Por Nicoly Schuster
“[...] como Kalven disse, uma sociedade livre é aquela em que
não podemos difamar o governo,pois tal delito não existe [...]” [John Rawls, 2000]
Assim dispõe a Constituição Federal de 1988:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Art. 5º Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
IX - é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença;
Conforme
se vê, o constituinte pretendeu assegurar a proteção das liberdades de
comunicação e manifestação de pensamento, para que não se repita o ocorrido
durante a ditadura militar, momento no qual esses direitos sofreram graves
limitações. Por isso, na retomada democrática das instituições do país, fora
estabelecida pelo texto constitucional a vedação à censura.
Após
a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130, a jurisprudência da Suprema
Corte passou a delinear o rumo das questões judiciais envolvendo conflitos
entre a liberdade de imprensa e o direito individual de pessoa objeto de
matéria jornalística. Ficou sedimentado o entendimento de que quando tais
demandas são levadas ao poder judiciário, deve haver uma prevalência da tutela reparatória em detrimento da inibitória, caso a informação em questão
seja de interesse público.
A
tutela reparatória consiste em permitir que a matéria seja veiculada para que,
posteriormente, eventuais danos possam ser reparados. Enquanto isso, a tutela
inibitória compreende impedir a exibição da matéria, antes mesmo dela ser
publicada, para evitar que o dano aconteça. Explica-se a prevalência da tutela
reparatória pelo fato de que impedir uma informação de ser veiculada seria um
ato de censura, o que é vedado pela Constituição Federal.
No julgamento da ADPF 130, o ministro relator Carlos Ayres
Britto destacou o caráter simbiótico entre democracia e liberdade de
comunicação. Além disso, exprimiu que uma imprensa apenas meio livre não é imprensa, mas sim mera imitação de imprensa. Dessa
maneira, o ministro relator elucidou que:
[...] a imprensa possibilita, por modo crítico incomparável, a revelação e o controle de praticamente todas as coisas respeitantes à vida do Estado e da sociedade. Coisas que, por força dessa invencível parceria com o tempo, a ciência e a tecnologia, se projetam em patamar verdadeiramente global. Com o mérito adicional de se constituir, ela, imprensa, num necessário contraponto à leitura oficial dos fatos e suas circunstâncias, eventos, condutas e tudo o mais que lhes sirva de real motivação. [...] E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de comportamento antijurídico.[i] (grifos do original)
Nesse seguimento, assevera o ministro Alexandre de Moraes em
obra doutrinária. Segundo ele, as pessoas públicas, tais como os agentes
políticos, se colocaram, eles mesmos, sob os holofotes da opinião popular[ii].
De acordo com o ministro:
O campo de interseção entre fatos de interesse público
e vulneração de condutas íntimas e pessoais é muito grande, quando se trata de
personalidades públicas. Nessas hipóteses, a interpretação constitucional ao
direito de informação deve ser alargada, enquanto a correspondente
interpretação em relação à vida privada e intimidade deve ser restringida, uma
vez que por opção pessoal as assim chamadas pessoas públicas (políticos,
atletas profissionais, artistas etc.) colocaram-se em posição de maior destaque
e interesse social.[iii]
Moraes
ainda destaca, em sua obra, que a liberdade de informação deve estar
comprometida com a verdade e, para merecer proteção jurídica, deve dizer
respeito a fatos de interesse social, de modo que essa liberdade, como todas as
outras, não é absoluta[iv].
Isso fica claro, pois, existe até mesmo a possibilidade de responsabilização do
veículo de comunicação em razão de inveracidade, imprecisão ou erro na
informação transmitida.
O ministro Menezes Direito, em voto vista na ação
constitucional já mencionada, sintetizou com maestria o que se pretende
esclarecer:
O que se tem concretamente é uma permanente tensão
constitucional entre os direitos da personalidade e a liberdade de informação e
de expressão, em que se encontra situada a liberdade de imprensa. É claro, [...],
que quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição,
deve-se defender a liberdade. O preço do silêncio para a saúde institucional
dos povos é muito mais alto do que o preço da livre circulação das ideias. A
democracia, para subsistir, depende de informação e não apenas do voto; [...].[v]
Entretanto, ao olhar para o atual cenário
brasileiro, percebe-se o contraste da realidade com esse entendimento há muito já
consolidado do Supremo Tribunal Federal. Isso pois, recentemente, o senador
Flávio Bolsonaro (Republicanos) entrou na justiça e conseguiu uma liminar,
mantida em segunda instância[vi],
para impedir a Rede Globo de apresentar matéria investigativa a respeito de um
esquema de “rachadinha” que envolveria o seu gabinete quando era deputado
estadual[vii].
Antes
que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro analisasse o recurso interposto
pela emissora de TV, a Rede Globo havia ingressado com reclamação perante o
Supremo Tribunal Federal. Os autos foram distribuídos para o ministro Ricardo
Lewandowski que negou seguimento à reclamação por não terem sido esgotadas
todas as instâncias recursais inferiores, deixando de analisar o mérito do caso[viii].
