Foi publicado hoje no Diário
Oficial da União o Decreto nº 9.831/2019[1], que regulamenta os 10 (dez)
últimos artigos recentemente acrescidos à antiga Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro (LINDB). As alterações feitas pela Lei 13.655/2018,
ocorridas no ano passado, visaram proporcionar segurança jurídica nas decisões
públicas.
De início, é importante
frisar que a Lei de introdução é uma lei sobredireito, ou seja, prevê a maneira
de aplicação da legislação no tempo e no espaço, o seu sentido lógico e as
fontes do direito, complementando a Constituição[2]. Assim, serve de norte
interpretativo e integrativo do ordenamento jurídico brasileiro, sem, contudo,
reger diretamente as ações ou omissões dos indivíduos[3].
1. Motivação e decisão
A LINDB prescreve que a
decisão que se baseia exclusivamente em valores jurídicos abstratos (normas
jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração)[4] deve expressar as suas
consequências práticas. O grande problema desse mandamento era o modo pelo qual
o julgador deveria indicar essas consequências. O decreto buscou solução no
seguinte sentido: “o decisor apresentará apenas aquelas consequências
práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante
dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos”[5].
Ou seja, não se
exige que a motivação contenha todas as consequências práticas da decisão, em
um exercício hercúleo do julgador. Porém, partindo dos autos – para ficarmos
com o exemplo judicial –, o magistrado, movido pela obrigação legal de ser
diligente, indicará as consequências mais importantes em termos econômicos, político-administrativos
e sociais[6].
O Decreto também
torna mais clara a referência feita pelo art. 20, parágrafo único, da LINDB,
aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade (necessidade e
adequação)[7],
impondo a observação dos critérios de adequação, proporcionalidade e de
razoabilidade. Mais clara, porém, a referência, mas não sua aplicabilidade,
sobre a qual inclusive a indeterminação ainda existe, apesar das tentativas da
lei em comento e da vasta bibliografia sobre o tema.
O modo de se
indicar as consequências jurídicas e administrativas da decisão de invalidação
de atos, contratos, processos ou normas administrativas, segue o mesmo
parâmetro. O distintivo reside na exigência de que, sempre que possível, o
decisor indique as condições de regularização da situação de invalidade – de
modo proporcional, equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.
Ainda sobre as
consequências jurídicas e administrativas, o regulamento cria a possibilidade
de modulação dos efeitos da decisão de invalidação em apreço, a qual poderá
restringir os efeitos da declaração ou determinar que sua eficácia inicie em
momento posteriormente definido. De acordo com o regramento, todo esse
raciocínio se guiará pela mitigação dos ônus e perdas tanto dos administrados como
da administração pública.
2. Mudança de orientação geral e nova interpretação
jurídica
Destaca-se nesse
ponto a vedação de se declarar inválida situação plenamente constituída devido
à mudança posterior de orientação geral (aqui, “mudança posterior” especifica o
que já prescreve o caput do art. 24, da LINDB). A proibição, entretanto,
não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futuros de relação em curso.
O Decreto define
se tratar de nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento
anteriormente consolidado e, para o cumprimento desse dever ou condicionamento
de direito, deve-se instituir regime de transição que será motivado conforme o
discorrido no item anterior deste texto. Esse regime transitório também deve
prever, quando possível:
1)
os órgãos e as entidades da administração pública e os terceiros destinatários.
2)
as medidas administrativas a serem adotadas para adequação à interpretação ou à
nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado.
3)
o prazo e o modo para que o novo dever ou novo condicionamento de direito seja
cumprido.
Isto é, a
partir desses nortes interpretativos, restringe-se a mudança de entendimento, e
privilegia-se a segurança jurídica, propósito das alterações ocorridas na Lei
de introdução. Sendo a Lei aplicável no âmbito administrativo e judicial, é
possível pensar neste como um dos caminhos para o problema da guerra de
liminares e do subjetivismo judicial[8].
3. Compensação de danos
Com o objetivo
de evitar procedimentos contenciosos de ressarcimento de danos, a decisão do
processo administrativo poderá impor diretamente à pessoa obrigada compensação
por benefícios indevidos ou prejuízos “anormais ou injustos” resultantes do
processo ou conduta dos envolvidos. Para isso, deve-se possibilitar
manifestação prévia dos obrigados, e o ajuste terá celebrado por meio de
Compromisso.
4. Instrumentos propostos: Compromisso e Termo de
Ajustamento de Gestão (TAG)
O Compromisso,
assim como o Termo Ajustamento de Gestão, surge na linha das resoluções
adequadas de conflitos. No primeiro caso, o instrumento serve para eliminar
irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do
direito público.
Assim,
entendendo a autoridade ser conveniente a sua celebração, atendidas as
condições (oitiva do órgão jurídico, consulta pública e razões de relevante
interesse geral), deve o instrumento prever:
1)
as obrigações das partes.
2)
o prazo e o modo para seu cumprimento.
