08/07/2019

Opinião: Pela erradicação do trabalho infantil!

Foto: Reprodução, CBN.

           
            Na quinta-feira do dia 04 do mês de julho deste ano, o Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro se pronunciou quanto ao trabalho infantil:

Olha só, trabalhando com nove, dez, anos de idade na fazenda, não fui prejudicado em nada. Quando um “muleque” de nove, dez, anos vai trabalhar em algum lugar, “tá” cheio de gente aí: “trabalho escravo! Não sei o quê! Trabalho infantil!”. Agora, quando “tá” fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. “Tá” certo. Então, o trabalho não atrapalha a vida de ninguém. Fique tranquilo, que eu não vou “apertar” nenhum projeto aqui “pra” descriminalizar o trabalho infantil, porque eu seria massacrado. Mas, “quer” dizer que, eu, meu irmão mais velho, uma irmã minha também, um pouco mais nova, com essa idade – oito, nove, dez, doze anos – “trabalhavam” na fazenda, e trabalho duro![1]

            Esta foi mais uma das declarações polêmicas e desacertadas de nosso presidente acerca de assuntos que fazem parte da construção social e histórica de nosso país, que possui como marca a violência naqueles que precisam de proteção e garantia direitos para uma existência digna. Seu pronunciamento deve ser revisto e reconsiderado, pois suas palavras contêm sérios equívocos sobre o que seria infância, o que significa trabalho e como o trabalho infantil afeta ao desenvolvimento da criança e do próprio país.
            A infância é um período extremamente importante na vida de todo indivíduo, sua vivência plena — livre de abusos, violências físicas e psicológicas, explorações e crueldades que são geradores de traumas — é fundamental ao desenvolvimento cognitivo, emocional, físico, e social, pois produzem efeitos significativos à saúde e ao bem-estar na vida adulta. Trabalhar quando criança e adolescente propicia a privação da infância plena que deveria ser preenchida por ocupações que lhes permitam o desenvolvimento emocional, criativo e intelectual, através da educação, brincadeiras, apoio emocional e afetivo, entre outros. Por isso, no artigo 227 da Constituição, é estabelecido como dever da família, da sociedade e do Estado priorizar e garantir o “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”[2] da criança, do adolescente e dos jovens, assegurando-lhes um ambiente livre de violência, exploração, crueldade e opressão.
            “O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, outra frase proferida por nosso representante eleito que traz em si a noção de dignificação do ser através de um ofício que lhe proverá sustento. Esta primeira parte, de fato, está certa, pois o trabalho é um direito social e importante à vida adulta em termos sociais, financeiros e psicológicos. Mas, a expressão final, “não interessa a idade”, reitera sua concepção de que não há qualquer problema em relação ao trabalho infantil. Muitos teóricos dedicaram-se a determinar o papel do trabalho na construção social e econômica na vida do homem moderno. Adam Smith compreendia o trabalho como basilar à produção de riqueza, enquanto Karl Marx o definiu como uma “atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas [...].”[3]. Ou seja, para Marx, o indivíduo provém meios para o seu sustento através da força empregada em uma atividade laboriosa. Não entraremos em questões mais profundas acerca do modo de produção capitalista, mas advertimos a importância em se compreender que uma estrutura política, jurídica e econômica pautada apenas em lucro tende a corromper valores e negligenciar direitos.
Por isso, ao olharmos para os modelos de Estados Constitucionais perceberemos que a transição de um Estado Liberal para o Estado Social foi necessária para assegurar e afirmar direitos, principalmente em termos trabalhistas. Porém, conforme o Professor José Afonso da Silva, a incapacidade do Estado Social em garantir a justiça social e a “autêntica participação democrática do povo no processo político”[4], demandou uma nova concepção de estado, o Estado Democrático de Direito. Este último, para Sarlet[5] possui as vestes de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito. E, nossa Constituição Cidadã, além de nos assegurar direitos políticos de atuação no processo democrático, coloca-se como guardiã de direitos como a liberdade, propriedade e livre iniciativa, bem como, preza pela dignidade da pessoa humana, justiça social, função social da propriedade, e o valor social do trabalho.
Dito isso, a importância do trabalho no sentido individual e no sentido coletivo e econômico, é inquestionável. É um direito fundamental social, que possui garantias constitucionais de proteção ao trabalhador. Mas, seriam as crianças e os adolescentes indicados a empregar uma força de trabalho para garantir-lhes elementos básicos às suas subsistências?
No artigo sexto da Constituição federal temos elencados os direitos sociais que, dentre outros, além do trabalho, destacamos a educação, a saúde, a alimentação e a proteção à infância[6]. Assim como, o já referido artigo 227 que nos responde à pergunta acima: não compete às crianças e aos adolescentes buscarem meios para os seus respectivos sustentos, a eles deve ser protegida a infância e ser-lhes garantido pela família, sociedade e Estado meios dignos de vida, atendendo-lhes suas necessidades básicas para seus desenvolvimentos. Para tal, o parágrafo terceiro, do referido artigo, em seu inciso primeiro, estabelece, a partir da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, a idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho. E, em conformidade constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece em seu capítulo V as diretrizes quanto a profissionalização e à proteção no trabalho, sendo que, no artigo 60, proíbe “qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”[7]. 

