Por Nicoly Schuster.
A notória
crise decorrente da pandemia do novo coronavírus (o SARS-CoV-2, causador da
doença Covid-19) acentua um, por vezes criticado, aspecto do Estado: o poder de
restringir e limitar os direitos dos seus cidadãos. Isso porque - assim como em
períodos de guerra - é necessário que, em resposta a uma situação extrema,
sejam tomadas medidas igualmente extremas. Por vezes, tais medidas extremas
implicam em uma relativização que permite a supressão de direitos e garantias
fundamentais, há muito incorporadas nas Constituições liberais-democráticas e
que representam as conquistas civilizatórias no campo das liberdades
individuais e coletivas.
Em um Estado
Democrático de Direito, as medidas de limitação a direitos fundamentais
precisam ser justificadas mediante juízos de adequação, necessidade e
proporcionalidade. Isto, porque, por vezes, podem existir diversos direitos em
jogo, prevalecendo uma situação de conflitos entre princípios que não podem ser
resolvidos apenas a partir de uma aplicação literal e mecânica da lei. Dentro
deste contexto, faz-se necessário a utilização de parâmetros para definir e
justificar quais direitos vão ser restringidos, quais vão ser assegurados e de
que modo ocorrerão essas restrições.
No contexto da
pandemia, disparadamente, os direitos fundamentais que mais se veem mitigados,
em países nos quais existe um elevado patamar de contágio, são as liberdades de
ir e vir e o direito de reunião. Como o vírus se espalha de forma rápida, a
forma mais eficaz de garantir a saúde da população é o isolamento social. Por
isso, muitas nações têm fortemente limitado a livre circulação e a aglomeração
de pessoas. Alguns países europeus, como a Alemanha e Reino Unido, tem adotado
providências severas que restringem os direitos de locomoção e reunião,
determinando a proibição de reuniões com mais de duas pessoas. Foi estipulada,
inclusive, a aplicação de multa em caso de descumprimento, sendo que os
governos alemão e britânico autorizaram o uso de força policial para dissolver
as aglomerações.
No Brasil, as
restrições mais intensas se dão no âmbito estadual ou municipal por meio de
decretos baixados pelos governadores e prefeitos, que ao analisarem como
evoluiu a situação da doença tomam medidas de acordo com a necessidade peculiar
de cada região. Por exemplo, nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de
Janeiro e São Paulo, foi proibida a abertura de shoppings, academias,
restaurantes, comercio e bares de rua. Em cidades litorâneas como as da Baixada
Santista, o Rio de Janeiro e Florianópolis os moradores foram proibidos de
frequentar as praias. Ainda, no estado do Pará, de Minas Gerais e Rondônia e na
prefeitura de Presidente Prudente/SP e de Porto Alegre houve a polemica
proibição da realização de cultos religiosos.
No estado de
São Paulo, epicentro do surto da covid-19 no Brasil, a determinação do governador
foi a suspensão ao funcionamento do comércio, permitindo apenas o
funcionamento, com restrições, de estabelecimentos alimentícios. Serviços
essenciais nas áreas da saúde, segurança, abastecimento, limpeza e bancos ainda
funcionam. João Doria se pronunciou na última sexta feira dizendo que se a
população não cumprir as medidas de isolamento, tomará medidas ainda mais
restritivas, inclusive impondo multa e até prisão para aqueles que as
descumprirem.
É sabido que
os direitos fundamentais não são absolutos, o que permite a sua relativização
quando se está diante de situações que colocam em conflito dois ou mais deles.
Mas, é possível que direitos fundamentais tão significativos como a liberdade
de culto, de reunião ou de locomoção sejam restringidos como meio de garantir a
saúde pública? Percebe-se que a decisão implica em analisar liberdades que
colidem, sendo necessária uma ponderação para se chegar a uma efetiva resposta.
Foi Robert
Alexy - a partir de sua teoria argumentativa – quem desenvolveu um modelo de
ponderação que permite, por meio de uma análise racional, decidir qual dentre
dois direitos conflituosos deve prevalecer. O método consiste em três etapas
sucessivas, aplicáveis a casos concretos, de modo que ao final do procedimento
é possível saber se a restrição a preceito fundamental que se propôs é ou não é
proporcional.
De acordo com
José Sérgio da Silva Cristóvam, Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina
A proporcionalidade é uma máxima, um
parâmetro valorativo que permite aferir a idoneidade de uma dada medida
legislativa ou administrativa. Pelos critérios da proporcionalidade pode-se
avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como se outras menos
gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição
àquela empreendida pelo Poder Público. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)
A primeira
etapa da ponderação cuida de analisar a adequação, que significa
examinar se a medida (que restringe um direito) tomada é realmente adequada
para resolver o conflito, ou seja, se a medida escolhida é capaz de atingir a
finalidade pretendida. Caso ela seja de fato adequada, passa-se ao estudo da necessidade/exigibilidade,
consistindo em investigar se a medida tomada é necessária, ou seja, se, dentre
todas as que poderiam ser escolhidas, não há nenhuma outra medida menos gravosa
para a consecução desse fim. Se a medida for, de fato, necessária, prossegue-se
para a verificação da proporcionalidade em sentido estrito, que
corresponde a observar se a prevalência do direito que se quer ver garantido
compensará a restrição do direito que será suprimido.
