09/05/2019

Opinião: O que dizer da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica?




Por Alan José de Oliveira Teixeira**

A MPV da liberdade econômica

No dia 30 de abril de 2019 (terça-feira), foi publicada a Medida Provisória nº 881/2019[i], que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. Na crença de desenvolvimento, a Medida pretendeu desburocratizar determinados procedimentos empresariais, administrativo-fiscais e restringir a desconsideração da personalidade jurídica, dentre outras implicações.
Segundo a exposição de motivos, “existe a percepção de que no Brasil ainda prevalece o pressuposto de que as atividades econômicas devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado, fazendo com que o empresário brasileiro, em contraposição ao resto do mundo desenvolvido e emergente, não se sinta seguro para produzir, gerar emprego e renda”[ii].

As alterações propostas

Inicialmente, destaca-se o direito previsto no inciso IX do art. 3º da MPV 881, que garante a aprovação tácita nas solicitações de liberação da atividade econômica feitas ao Poder Público e não atendidas dentro do prazo estipulado. Há inclusive hipótese de responsabilização administrativa do agende público incumbido de analisar o pedido, caso negue a solicitação sem “justificativa plausível” e a indefira com o propósito exclusivo de atender aos prazos assinados.
Trata-se de responsabilidade subjetiva do agente público em caso de dolo[iii]. A MPV 881 suspendeu a eficácia da providência em comento por 60 (sessenta) dias – prazo de vigência da Medida Provisória – e depende de regulamentação específica do próprio órgão ou entidade responsável pela autorização.
Além da declaração de direitos feita pelo art. 3º da MPV 881, foram diversas as alterações ocorridas na legislação.
O Código Civil foi especialmente visado. Mudança relevante ocorreu no art. 50, que prevê o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A alteração surge com o intuito de restringir a aplicação da medida processual, que agora somente deve se aplicar aos sócios da pessoa jurídica que forem beneficiados direta ou indiretamente pela fraude.
Os cincos parágrafos acrescidos ao texto da Lei Civil ainda definem o que se entende por desvio de finalidade para os fins de desconsideração, e esta seria a “utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.
Segundo a professora Rogéria Dotti, a exigência de dolo para caracterização do desvio de finalidade vai na contramão da jurisprudência consolidada[iv], e além de “dificultar a aplicação da regra, contraria toda a teoria objetiva do abuso do direito, justamente um dos grandes avanços da doutrina civil mais moderna”[v].
Delineou-se também o significado de confusão patrimonial, que pela MPV é entendida como “a ausência de separação de fato entre os patrimônios”, verificada pelo cumprimento repetitivo de obrigações do sócio pela sociedade, transferência de ativos e passivos sem contraprestações e demais atos descumpridores da autonomia patrimonial.
Na esteira da reforma trabalhista[vi], há uma preocupação com os grupos econômicos. Assim, o instrumento provisório em análise inseriu o § 4º no art. 50 do Código Civil para declarar que a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos (desvio de finalidade, confusão patrimonial e, agora, benefício direto ou indireto por sócio) não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Outra modificação ocorreu no art. 421 do Código, a qual terá implicações significativas na Teoria Geral dos Contratos. Houve uma relativização em sua função social. De agora em diante, a liberdade de contratar observará igualmente a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.
À vista disso, vale ressaltar o porquê de as coisas existirem. Noutras palavras, por que existe o princípio da função social do contrato? A função social do contrato é resultado da evolução do contrato e seus efeitos na sociedade.
De acordo com Theodoro Júnior, tal modalidade de negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica indispensável ao desenvolvimento e aprimoramento da sociedade. Têm também os terceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou de sua pactuação[vii].
Isto é, a celebração de um contrato tem reflexos consideráveis no mundo prático. São exemplos de não observância da função social: alugar imóvel em zona residencial para fins comerciais incompatíveis com o zoneamento da cidade; alugar quartos de apartamento de prédio residencial, transformando-o em pensão; ajustar contrato simulado para prejudicar terceiros; fraude de credores; exercício de concorrência desleal; etc[viii]. Em qualquer das situações descritas, pessoas ou entidades prejudicadas pelos efeitos desses negócios podem exigir a cessação dos seus efeitos e reparação por eventuais danos[ix].
Nesse sentido, a percepção de Flávio Tartuce mostra-se um alerta ao trâmite da MPV 881: “o texto da medida provisória parece ter ressuscitado antigos fantasmas de temor a respeito da função social do contrato, no momento em que o princípio encontrou certa estabilidade de aplicação, seja pela doutrina ou pela jurisprudência”[x].
Ponto a sublinhar é o princípio da intervenção mínima do Estado (art. 421, parágrafo único), que surge como norte interpretativo das relações negociais, devendo a revisão contratual externa às partes ser excepcional. Disposição interpretativa igualmente alterada foi a do art. 423 do Código Civil, impondo que dúvidas surgidas sejam vistas de modo mais favorável ao aderente contratual.
O Livro destinado ao Direito Empresarial não foi poupado de mudanças, sendo uma delas a inclusão de uma nova modalidade societária no parágrafo único do art. 1.052: a sociedade limitada unipessoal[xi].
A MPV 811 ainda inseriu o Capítulo X no Livro III (Direito das Coisas) do Código Civil, para dispor sobre os fundos de investimento (restando extinto o Fundo Soberano do Brasil – FSB, da Lei Federal 11.887/08).
Vinculando a extensão dos efeitos da falência à presença dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, adicionou-se o art. 82-A à Lei Federal 11.101/05.
Houve ainda alteração na Lei 6.404/76 (Sociedades por Ações), na Lei 12.682/12 (laboração e arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos), no Decreto nº 9760/46 (bens imóveis da União), na Lei 6.015/73 (Registros Públicos) e na Lei 10.522/02 (Cadin).
Acerca das modificações que recaíram sobre a Lei 10.522/02 (Cadin), tecem-se alguns comentários.
O primeiro em relação ao art. 19-C, que com base nos indeterminantes critérios de “racionalidade”, “economicidade” e “eficiência” (lidos a partir do benefício patrimonial do caso) dispensa a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional da prática de atos processuais, inclusive autoriza a desistência de recursos. Isso se aplica inclusive no âmbito do contencioso administrativo fiscal.
O Procurador da Fazenda Nacional fica ainda autorizado a requerer o arquivamento das execuções fiscais de valor consolidado igual ou inferior à estipulação a ser feita pelo Procurador-Geral.
A revogação do inciso III do art. 5º, do Decreto-Lei nº 73/66 (seguros privados), e do inciso X do art. 32 do mesmo decreto, é simbólica: não se exige mais reciprocidade no funcionamento de empresas seguradoras estrangeiras no Brasil. Isso porque a revogação afastou a antiga exigência de igualdade de condições das empresas brasileiras no país de origem da empresa estrangeira que pretendesse operar aqui.
À luz desse dispositivo e atentando-se às origens e propósitos da MPV 881, é possível afirmar a aparência de que os idealizadores da medida esperam reciprocidade – mesmo sem reciprocidade[xii].
E, por fim, nada mais indicador do que a revogação da Lei Delegada nº 4/62, que tratava da intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo.

