Dica de Leitura: Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego
Maria Cláudia CACHAPUZ*
Fonte: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/12/Cachapuz-civilistica.com-a.4.n.2.20151.pdf
civilistica.com || a. 4. n. 2. 2015 || 1
Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego
Maria Cláudia CACHAPUZ*
RESUMO: Na medida em que a filosofia prática parte da preocupação em elucidar,
do ponto de vista moral, que critérios são utilizados para disciplinar os temas do
igual interesse de cada um e do igualmente bom para todos em sociedade, o
problema exposto no texto reside em explicar como as normas morais devem ser
fundamentadas e aplicadas, ainda que não haja suficiente convicção do porquê
devemos efetivamente ser morais para solucionar casos jurídicos que envolvam
direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. Partindo-se de um caso
concreto e similar ao “dilema do bonde”, de Philippa Foot, o presente texto busca
comparar as alternativas de decisão possíveis à luz do pensamento de Habermas,
Dworkin, Nussbaum e Singer, num comparativo entre éticas perfeccionistas e ética
utilitarista. Por fim, visa esclarecer a medida de contribuição do discurso jurídico
para, no âmbito do Direito, optar-se pela resposta correta ao caso concreto.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia moral; direitos fundamentais; relações entre privados;
discurso jurídico; casos difíceis.
SUMÁRIO: Introdução; Parte I: Autonomia e igualdade; Parte II: Liberdade e
discurso jurídico; Conclusão; Bibliografia.
ENGLISH TITLE: When Dying in the Contraflow no More Obstructs Traffic
ABSTRACT: As the practical philosophy has for ending the proposal of taking care
of equal interests in society and equal good for everybody, the problem developed
in this text correspond to explain how moral rules must be raised and applied,
even when isn ́t it enough to know why we must be moral nowadays. The idea is
also to know how to solve law hard cases in the relations between privates. From
the “trolley dilemma” of Philippa Foot, this text does a comparison among
Habermas’, Dworkin’s, Nussbaum’s and Singer’s doctrines in practical
philosophies, especially between perfectionists’ doctrines and the utilitarianism.
In the end, the text offers a contribution do jurisdictional discourse in Law in
order to build the right answer for the judicial case.
KEYWORDS: Moral philosophy; fundamental rights; relations beetween privates;
jurisdictional discourse; civil hard cases.
SUMMARY: Introduction; Part I: Autonomy and equality; Part II: Liberty and
legal discourse; Conclusion; Bibliography.
Introdução
No ano de 2015, em plena estação férrea do Rio de Janeiro, um dilema do campo
filosófico deixou de ocupar as preocupações e o teste metafísico - portanto, ainda quando proposto em caráter hipotético -, para ganhar espaço na construção de um
juízo de evidência real: Um maquinista restou autorizado, pela autoridade responsável
de uma concessionária de prestação de serviço público ferroviário, a passar com o trem
em movimento sobre o corpo de um vendedor ambulante atropelado, há instantes,
sobre os trilhos do trem (DUARTE, 2015). Para tal tomada de decisão, algumas
condições fáticas à rápida ponderação efetuada foram oferecidas: (i) a ausência
aparente de qualquer sinal de vida ao vendedor ambulante em face do atropelamento,
mesmo que ainda não atestada clinicamente uma situação de morte até o momento de
tomada de decisão; (ii) o atraso constatado para pronto atendimento e retirada do
corpo do local do atropelamento, a indiciar a real demora pela autoridade de trânsito
no atendimento emergencial em horário de tráfego intenso de passageiros; (iii) a
constatação de que, com eventual parada do trem em movimento, outros dois veículos
férreos seriam afetados no espaço de tempo computado para a prestação do serviço de
transporte ao público, retardando o trânsito de cerca de seis mil usuários da estação
naquele horário; (iv) a verificação de que a distância existente entre os trilhos do trem e
a primeira altura da base do vagão seria suficiente para evitar o efetivo atrito entre o
corpo estendido e o veículo em movimento; (v) a avaliação prévia de que o
atropelamento poderia ter sido motivado pela vítima, atirando-se sobre os trilhos do
trem para provocar a própria morte – portanto, supondo-se um desejo autônomo de
provocar o resultado morte; (vi) a real possibilidade de parar com antecipação o trem,
evitando-se o dilema moral, mas causando-se provável prejuízo, inclusive econômico,
aos passageiros que não deram causam direta ao incidente.
