEIXEIRA, Alan José de Oliveira. Termo de Ajustamento de Festão no controle eficiente da Administração Pública. Rev. Controle, Fortaleza, v. 15, n.2, p. 235-258, jul/dez, 2017. Disponível em: <http://revistacontrole.ipc.tce.ce.gov.br/index.php/RCDA/article/view/393>.

[12] BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB: A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 203-224, nov. 2018. p. 221.

[13] Ibidem, p. 208.

[14] Segundo Cretella Júnior, “a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem corno bonus administrator. Foi negligente. Às vezes imprudente ou até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito, se não previu a possibilidade de concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação, física ou mental”. CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1966, V. 1-5; 1969, V. 6 e 7; 1970, V. 8; 1972, V. 10.

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