3)
a forma de fiscalização quanto a sua observância.
4)
os fundamentos de fato e de direito.
5)
a sua eficácia de título executivo extrajudicial.
6)
as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
Importante
ressaltar que a decisão pela celebração do Compromisso deve resultar de
processo, o qual será instruído no mínimo com : (1) parecer técnico conclusivo
do órgão competente sobre a viabilidade técnica, operacional e, quando for o
caso, sobre as obrigações orçamentário-financeiras a serem assumidas; (2)
parecer conclusivo do órgão jurídico sobre a viabilidade jurídica do
compromisso, que conterá a análise da minuta proposta; e (3) minuta do
compromisso, que conterá as alterações decorrentes das análises técnica e
jurídica acima mencionadas.
Relevante
salientar a vedação de desoneração permanente de dever ou condicionamento de
direito reconhecido por orientação geral no Compromisso (proibição repetida da
LINDB). Conforme o Decreto, o instrumento terá validade com a respectiva
publicação.
Quanto ao Termo
de Ajustamento de Gestão (TAG), tem o objetivo de corrigir falhas apontadas em
ações de controle, aprimorar procedimentos, e assegurar a continuidade da
execução do objeto, sempre que possível, e sua assinatura será comunicada ao
órgão central do sistema de controle interno. Na hipótese de danos ao erário
praticado, por agente público, com dolo ou erro grosseiro, resta
impossibilitado o ajuste.
Cumpre-se
acentuar que o TAG é instrumento existente no âmbito dos tribunais de contas
estaduais há algum tempo. No Estado do Paraná, foi incorporada pelo TCE/PR em
2017[9]. Luciano Ferraz afirma
que o TAG, como instituto jurídico-administrativo,
Afina-se
com a moderna tendência da Administração Pública e do Direito Administrativo,
menos autoritário e mais convencionais, imbuídos do espírito de ser a
consensualidade alternativa preferível à imperatividade, sempre que possível
[…] sempre que não seja necessário aplicar o poder coercitivo[10].
A previsão é
interessante. Porém, no caso dos tribunais de contas, em razão dos longos
prazos para o cumprimento dos ajustes, não existem dados muito concretos a
respeito de sua eficiência[11].
Por fim, é
relevante registrar que todas as decisões pela celebração de Compromisso ou de
TAG são motivadas da mesma maneira em que se expressam as consequências já
aventadas nas primeiras linhas do texto.
5. Responsabilização do agente público e
responsabilização por decisões ou opiniões técnicas
O Decreto
9.830/2019 também trouxe especificidades da responsabilização do agente
público, a qual só poderá ser imputada nos casos de dolo (direto ou eventual) e
erro grosseiro cometidos no desempenho das funções. Tal situação ou
circunstância deve ser comprovada no procedimento de responsabilização, sendo
insuficiente o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso,
bem como a expressividade do dano ao erário. Além disso, complexidade da
matéria e das atribuições exercidas pelo agente devem ser consideradas.
Segundo o
regulamento, considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e
inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com
elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Gustavo
Binenbojm e André Cyrino sustentam que a mudança em análise implicou, de um
lado, a admissão do erro pelo agente público, salvo quando grosseiro[12].
No que diz
respeito à responsabilização por opinião técnica, somente se configurará se
estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o
erro grosseiro da opinião, ou se houver conluio entre os agentes. Segundo os
juristas supracitados,
A opinião
técnica a que alude o dispositivo compreende a manifestação de advogados
públicos no exercício de atividade consultiva. A norma dirige-se ao parecerista
e lida com o problema relativo aos limites de sua responsabilização por suas
opiniões jurídicas. Trata-se de questão antiga, mas recorrente, a qual foi
inicialmente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do
MS nº 24.073/DF, em 2002[13].
Ademais, só
responderá por culpa in vigilando (pela omissão, inércia)[14]
aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo no exercício do poder
hierárquico.
6. Direito de regresso, decisão sancionadora e outros
instrumentos à segurança jurídica
Restringindo o
disposto no art. 37, § 6º, da Constituição, o art. 14 do Decreto impera que, no
âmbito do Poder Executivo Federal o direito de regresso somente pode ser
exercido se o agente público houver agido com dolo ou erro grosseiro em suas
decisões ou opiniões técnicas.
Registre-se que
quando da tramitação do PL 7.448/2017, a Consultoria Jurídica do Tribunal de
Contas da União já argumentava no sentido de que a questão do erro grosseiro
poderia suscitar eventual inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de
introdução, justamente por restringir direito constitucional. O Decreto,
definindo o que é erro grosseiro, e de modo expresso afirmando ser essa a única
hipótese de exercício do direito de regresso, enseja no mínimo dúvidas quanto à
extrapolação do seu poder regulamentador, pois a LINDB nem sequer menciona
direito de regresso.