A decisão foi tomada com suficiente consulta à autoridade competente e com espaço
possível à reflexão. A opção consciente – e instantânea - foi pela adoção de uma solução
que partisse da construção de um juízo reflexivo fundado numa ética utilitarista, em
que restaram ponderados, para o caso, os meios disponíveis ao alcance de um menor
prejuízo a coletividade ainda produtiva envolvida no processo - autoridade estatal,
autoridade delegada, condutor do trem, passageiros. Como em todo o exercício
decisório para efeito de aplicação de uma ética funcionalista - em torno de um projeto
estratégico de alcance de fins -, a intersubjetividade pressuposta no teste da
universalidade perdeu força, a priori, para o alcance de um projeto coletivo. Pelo
exercício pragmático, literalmente, a conduta de passar por cima da pessoa restou
considerada como uma condição fática ponderável em momento de tráfego intenso.
Diferente não é a proposta de exame metafísico oferecida pela filósofa Philippa Foot
(2002), a propósito do enfrentamento de dilemas morais e da circunstância ética envolvida, quando analisadas virtudes, desejos e interesses particulares. No dilema de
Foot, um bonde está fora de controle em uma estrada. No caminho, cinco pessoas
amarradas na pista. É possível acionar um mecanismo que desviará o bonde para um
percurso diferente, em que há apenas uma pessoa igualmente atadas. Nessa hipótese,
deve ser adotado o desvio? Numa visão funcionalista do problema, a resposta fundada
numa análise quantitativa em relação aos prováveis atingidos pelo bonde autorizaria a
conclusão pela adoção do caminho de desvio.
A opção por uma filosofia utilitarista exige, necessariamente em todos os níveis de
enfrentamento de dilemas filosóficos, uma abordagem distinta em relação ao tema da
personalidade. Requer uma crença na dessacralização da concepção de vida humana,
como defende Peter Singer (2003), que parta de uma inversão da análise universal
pressuposta na razão prática dos modernos, para alcançar uma ética prática distinta: a
decisão a ser tomada exige antes de qualquer teste da universalidade um "raciocínio
pré-ético", em que as condições a serem ponderadas digam respeito, unicamente, a
interesses daqueles que sejam afetados pela decisão, de forma a eleger o modo de atuar
que apanhe as "melhores consequências" (SINGER, 2009, p. 25). O enfoque utilitarista,
portanto, é uma postura mínima a ser observada: "Uma primeira etapa que alcançamos
ao universalizar a tomada de decisões interessadas"1 (SINGER, 2009, p. 26). Apenas
por boas razões, suficientemente demonstradas, é que se poderia ir além de um
raciocínio estratégico, acolhendo um pressuposto de universalização de conduta: "Até
que nos sejam oferecidas estas razões, temos motivos para seguirmos sendo
utilitaristas"2 (SINGER, 2009, p. 26).
O teste moral exigido pelo utilitarismo, portanto, não parte de aspirações universais.
Tampouco se preocupa em creditar à autonomia do indivíduo – mesmo quando parta
de uma concepção fundada na intersubjetividade – papel central no exame do dilema
filosófico. O que importa é centrar na ideia de igualdade a resolução dos problemas
concretos apresentados e a partir das condições empíricas oferecidas à resolução: “A
essência do princípio da igual consideração de interesses é que, em nossas deliberações
morais, damos a mesma importância aos interesses parecidos a todos aqueles a quem
afetamos com nossas ações”3 (SINGER, 2009, p. 32).
1 Na tradução livre da versão espanhola: “Una primera etapa que alcanzamos al universalizar la tomada de
decisiones interesadas.”
2 Na tradução livre da versão espanhola: “Hasta que no nos sean oferecidas estas razones, tenemos motivos
para seguir siendo utilitaristas.”
3 Na tradução livre da versão espanhola: “La esencia del principio de igual consideración de intereses es
que en nuestras deliberaciones morales damos la misma importancia a los intereses parecidos de todos
aquellos a quienes afectan nuestras acciones.”