Ao
determinar a censura prévia às reportagens, tanto a juíza quanto o
desembargador incorreram em prática vedada pela Constituição e pelo Supremo
Tribunal Federal, indo contra tudo que foi juridicamente construído em termos
de direito à informação e liberdade jornalística.
É
possível aferir o quão grande é a importância das liberdades de expressão e de
imprensa para a manutenção do regime democrático, partindo de uma análise sobre
como a ditadura utilizou-se de técnicas de supressão desses direitos. Naquele
período, por meio da figura do censor, o governo avaliava matérias
jornalísticas, músicas, filmes e novelas, para decidir o que poderia ser produzido
e publicado tanto na imprensa quanto nas artes. Por isso, sendo a ausência de
uma imprensa livre uma das principais características de um regime autoritário,
tem-se que, caso tais liberdades sejam tolhidas a democracia não se sustenta.
Em sua obra O
liberalismo Político, o filósofo John Rawls aponta a importância da liberdade de expressão para a estabilidade
social, na medida em que é um meio de atenuar as tensões sociais e expor os
problemas em tempo para que sejam corrigidos. Assim explica o autor:
[...] quando a livre expressão política é garantida, problemas graves não passam despercebidos
nem se tornam extremamente perigosos de repente. São publicamente apontados; e,
num regime moderadamente bem governado, são levados em conta pelo menos em certo
grau. (sem grifos no original)[ix]
Da
mesma maneira pode ser tomada a liberdade de imprensa, que dá publicidade aos
fatos mais relevantes nacional e internacionalmente, permitindo que a sociedade
fique a par de situações que impactam diretamente suas vidas. Ainda, o
jornalismo leva ao conhecimento da sociedade acontecimentos capazes de formar a
opinião crítica, o que possibilita um voto bem informado. Assim, por meio da
livre circulação de fatos e opiniões, uma imprensa livre tem o condão de
assegurar, em sua plenitude, o sistema democrático.
Para
o filósofo, as liberdades políticas devem ser objeto da garantia do valor
equitativo, sendo essa uma forma de assegurar que sejam criadas e mantidas
instituições básicas justas na sociedade[x].
Então, sendo as liberdades de comunicação e de expressão um alicerce da
democracia, as instituições públicas devem garantir-lhe a proteção, para que a
imprensa cumpra sua função de informar a população.
De
acordo com Rawls, em uma sociedade livre não existe o crime de difamação ao
governo, segundo ele: “Enquanto esse crime existir, a imprensa publica e a
livre discussão não podem desempenhar seu papel de informar o eleitorado.”[xi].
Nesse sentido, não há que se falar em censura ao jornalismo que investiga
práticas de corrupção e faz críticas ao governo, já que essa é a função da
imprensa, por excelência, em uma sociedade livre.
Deste
modo, já que no Brasil não existe o crime de difamação ao governo — pois se o
contrário fosse não mais se estaria sob a égide de um estado de direito —,
conclui-se que o poder judiciário não deveria impedir a imprensa de divulgar
fatos de interesse da sociedade, envolvendo os atuais ou antigos ocupantes de
cargos políticos. Isso seria o mesmo que permitir, ao menos tendo em vista o
caso mencionado neste texto, que as autoridades políticas escapem da prestação
de contas à sociedade, sob o argumento de que sua imagem está na iminência de
ser ferida.
[i] Brasil, Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 130. Rel. Min. Carlos Ayres
Britto. p. 28. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>.
[ii] MORAES, Alexandre de. Direito
Constitucional. 33 ed. São Paulo: Altas, 2017. s/n.
[iii] Ibid., s/n.
[iv] Ibid., s/n.
[v] Brasil, Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 130. Rel. Min. Carlos Ayres
Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>.
Acesso em: 26 out. 2020. p. 91.
[vi] TERRA. Recurso da Globo é negado em caso de censura sobre Flávio.
Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/recurso-da-globo-e-negado-em-caso-de-censura-sobre-flavio,f50f74ed861eb13af3145c10620e9e45542w93j6.html>.
Acesso em: 26 out. 2020.
[vii] NOTÍCIAS UOL. “Não tenho nada a esconder”, diz Flávio Bolsonaro após liminar contra
Globo. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/05/nao-tenho-nada-a-esconder-diz-flavio-bolsonaro-apos-liminar-contra-globo.htm>.
Acesso em: 26 out. 2020.
[viii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl n. 43.671. Rel. Min. Ricardo
Lewandowski. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344754516&ext=.pdf>.
Acesso em: 26 out. 2020.
[ix] RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. 2. ed.
São Paulo: Ática, 2000. p. 404.
[x] Ibid.,
p. 386.
[xi] Ibid., p. 399-400.
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