O objetivo da
aplicação da ponderação é descobrir se é justa a restrição de um princípio, por
meio da avaliação do caso concreto com base nas máximas proporcionais. A esse
respeito Cristóvam afirma que:
O Judiciário, quando da análise de uma medida
restritiva de direitos dos cidadãos, sob o prisma da proporcionalidade em
sentido estrito, deve exercer um juízo de ponderação entre o direito efetivado
pela medida e aquele por ela restringido, a fim de averiguar acerca da justiça
da medida eleita. Deve o juiz valorar, segundo as circunstâncias e
peculiaridades do caso concreto, se a medida obteve um resultado satisfatório e
se o direito limitado deveria sucumbir frente ao efetivado, em uma relação de
precedência condicionada. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)
Ou seja, em
última análise, para que se cumpra o requisito da proporcionalidade estrita, o
benefício alcançado com a garantia de um direito deve ser maior do que a perda
obtida com a redução do direito restringido. Proporcional, portanto, é aquela
restrição a direito na qual os motivos que fundamentam a adoção da medida
possuem peso suficiente para justificar a restrição ao direito atingido.
(CRISTÓVAM, 2005, p. 167)
Se aplicarmos,
o método da ponderação de Alexy ao conflito entre direito à saúde e à liberdade
de reunião, poderemos chegar a algumas conclusões: a) da análise da adequação,
é possível concluir que restringir a aglomeração de pessoas é uma medida capaz
de deter, ou ao menos desacelerar, a propagação do vírus; b) ao verificar a
necessidade, entende-se que a restrição é a maneira mais eficaz, dentre outras
providências que podem ser tomadas, para garantir a saúde da população, de
acordo com as recomendações da comunidade científica e da Organização Mundial
da Saúde e; c) ao examinar a proporcionalidade em sentido estrito, percebe-se
que a garantia do direito à saúde compensa a restrição dos demais direitos,
tendo em vista que, assegurar o direito à saúde em detrimento do direito de
reunião ou da liberdade religiosa traz muito mais ganhos do que se o contrário
fosse.
É nesse
sentido que tem sido as decisões dos juízes e tribunais brasileiros, a exemplo
de Jefferson Zanini, Magistrado da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de
Florianópolis, que lançou mão da teoria de Alexy ao proferir uma sentença. Foi
ajuizada uma ação civil pública por uma associação de médicos, na qual foi
requerida liminarmente a proibição do funcionamento de uma igreja evangélica. O
juiz deferiu parcialmente a tutela de urgência sob o seguinte fundamento:
Ora, no confronto entre o direito
fundamental à vida, compreendida como derivativo da dignidade da pessoa humana
(CF, art. 1º, III), e os também direitos fundamentais à liberdade de reunião
(CF, art. 5º, XVI) e de crença religiosa (CF, art. 5º, VI), mostra-se salutar,
nesse excepcional momento que caminha a humanidade, ser dada prevalência ao
primeiro. Essa medida atende ao requisito da proporcionalidade em sentido
estrito, pois os ganhos advindos com a preservação da saúde pública superam as
eventuais perdas derivadas da restrição à realização de cultos religiosos,
mormente diante da transitoriedade da medida restritiva.
Percebe-se
que a decisão fez uma correta análise de proporcionalidade, ao evidenciar que,
em meio a pandemia, o direito à saúde e à vida deve prevalecer sobre a
liberdade religiosa e de reunião, pois os benefícios decorrentes de ser
assegurada a saúde da população são maiores que os prejuízos acarretados pela
restrição de eventos religiosos. A isso corresponde o papel que o Poder
Judiciário possui de “[...] guardar a Constituição, zelar pelo Estado
democrático de direito e garantir a eficácia dos direitos fundamentais.”
(CRISTÓVAM, 2005, p. 161).
Como já
enfatizado em diversos pronunciamentos do Ministério da Saúde, caso medidas não
sejam tomadas, todo o sistema público de saúde pode entrar em colapso, gerando,
assim, uma forte crise capaz de colocar em risco a estabilidade do Estado como
um todo. Assim, considerando a pandemia gerada pela Covid-19, pode-se inferir
que alguns direitos fundamentais, como a liberdade de culto, o direito de
reunião e a liberdade de locomoção, devem temporariamente ser limitados para
assegurar não só a saúde, mas também a vida das pessoas.
Em um Estado
democrático de direito, o campo de atuação dos chefes do executivo encontra-se
limitado pela lei, de modo que, mesmo em situações de crise de grandes
proporções como a ocasionada pela Covid-19, o caos não se torne uma brecha para
autoritarismos. Isso significa que as restrições devem se dar dentro dos moldes
do estado de direito uma vez que essa ordem ainda impera. Portanto, deve ser
assegurado a todos os indivíduos uma condição mínima de subsistência e, mais do
que nunca, os governantes devem apelar para a razão quando pensam em soluções
para atravessar esse momento crítico.