No dilema do trem, a perplexidade extraída de uma decisão como a adotada pela
concessionária do serviço férreo em torno da ideia de autonomia e de
intersubjetividade é proporcional ao assombro provocado pelo enfoque de abordagem
utilitarista, quando parte este de uma exigência de raciocínio estratégico e que, apenas
por exceção, atinge uma universalização em relação à solução de colisão de liberdades
em sociedade. De forma diversa ao conceito de base da doutrina perfeccionista
kantiana, no utilitarismo clássico, a concepção de autonomia parte de premissas de
relevância distintas para o intérprete, principalmente quando envolve interesses de
alcance não apenas individual, mas intersubjetivo. É o que permite a Peter Singer,
ainda que de forma lógica e coerente aos ideais regulativos funcionalistas, compreender
que “possuir uma personalidade moral não constitui uma base satisfatória para o
princípio de que todos os seres humanos são iguais”4. Conforme Singer, se, para os
modernos, autonomia representa “a capacide de eleger, de fazer e de atuar segundo as
próprias decisões”5 (SINGER, 2009, p. 106), a partir de uma concepção utilitarista não
necessariamente a autonomia seria considerada um princípio moral básico, “nem
sequer um princípio moral válido”6 (SINGER, 2009, p. 106).
Parte I: Autonomia e igualdade
No livro “O futuro da natureza humana”, Jürgen Habermas parte da análise da
condição científica mais recente que permite, numa combinação entre medicina
reprodutiva e técnica genética, chegar a um método de diagnóstico genético de pré-
implantação de embriões. Ou seja, permite-se hoje submeter o embrião que se encontra
num estágio de oito células a um exame genético de precaução, antes da implantação,
de forma a, dentre outras coisas, evitar-se o risco de transmissão de doenças
hereditárias. O assombro de Habermas é relacionado, justamente, à constatação de um
progresso das ciências biológicas associado ao desenvolvimento da biotecnologia de
forma a (i) ampliar as possibilidades de ações humanas conhecidas e (ii) possibilitar
um novo tipo de intervenção. Esta, para Habermas, é a fronteira confusa "entre a
natureza do que somos e a disposição orgânica que damos a nós mesmos"
(HABERMAS, 2004b, p. 17).
A filosofia prática, portanto, parte da preocupação em elucidar, do ponto de vista
moral, que critérios passamos a adotar para analisar situações que possam enfrentar os
4 Na tradução livre da versão espanhola: “Poseer una ‘personalidad moral’ no constituye uma base
satisfactoria para el principio de que todos los seres humanos son iguales.”
5 Na tradução livre da versão espanhola: “La capacidad de elegir, de hacer y actuar según las propias
decisiones.”
6 Na tradução livre da versão espanhola: “Ni tan siquiera um principio moral válido.”
temas do igual interesse de cada um e do igualmente bom para todos em sociedade.
Isto passa a ser um problema contemporâneo permanente pelo fato de que, por mais
que nos convençamos de que as teorias deontológicas pós-Kant expliquem como as
normas morais devem ser fundamentadas e aplicadas - e quanto a isso talvez não se
tenha dúvidas em relação à construção da razão-prática -, ainda não nos encontramos
suficientemente convictos do porquê devemos efetivamente ser morais. E, quanto a
isso, como ressalta Habermas, "certamente a teoria moral paga um preço muito alto
por dividir seu trabalho com uma ética especializada nas normas da autocompreensão
existencial" (HABERMAS, 2004b, p. 7).
Para quem não parta, por definição, de um modelo de moral perfeccionista, uma
resposta estratégica a tal tipo de indagação - saber por que devemos observar condutas
morais apesar de tudo - talvez esteja fundada numa situação de risco. Na medida em
que, seguindo Habermas, reconhecemos que os avanços tecnológicos passam a exigir
uma nova "margem de decisão" (HABERMAS, 2004b, p. 18) inclusive quanto aos
limites à geração de vida humana, corremos um risco sério de termos que estabelecer
um novo parâmetro à autocompreensão. Ou decidimos de forma autônoma, "segundo
considerações normativas que se inserem na formação democrática da vontade"
(HABERMAS, 2004b, p. 18), ou podemos resultar sujeitos à arbitrariedade, "em função
de preferências subjetivas, que serão satisfeitas pelo mercado" (HABERMAS, 2004b, p.
18).
