Por Nicoly Schuster
Lançado no mês de março na plataforma de streaming Globoplay, o documentário “Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela” revela que a trajetória da cantora foi permeada pelo sexismo e, ao mesmo tempo, chama a atenção para o tema da saúde mental, que à época dos anos 2000 não possuía a mesma relevância dos dias atuais.
O documentário começa retratando o início da carreira de Britney, que é semelhante ao de muitos artistas que emergiram na década de 90. Tudo começou quando ela se apresentou, ainda criança, em um programa que exibia performances infantis (cujo formato já é conhecido pela audiência televisiva brasileira). Foi assim que Britney deu um salto das apresentações em corais em Kentwood, Louisiana, para se tornar mundialmente conhecida.
A película aponta como o início dos problemas da cantora o seu divórcio com o rapper Kevin Federline, no ano de 2006, após o nascimento do segundo filho do casal. Ambos pediram a guarda total dos filhos, que foi concedida a Federline.
Como na época não existiam redes sociais como as conhecemos hoje, as revistas de fofocas eram uma das principais formas de divulgar notícias sobre as celebridades. Isso fazia com que fotografias sobre a vida cotidiana de artistas fossem altamente rentáveis, o que levava os paparazzi a perseguir os famosos na tentativa de obter uma foto que pudesse render uma boa manchete.
Nesse cenário estava Britney, de modo que, como é de se esperar em uma sociedade machista, as suas atitudes como mãe começaram a ser questionadas: qualquer passo em falso servia para taxá-la como uma “mãe ruim”. Ao mesmo tempo, se especulava sobre as causas do divórcio.
Por esses e outros diversos motivos, a sanidade mental da cantora começou a ser questionada e, em 2008, ela foi internada em uma clínica de reabilitação. Foi nesse momento que seu pai, Jamie Spears, pediu à justiça para tomar conta da vida de Britney. Hoje, depois de 12 anos, ela ainda continua sob o controle do pai.
A curatela no direito brasileiro
No Brasil, existem os institutos da tutela e da curatela, que servem para garantir os interesses de pessoas que não conseguem exprimir suas vontades. Na tutela, uma pessoa é nomeada para cuidar dos interesses de um menor até que ele complete 18 anos de idade, o que ocorre geralmente em casos nos quais os pais são falecidos ou ausentes.
Já a curatela é o procedimento pelo qual um juiz nomeia um curador responsável para cuidar de uma pessoa adulta, que não é capaz de tomar conta de aspectos da vida civil e/ou não consegue desempenhar atividades básicas do dia a dia. A curatela geralmente ocorre nos casos em que a pessoa possui alguma doença ou está em idade avançada. Entretanto, somente isso não é suficiente para determinar a interdição de alguém, sendo necessário que se comprove que a pessoa não possui o discernimento necessário para gerir sua vida e seu patrimônio.
O curador nomeado, na maioria das vezes, é algum parente do curatelado, de modo que existe uma ordem de preferência legal a ser observada pelo magistrado no momento da nomeação. Mas, na falta de um parente, o juiz pode designar outra pessoa, assim como pode alterar a ordem legal de preferência, caso isso se mostre necessário para atender os interesses do curatelado.
Em todo caso, tanto na tutela como na curatela, o processo é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público, que emite pareceres a serem considerados pelo juiz quando da prolação da sentença. Além disso, o juiz define os limites dos poderes do tutor ou curador, fixa o motivo da interdição, se haverá ou não prestação de contas e qual será a sua periodicidade. A prestação de contas é feita nos autos em apenso ao processo de nomeação e deve conter um relatório detalhado de despesas acompanhado por recibos ou notas fiscais.
A curatela pode ser levantada (ou seja, pode ser revertida) quando a causa que determinou a interdição deixar de existir. Para isso, é necessária a propositura de uma nova ação, que pode ser iniciada pelo curatelado, pelo curador ou pelo Ministério Público.
A “conservatorship”
O documentário explica como funciona a “conservatorship”, termo traduzido para o português como “tutela” mas que se assemelha à curatela do direito brasileiro. O instituto processual americano é definido como uma ação na qual um juiz designa uma pessoa ou organização que será responsável por cuidar de uma outra pessoa, adulta, que não pode tomar conta de si mesma ou gerenciar suas finanças².
Disso, depreende-se que a conservatorship se divide em duas partes, conforme explicado no documentário por Vivian Lee Thoreen, advogada pertencente ao escritório que atuou no caso Britney representando o pai da cantora:
uma parte é a tutela pessoal (personal conservatorship), que significa um cuidado em atividades do dia a dia como por exemplo decidir o que comer, escovar os dentes, decidir onde morar e etc; e
a outra é a tutela patrimonial (conservator of the state), que refere-se ao gerenciamento do patrimônio do tutelado, tendo em vista a sua incapacidade em lidar com assuntos financeiros ou a sua suscetibilidade a influências ou fraude (o tutelado, por exemplo, poderia ser enganado a doar todos os seus bens).
Para cada uma dessas funções pode ser nomeada uma pessoa diferente. No caso de Britney, o pai dela, Jamie Spears, foi nomeado para as duas funções e contratou um advogado que também ficou como responsável financeiro. Thoreen ainda disse que o procedimento da tutela garante que exista uma prestação de contas e que esses casos são levados muito a sério pelos tribunais, já que o objetivo da tutela é proteger os interesses do tutelado.
Perguntada sobre a possibilidade de reversão da conservatorship, a advogada disse que se o tutelado, em algum momento do processo, dá o seu consentimento (como o fez a Britney), é extremamente difícil revertê-la. É necessário que o tutelado apresente uma petição comprovando que a tutela não é mais necessária, sendo seu o ônus de trazer elementos probatórios que comprovem essa alegação.
Nesse caso, o que espanta é que a cantora era jovem quando o pedido de seu pai foi deferido — ela tinha apenas 27 anos de idade — e, até hoje, essa condição não foi revista perante a justiça norte-americana. Britney sempre expressou o desejo de que outra pessoa fosse nomeada para tomar conta do seu dinheiro e foram feitos diversos pedidos judiciais nesse sentido, mas nenhum teve sucesso. Recentemente, após o lançamento do documentário, seu advogado fez um novo pedido para retirar os poderes de Jamie Spears e também conseguiu garantir a ela o direito de se dirigir diretamente ao tribunal em uma audiência que acontecerá no próximo mês (junho).
A partir do documentário, para além de compreender como se desenvolve um processo de conservatorship nos Estados Unidos, é possível refletir sobre a importância da prestação de contas e da existência de instituições que atuem de modo a fiscalizar esses processos, para evitar abusos, de ordem financeira e psicológica, por parte dos tutores ou curadores.
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