O art. 16 do
regramento obriga a consideração, na decisão de imposição de sanção ao agente
público: da natureza e a gravidade da infração cometida; dos danos que dela
provierem para a administração pública; das circunstâncias agravantes ou
atenuantes; dos antecedentes do agente; do nexo de causalidade; e da
culpabilidade do agente. Ainda, na dosimetria das demais sanções da mesma
natureza e relativas ao mesmo fato, as sanções aplicadas ao agente público
também devem ser levadas em conta.
O Decreto
regulamentador da LINDB prevê ainda outros instrumentos para proporcionar
segurança jurídica ao Direito Público, como a consulta pública para edição de
atos normativos (preferencialmente por meio eletrônico), orientações normativas
do órgão central de sistema, enunciados, sendo os dois últimos instrumentos
vinculantes ao próprio órgão ou entidade.
[1]
BRASIL, Decreto nº 9.830/19. Regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de
Introdução às normas do Direito brasileiro. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, DF, Brasília, 10 de junho de 2019. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9830.htm>.
[2] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 1: Lei de Introdução
e Parte Geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1
[3] RAMOS, André de Carvalho;
GRAMSTRUP, Erik Frederico. Comentários à
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: LINDB. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 13.
[4] Postulados como a boa-fé, interesse público
e os princípios jurídicos em geral, são exemplos de fórmulas com o nível de
abstração referido.
[5] Art. 3º, § 2º, do Decreto nº 9.830/2019.
[6] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21
da LINDB: Indicando consequências e regularizando atos e negócios. Revista
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 43-61, nov. 2018. p. 58.
[7]
A referência aos atributos do princípio da proporcionalidade e razoabilidade é
feita pelo parágrafo único do art. 20, da LINDB. Sobre os atributos do referido
princípio cf. TORRES, Heleno Taveira. Segurança Jurídica e Limites do Âmbito
de Aplicação do Princípio da Proporcionalidade. In: MARQUES NETO, Floriano
Azevedo et al. Direito e Administração Pública: Estudos Em Homenagem a Maria
Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 136.
[8]
Tomo liberdade de divulgar trabalho publicado em livro sobre o tema. Destaco o
seguinte trecho: “o direito exige, especialmente hoje, que se observe o
entendimento consolidado dos tribunais, sendo exceção a mudança de
entendimento, especialmente em sede de medida cautelar, sem manipulação dos
enunciados jurídicos pelo sentimento de justiça do julgador”. TEIXEIRA,
Alan José de Oliveira; ANDRADE, Luiz Gustavo de. Guerra de liminares e
fragilidade jurídica no controle judicial da nomeação do ex-presidente Lula à
Casa Civil e o caso Moreira Franco. In: ANDRADE, Luiz Gustavo de; ARRAES,
Roosevelt (Org.). Guardiania judicial:
entre a segurança jurídica e a política. Curitiba: Appris, 2018. p. 185-204. p.
199.
[9]
PARANÁ (Estado). Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Resolução nº 59/2017.
Normatiza o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) no âmbito do Tribunal de
Contas do Estado do Paraná. Diário Eletrônico do Tribunal de Contas do
Estado do Paraná, Curitiba, n. 1530, 7 fev. 2017. p. 40-41.
[10] FERRAZ,
Luciano. Termo de ajustamento de gestão e o alerta previsto no art. 59, § 1º,
da Lei de Responsabilidade Fiscal: dez anos depois. Revista Técnica dos
Tribunais de Contas, Belo Horizonte, ano 1, p. 205-214, set. 2010.
[11] “O
Tribunal de Contas dos Municípios do Estado Pará (TCM-PA) divulgou um ranking
de resultado de atendimento do TAG, no que tange aos municípios. Fez-se um
estudo do percentual de atendimento. Veja-se que
pelo menos 16 (dezesseis) municípios cumpriram
integralmente o acordo proposto, ao passo que 61 (sessenta e um) cumpriram ao
menos 50% do termo celebrado, enquanto que do restante de 67 (sessenta e sete)
municípios estudados apenas 13% não cumpriram absolutamente nada do acordo”.
Cf. TEIXEIRA, Alan José de Oliveira. Termo de Ajustamento de Festão no controle
eficiente da Administração Pública. Rev. Controle, Fortaleza, v. 15,
n.2, p. 235-258, jul/dez, 2017. Disponível em:
<http://revistacontrole.ipc.tce.ce.gov.br/index.php/RCDA/article/view/393>.
[12] BINENBOJM,
Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB: A cláusula geral do erro
administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
p. 203-224, nov. 2018. p. 221.
[13] Ibidem, p.
208.
[14] Segundo
Cretella Júnior, “a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando.
São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia,
quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade
do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o
bonus pater familiae, nem corno bonus administrator. Foi negligente. Às vezes
imprudente ou até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se
confiou na sorte; imperito, se não previu a possibilidade de concretização do
evento. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação, física ou mental”.
CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1966, V. 1-5; 1969, V. 6 e 7; 1970, V. 8; 1972, V. 10.
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