A dupla dinâmica de enfoque em relação à dimensão de autonomia do indivíduo - como
individualidade e como intersubjetividade - aproxima a discussão filosófica do campo
de análise da liberdade em termos jurídicos. Quando se fala em autonomia, se está, em
verdade, discutindo questão mais ampla que a pressuposta num direito geral de
liberdade pelo indivíduo. Habermas é quem estabelece uma distinção bastante clara: os
conceitos se diferenciam pelo âmbito de sua abrangência. Enquanto a liberdade é
sempre subjetiva, porque fundada nas peculiaridades do indivíduo – suas “máximas de
prudência, pelas preferências ou motivos racionais” (HABERMAS, 2004) -, a
autonomia é um conceito que pressupõe uma estrutura de intersubjetividade,
determinado por máximas aprovadas pelo teste da universalização.
Quanto à liberdade subjetiva, não é difícil imaginar que algumas pessoas
possam gozar da liberdade e outras não, ou que algumas pessoas possam
ser mais livres do que outras. A autonomia, ao contrário, não é um conceito
distributivo e não pode ser alcançada individualmente. Nesse sentido
enfático, uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem
igualmente. A ideia que quero sublinhar é a seguinte: com sua noção de
autonomia Kant já introduz um conceito que só pode explicitar-se plenamente dentro de uma estrutura intersubjetivista. (HABERMAS, 2004, p. 13)
Isso significa compreender que, para efeito de análise do problema posto dentro das
bases de um discurso jurídico - que essencialmente trabalha com categorias morais -,
ainda que se possa reconhecer a liberdade do indivíduo em abstrato, é necessário que
lhe seja possível visualizar também autonomia em potencial, porque autorizada a
percepção como participante de uma comunidade moral ou “como uma comunidade
formada de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns aos outros
como fins em si mesmos” (HABERMAS, 2004, p. 13). Participar do discurso jurídico
não importa, portanto, em simples verificação de uma potencial liberdade em
sociedade, pelas escolhas realizadas de forma ampla. É preciso que se reconheça
autonomia ao indivíduo, porque, no mínimo, ao menos em potencial, há o
reconhecimento intersubjetivo de que tratamos, uns aos outros, como fins em si
mesmos.
Assim, toda e qualquer decisão acerca do dilema do trem, para quem parta de uma
concepção moderna de liberdade, fundada a partir de um enfoque filosófico humanista,
é antes a construção de um juízo que não dispensa, para a situação concreta, o exercício
do teste transcendental de Kant por uma ética universal. Daí a pergunta: É possível
generalizar a conduta de movimentar o trem por cima do corpo estendido nos trilhos,
ainda que sem tocá-lo, sem o oferecimento de uma razão suficiente ao afastamento de
um respeito ao princípio de dignidade à pessoa humana para além de sua existência
com vida? Ou seja, há que se considerar, além das condições estratégicas (fáticas e
jurídicas) a envolverem os interesses daqueles diretamente afetados pelo dilema – a
questão pré-ética dos utilitaristas -, uma interpretação moral prévia que considere
igualmente relevante os direitos de personalidade do corpo estendido no chão?
O que torna mais complicado enfrentar, na contemporaneidade, o tema da autonomia é
justamente o fato de que nem sempre partimos de mesma definição acerca das
condições de interação em sociedade. E aqui nem se fala de uma hipótese de ausência
de espaço à autonomia, como em Hannah Arendt (1999), pelo reconhecimento da falta
do espaço para o ato de pensar. A questão ora discutida é quanto à própria extensão
acerca de uma definição do conceito de autonomia para a construção de juízos morais
ou mesmo jurídico capazes de interferirem de forma significativa em conflitos
complexos, como por exemplo, no campo da bioética, na definição de capacidades ou
no recente debate sobre o direito dos animais não-humanos – inclusive para o
reconhecimento de capacidade própria.
Há quem compreenda, como Nussbaum, que a autonomia possa ser uma condição
precária de "existência finita" (NUSSBAUM, 2013, p. 192) e que, portanto, apenas se
veja fortalecida quando existente uma consciência - e, mais, uma condição de
reconhecimento a priori - de uma vulnerabilidade no corpo social. O que representa, de
certa forma, um retorno ao pensamento antigo baseado em virtudes e restrições desde
logo justificadas e fundadas numa justiça distributiva repaginada pela ideia de
“cooperação social” (2013). Ou ainda, compreender, na linha de Dworkin (2014), que é
possível distinguir fronteiras entre a boa vida e o bem viver, dimensionando ideais
éticos distintos para a vida com dignidade e para o alcance de condições fáticas
suficientes (na saúde, nos relacionamentos, nas circunstâncias econômicas) ao
desenvolvimento de uma vida digna.