Possíveis críticas: o que dizer da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica?

A primeira crítica a ser feita é em relação ao instrumento utilizado. Seria o caso de se editar Medida Provisória para tratar de tantos assuntos? Talvez o mais flagrante: é caso de relevância e urgência?
De relevância não há dúvidas, principalmente pelo fato de a medida tocar em matérias afetas ao direito administrativo, civil, tributário, empresarial e contratual. Altera-se de modo profundo muitos dos institutos dessas áreas. Modifica-se a prática profissional e a rotina das empresas, da administração pública, do fisco.
Entretanto, são assuntos em discussão há algum tempo no Direito. Cite-se como exemplo o tema da desconsideração da personalidade jurídica. É temática desgastada. Ocorreram alterações legislativas recentes sobre o mecanismo. E veja-se que, mesmo com amplo debate e discussões jurídicas acerca disso, não se vislumbra unanimidade ou consolidação de entendimento. Desse modo, não parece ser o caso de urgência.
Ainda, justamente por cuidar a Medida Provisória de mudanças com implicações em várias áreas jurídicas, o instrumento escolhido pelos idealizadores da liberdade econômica não se mostra apropriado.
Muito da medida, mesmo que aprovada no Congresso Nacional, ainda ensejará regulamentação. Aliás, a par de um ou outro artigo cuja eficácia foi expressamente suspensa pela MPV, as novas regras já estão valendo. Mas e se não aprovadas pelo Congresso?
De toda sorte, a potencial lei já causa incertezas e pode dar margem a um ambiente de fragilidade jurídica ante seus variáveis futuros.
Para não largar a honestidade que os ventos atuais exigem, na verdade o que se observa é o atendimento desesperado da agenda política do liberalismo econômico. Flávio Tartuce identifica esse viés nas alterações miradas ao Código Civil: “A MP também parece voltar ao espírito individualista, que inspirou o Código Civil de 1916, tido por muitos civilistas como superado e que foi substituído por um modelo mais intervencionista, do Código Civil de 2002[xiii].
E assim o Estado, como prometido, vai enxugando para alguns. Trata-se a reforma da previdência como um fim em si mesmo. Corta-se recursos da Educação Pública[xiv][xv]. É assim que o Estado vai embora. E assim o Estado vai embora. Daqui a pouco não sobra nada.