Entretanto,
para que exista um mínimo de lógica e equilíbrio nas medidas de restrição a
direitos não basta que a atuação do governo se dê dentro dos ditames da lei,
ainda mais quando se percebe uma divergência de posicionamentos tão
significativa para a sociedade. O Poder Judiciário tem importante papel nesse
cenário e já vem intervindo nas questões envolvendo medidas de combate ao novo
coronavírus, como por exemplo, determinando a abertura ou fechamento de
comércios e templos religiosos.
A necessidade
de providências é urgente e mais do que isso, é preciso que as medidas sejam
pensadas para serem proporcionais, de modo que direitos não sejam
restringidos de maneira desarrazoada, e efetivas, para que de fato sejam
capazes de assegurar o mais importante nesse momento, a saber, a vida e a saúde
de todos os cidadãos.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS DO PARANÁ. Entenda as
medidas adotadas pelo governo do Estado para combater o coronavírus.
Disponível em: <http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=106210&tit=Entenda-as-medidas-adotadas-pelo-Governo-do-Estado-para-combater-o-coronavirus>
Acesso em: 11 abril 2020.
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões
entre princípios constitucionais: uma abordagem a partir da teoria de Robert
Alexy. 245 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Mestrado em
Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2005.
FOLHA DE LONDRINA. Porto Alegre fecha
igrejas que desrespeitaram proibição de culto. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/geral/porto-alegre-fecha-igrejas-que-desrespeitaram-proibicao-de-culto-2983341e.html>
Acesso em: 11 abril 2020.
FOLHA UOL. Ao menos 18 Estados mantem
fechados shoppings, comercio de rua e academias. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/ao-menos-18-estados-mantem-fechados-shoppings-comercio-de-rua-e-academias.shtml>
Acesso em: 11 abril 2020.
FOLHA UOL. Reino Unido proíbe reunião de
mais de 2 pessoas e impõe multas a quem sair às ruas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/contra-coronavirus-reino-unido-proibe-reuniao-de-mais-de-2-pessoas-e-fecha-lojas.shtml>.
Acesso em: 27 março 2020.
GAZETA MACHADENSE. Novas medidas são
adotadas para evitar a proliferação do coronavirus no estado e no município.
Disponível em: <http://gazetamachadense.com.br/2020/03/21/novas-medidas-sao-adotadas-para-evitar-a-proliferacao-do-coronavirus-no-estado-e-no-municipio/>
Acesso em: 31 março 2020.
G1. Alemanha proíbe encontros com mais de
duas pessoas, contra o coronavírus. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/22/alemanha-proibe-encontros-com-mais-de-duas-pessoas-contra-o-coronavirus.ghtml>
Acesso em: 27 março 2020.
G1. Após recomendação da Promotoria,
Prefeitura anuncia decreto que proíbe reuniões de pessoas em cultos religiosos
em Presidente Prudente. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2020/03/19/apos-recomendacao-da-promotoria-prefeitura-anuncia-decreto-que-proibe-reunioes-de-pessoas-em-cultos-religiosos-em-presidente-prudente.ghtml>
Acesso em: 28 março 2020.
G1. Governo do PA proíbe eventos
religiosos e saída intermunicipal da região metropolitana na Semana Santa. Disponível
em: <https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/04/06/governo-do-pa-proibe-eventos-religiosos-e-saida-intermunicipal-da-regiao-metropolitana-na-semana-santa.ghtml>
Acesso em: Acesso em: 28 março 2020.
G1 NOTICIAS: Para conter coronavírus,
Florianópolis proíbe acesso às praias e entrada de ônibus na ilha.
Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/03/19/para-conter-coronavirus-florianopolis-proibe-acesso-a-praias-e-entrada-de-onibus-na-ilha.ghtml>
Acesso em: 11 abril 2020.
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Governador
pede que população reforce medidas e anuncia que 7 dos 14 casos confirmados de
coronavírus estão recuperados. Disponível em: <http://www.rondonia.ro.gov.br/governador-pede-que-populacao-reforce-medidas-e-anuncia-que-7-dos-14-casos-confirmados-de-coronavirus-estao-recuperados/>
: Acesso em: 31 março 2020.
NOTÍCIAS UOL. Doria fala em multa e prisão
se isolamento em SP não atingir 60% na segunda. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/09/doria-fala-em-tomar-medidas-mais-rigidas-se-isolamento-nao-for-respeitado.htm>
Acesso em: 10 abril 2020.
NOTICIAS UOL. Cidades da Baixada Santista
proíbem acesso às praias e fecham shoppings. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/19/cidades-da-baixada-santista-proibem-acesso-a-praia-e-fecham-shoppings.htm>
Acesso em: 11 abril 2020.
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