Mais recentemente, Michael Sandel (2013) igualmente propôs a discussão do tema a
partir de situações de ética aplicada, em que discute hipóteses de “melhoramento
genético” (2013, p. 13) – a partir da dualidade observada às descobertas genéticas, seja
como promessa de melhora à saúde, seja como dilema de manipulação da natureza
humana (2013, p. 19) - e de uma nova proposta de eugenia no mundo contemporâneo
por uma ética sujeita a relativizações. A opção de Sandel, dadas às situações extremas
de análise, é por uma ética que implique em ponderação frente aos casos apresentados,
ainda que parta de uma concepção de autonomia quase sacra: “Ganharíamos mais
cultivando uma valorização mais ampla da vida como dádiva que pede nossa
reverência e restringe nosso uso” (SANDEL, 2013, p. 133).
Não é por acaso, portanto, verificar-se essa preocupação com as virtudes e com certo
retorno a ideais antigos sobre o que deve ser contido, ainda que minimamente, na ideia
do “bem”. A preocupação é justamente com a força do argumento apresentado por
autores como Peter Singer à base de uma filosofia utilitarista que ganha corpo numa
visão mais ampla de interesse. Quando tratamos, de forma séria, de temas como a
questão da capacidade, do aborto e da eutanásia, da igualdade entre espécies – e,
portanto, não apenas entre humanos - pelo enfoque utilitarista, é atraente a construção
filosófica oferecida que permite vencer, pela ideia de interesse, qualquer fronteira de
questões de justiça – principalmente em termos de igualdade - a envolver animais ou
pessoas com determinadas incapacidades. Por outro lado, é extremamente
preocupante, como aponta Nussbaum, partir de uma visão que “encoraje a produzir as
melhores consequências gerais como ponto de partida correto para a justiça política” (2013, p. 417). E justamente é o que explica, para Nussbaum, certa retração a priori na
construção de uma concepção de autonomia:
Realizar uma pequena lista das capacidades centrais, como direitos
fundamentais baseados na justiça, é um modo de posicionar-se acerca do
conteúdo. Mas é também, principalmente, um modo de anunciar nossa
contenção diante de pessoas com concepções abrangentes diferentes
(NUSSBAUM, 2013, p. 419).
A questão, por consequência, é a de compreender em que medida se deve estabelecer
limites a priori a um exercício de liberdade intersubjetiva e de que forma devem estar
justificadas razões sérias à restrição de toda e qualquer liberdade ao mesmo tempo em
que se possa potencializar a autonomia como um princípio ainda relevante à moral na
sociedade contemporânea. Algo que escapa ao enfoque utilitarista, mesmo na
concepção mais liberal de Peter Singer, na medida em que o problema da justiça parte
não de um foco central na análise de liberdades – e, portanto, com ausência de
preocupação centrada no valor da autonomia – e sim na análise privilegiada de
pressupostos de igualdade.
E esta talvez seja a questão perversa em relação à construção utilitarista do argumento
moral de fundo: Para alcançar-se uma pretensão estratégica de cunho liberal – e,
assim, potencializar o melhor dos interesses a quem esteja diretamente relacionado
num conflito, independentemente de juízos hipotéticos a priori -, a justificativa
filosófica compreende uma premissa valorativa apenas de cunho igualitário amplo,
capaz de criar patamares abstratos e meramente formais de igualdade na mesma
proporção em que gera um risco de destruição significativa a toda tradição humanista
de construção de valores à existência humana.
Não por outro motivo poderia se questionar a edição recente do Estatuto da Pessoa com
Deficiência (Lei no 13.146/15) quando promove alteração significativa no texto do
enunciado normativo do art. 3o do Código Civil brasileiro ao extirpar o critério do
discernimento – e, portanto, da ideia de racionalidade – para a determinação da
capacidade civil. Não há como não reconhecer que se trata da adoção de um enfoque
eminentemente funcionalista em relação à concepção de autonomia, na medida em que
privilegiada uma ideia de igualdade formal e material entre os indivíduos, em
detrimento de uma ponderação necessária acerca de critérios claros para o
estabelecimento dos modos quanto à possibilidade de expressão da vontade.