[i] BRASIL. Medida Provisória nº 881, de 30 de Abril de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, DF, Brasília, 30 de Abril de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm>.
[ii] Exposição de Motivos Interministerial nº 00083/2019 ME/AGU/MJSP. 11 de abril de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf>.
[iii] Relevante fazer remissão ao recentíssimo art. 28, da LINDB, que prevê que O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
[iv] DOTTI, Rogéria. O que muda com a chamada medida provisória da liberdade econômica?. 06 de maio de 2019. Disponível em: <https://www.unicuritiba.edu.br/Noticias-Pos-Graduacao-Direito/o-que-muda-com-a-chamada-medida-provisoria-da-liberdade-economica.html#!IMG_0092>.
[v] Id.
[vi] A Lei Federal nº 13.467/2017, conhecida como “Reforma Trabalhista”, com o fulcro de restringir a desconsideração da personalidade jurídica na seara trabalhista, inseriu o § 3º no art. 2º da CLT para prescrever que “Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes”.
[vii] JÚNIOR, Theodoro Humberto. O contrato e sua função social: a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico e a jurisprudência contemporânea. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[viii] Id.
[ix] Id.
[x] TARTUCE, Flávio. A MP 881/19 (liberdade econômica) e as alterações do Código Civil. Primeira parte. 3 de maio de 2019. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI301612,41046-A+MP+88119+liberdade+economica+e+as+alteracoes+do+Codigo+Civil>.
[xi] TARTUCE, Flávio. A MP 881/19 (liberdade econômica) e as alterações do Código Civil. Segunda parte - teoria geral dos contratos, direito de empresa e fundos de investimento. 7 de maio de 2019. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI301761,91041-A+MP+88119+liberdade+economica+e+as+alteracoes+do+Codigo+Civil>.
[xii] MOREIRA, Assis. VALOR. EUA mantêm bloqueio na OCDE e não cumprem barganha com Brasil. 07 de maio de 2019. Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/6243633/eua-mantem-bloqueio-na-ocde-e-nao-cumprem-barganha-com-brasil>. Registre-se ligeiro incômodo que as alterações da MPV feitas no decreto que regulamenta os seguros privados causa diante da notícia citada.
[xiii] TARTUCE, Flávio. A MP 881/19 (liberdade econômica) e as alterações do Código Civil. Primeira parte. 3 de maio de 2019. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI301612,41046-A+MP+88119+liberdade+economica+e+as+alteracoes+do+Codigo+Civil>.
[xiv] G1. MEC anuncia corte de 30% em repasses para todas as universidades federais. 30 de abril de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/30/mec-anuncia-corte-de-30percent-em-repasses-para-todas-as-universidades-federais.ghtml>.
[xv] MARIZ, Renata. OGLOBO. Cortes do MEC afetam educação básica. 06 de maio de 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/cortes-no-mec-afetam-educacao-basica-anunciada-como-prioridade-por-bolsonaro-23646433>.


* Alan Teixeira está no nono período de Direito do UNICURITIBA e integra a equipe editorial do Blog UNICURITIBA Fala Direito, Projeto de Extensão coordenado pela Profa. Michele Hastreiter.
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** As opiniões contidas no texto pertencem ao autor e não necessariamente refletem a opinião da instituição.  

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