Fonte: Rede Peteca apud FNPETI, 2015.

            Tais dispositivos legais foram tomados e mantidos pois, como podemos ver nos dados apresentados acima, o trabalho infantil é um problema sério a ser combatido, não podendo ser levianamente tradado por nosso Chefe de Governo e Chefe de Estado, pois este possui forte influência tanto em seu eleitorado, quanto por seu poder de fala que representa o nosso Estado Brasileiro perante a comunidade internacional. Conforme Maria Cláudia Mello Falcão[8], em seu artigo ao Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), nosso país atua desde a década de 1990 com políticas que visam a erradicação e prevenção ao trabalho infantil, sendo considerado pioneiro e referência internacional neste aspecto.

(...) o Governo brasileiro juntamente com trabalhadores, empregadores e sociedade civil vem implantando as disposições da OIT que constam na Convenção nº 138 (que estabelece a idade mínima de admissão ao trabalho e/ou emprego) e na Convenção nº 182 (que trata das piores formas de trabalho infantil), por meio dos instrumentos legais nacionais, além do desenvolvimento de políticas públicas específicas para a prevenção e eliminação do trabalho infantil. (...) Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2016 do IBGE, constata-se que, como resultado desse amplo empenho nacional, houve uma redução de 58% entre 1992 e 2016 no número de meninos e meninas entre cinco e 17 anos ocupados/as. Isso significa que em 2016 havia 4.905.000 crianças a menos envolvidas no trabalho infantil do que em 1992. Apesar destes avanços, ainda existem no Brasil cerca de 2,4 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos trabalhando.[9]

            Portanto, em conformidade com as convenções de Direitos Humanos citadas por Falcão, e sendo a luta contra esta violação de direitos às crianças, adolescentes e jovens parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS), a erradicação do trabalho infantil trata-se de um compromisso assumido pelo Estado brasileiro.
Pois, os impactos negativos físicos, psicológicos, econômicos e a manutenção do clico da pobreza na vida desses jovens se dá por tais violações de direitos. E, como bem pontuado por Falcão, o trabalho infantil garante um futuro “calcado pela baixa produtividade e desenvolvimento econômico e pelo aumento das desigualdades sociais”[10] às crianças, aos adolescentes, e à sociedade como um todo.
Dito isso, a postura de nosso presidente quanto ao trabalho infantil vai contra os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que consistem em construir uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, bem como, vise a erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais e preze pela promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme listados no artigo terceiro de nossa Constituição.

As opiniões contidas no texto refletem o posicionamento do autor, e não necessariamente da instituição. 





[1] BOLSONARO, Jair. Pronunciamento em live em rede social pessoal. Facebook, 04 de julho de 2019.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.  Acesso em: 07 ago. 2019.
[3] MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Tradução por Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1985a. Livro 1, v.1, t.1. p. 153.
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. 22ª ed. p. 118.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2018. 5ª ed. p. 61.
[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.  Acesso em: 06 ago. 2019.
[7] BRASIL. ECA - Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 06 ago. 2019.
[8] Coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
[9] FALCÃO, Maria Claudia Mello. A luta contra o trabalho infantil é uma agenda global. Brasília: FNPETI, 2019. Disponível em: < https://fnpeti.org.br/noticias/2019/06/12/luta-contra-o-trabalho-infantil-e-uma-agenda-global/>. Acesso em: 07 ago. 2019.
[10] FALCÃO, 2019.

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