Parte II: Liberdade e discurso jurídico
Num mesmo sentido, Jürgen Habermas reconhece a dificuldade de enfrentamento do
problema das restrições de conduta quando analisa, exemplificativamente, a
possibilidade de autolimitação normativa nas questões referentes à vida embrionária.
Esclarece que esta interferência, de fato, “não pode se voltar contra as intervenções da
técnica genética em si” (HABERMAS, 2004, p. 61), inclusive por não se tratar de um
problema da técnica, mas do alcance e do modo de intervenção que serão efetuados em
concreto. Nem por isso adota uma postura favorável à eugenia liberal sem ponderação
prévia. Ao contrário, propõe, para casos de interferência máxima e irreversível sobre a
geração do outro – como no caso de pesquisa clínica com embriões a partir da
possibilidade de um diagnóstico genético de pré-implantação –, quando ainda existam
fronteiras amplas entre a investigação científica e as motivações a tanto, que sejam
estabelecidos padrões a priori mais rígidos para a hipótese de uma eugenia negativa
(HABERMAS, 2004b, p. 96), desde logo permitindo a verificação de freios à própria
pesquisa, caso não apresentados objetivos claramente terapêuticos na intervenção
sobre a geração da vida do outro. É o que garante, segundo Habermas, nas condições
fáticas atuais, que se evite uma instrumentalização sobre a vida do outro quando ainda
inexistente certeza acerca de um prognóstico de intenções e resultados científicos.
O exercício é justificado pela filosofia de bases discursivas. Se há interesse em
continuarmos como uma comunidade moral, porque compreendida a necessidade de
manutenção de pretensões de correção às condutas individuais para compatibilizá-las à
vida em sociedade, permanece sendo relevante alcançar-se certo consenso em termos
deontológicos, justamente porque se faz necessário tolerar a convivência social. Buscar
descrever o fenômeno jurídico a partir do discurso prático - e sua versão especial, do
discurso jurídico (ALEXY, 2012) -, impõe o compromisso ao intérprete de privilegiar o
binômio da universalidade-particularidade, cujo cerne da discussão encontra-se na
promoção de um direito geral de liberdade e na possibilidade ampla e aberta de
problematizar sobre desejos, opiniões, interesses. O ambiente dessa discussão, ainda
que possa ser limitado a determinadas condições, não é, contudo, um universo restrito
aos interesses em jogo.
Não se parte, por consequência, de uma limitação estratégica que tenha traves
estabelecidas a partir de um projeto determinado – o que poderia conduzir
necessariamente à compreensão de que importam apenas os interesses particulares
daqueles afetados pelo dilema (SINGER, 2009, p. 32). Há um compromisso mais
amplo de teste da racionalidade em termos universais, mesmo que a discussão proposta
seja aparentemente de menor relevância. Por certo, na grande maioria das vezes, o próprio sistema oferecerá respostas potentes à solução dos conflitos. Mas para a fração
específica de casos que demandam uma resposta distinta, seja porque ainda não foram
testados, seja porque oferecem peculiaridades próprias, é fundamental que não se perca
a dimensão da racionalidade na construção de uma resposta possível. E uma resposta
que não tenha pretensões individuais na sua abrangência – ainda que possa ser
“individualizante em seu foco” (ROUANET, 2001, p. 33) -, mas que potencialmente
reconheça um alcance igualmente institucional à solução que venha a ser adotada em
concreto.
Sérgio Paulo Rouanet, identificando o mal-estar do mundo contemporâneo, justamente
em face da construção de uma filosofia anti-subjetivista - que é, na sua essência, anti-
humanista (ROUANET, 2001, p. 64) -, aponta de forma clara ser o particular, e não o
universal, o grande adversário de uma ética universalista. E tal ocorre não pela
destruição da particularidade – o que seria típico a regimes totalitários – e sim pela
criação incessante da particularidade (ROUANET, 2001, p. 65). É o particular que
“transfigura ideologicamente particularidades empíricas existentes, ou cria essas
particularidades (...), balcanizando o mundo para melhor controlá-lo” (ROUANET,
2001, p. 65). O que permitiria, inclusive, a justificação da particularidade pela
banalização que o universal poderia, em tese produzir. Circunstância, contudo, que não
condiz, por excelência, com a filosofia discursiva, como bem ressalta Rouanet: O
universalismo iluminista “não preconiza o genocídio das particularidades existentes. O
que ele recusa é a criação ideológica de particularidades fraudulentas, ou o uso
ideológico de particularidades reais, como álibi para a dominação ou como pretexto
para silenciar a crítica” (ROUANET, 2001, p. 69).
Por isso parte-se da compreensão de que, prima facie, impõe-se a observância a um
princípio que exige a maior medida possível de liberdade geral de ação. Mas tal
amplitude de liberdade corresponde, proporcionalmente, a uma mesma extensão de
liberdade negativa. Um conceito jurídico que se estabelece a partir da possibilidade de
sempre sofrer restrições e que permite uma preocupação permanente com a
composição de liberdades colidentes no espaço público. Não se pode pretender que
entre o que é comum a todos haja espaço para, arbitrariamente, preferir-se um agir a
outro com base numa valoração entre o melhor e o pior e a partir da perspectiva
exclusiva dos envolvidos. Imprescindível é que se volte ao exame da razão prática
evidenciada pelo problema concreto que envolve direitos fundamentais, não por meio
do critério do que é bom, mas do que é correto. A correção propugnada não é aquela
que corresponda a um ideal de validade incondicional ou absoluta. Trata-se, frente à perspectiva do discurso, de uma pretensão de correção disposta de forma ideal, mas
também condicionada e aberta às circunstâncias próprias do discurso particular. Ou
como esclarece Habermas nos seus Comentários à ética do discurso:
"No caso da razão prática, poder elucidar os elementos de um universo
social sobre o que é melhor para os mesmos e sobre a forma como devem
regulamentar a sua vida em conjunto, abrirá, então, a possibilidade a um
conhecimento prático que é certamente construído a partir da perspectiva
intrínseca ao nosso universo, mas que simultaneamente transcende esse
horizonte” (HABERMAS, 1991, p.89).
Esta é a flexibilidade esperada de uma fundamentação racional, pelo discurso, na
perspectiva de análise pragmática a um caso concreto. Daí porque não há como se falar
no efetivo exercício de racionalidade quando se observam decisões fundadas em
concepções estritamente utilitaristas no Direito. O que sustenta a pretensão de correção
pelo discurso – e, portanto, assegura unidade e autonomia ao sistema jurídico - é
justamente a possibilidade de compatibilização entre a simultânea proteção de
liberdades e a garantia de segurança jurídica pela escolha racional de uma solução
correta a todo o caso empírico proposto a uma análise jurídica. Algo que, de forma
alguma, combina com o atropelo do conceito de personalidade em plena luz do dia.
Conclusão
Para concluir, há que se compreender, efetivamente, que se torna cada vez mais difícil
sustentar pretensões de correção moral numa vida de relação marcada pela
virtualidade e por avanços tecnológicos fantásticos - que, inclusive, aumentam
consideravelmente as chances de permanência da vida sobre a Terra. A experiência
humana, contudo, apresenta uma tradição histórica que nos permite constantemente
desconfiar do alcance dados aos interesses individuais quando se fazem ausentes
compromissos morais a priori. E, principalmente, quando ignoramos aquilo que
adquirimos como herança histórica em nome de uma correção de rumos, a partir do
estabelecimento de premissas de comparação igualitária fundada, por vezes, num total
desconhecimento acerca dos “pares de comparação” eleitos.
O ideal é que se possa, com a cautela suficiente, efetivamente dar crédito às conquistas
filosóficas da humanidade nos últimos séculos, não desconhecendo a possibilidade de
permanente alteração de paradigmas a que se sujeitam as estruturas vinculadas à
moral. Enquanto tal não se vê superado por alternativas distintas e suficientes à
construção do pensar, mantém-se a crença no valor intrínseco reconhecido à concepção
de autonomia para os modernos.
Seguindo a compreensão de Habermas, “sem aquilo que move os sentimentos morais
da obrigação e da culpa, (...) sem o sentimento da libertação conferido pelo respeito
moral, sem a sensação gratificante proporcionada pelo apoio solidário” (HABERMAS,
2004b, p. 100), em certa medida, viveríamos uma realidade sem restrições, mas
igualmente sem controle sobre o espaço comum. Em pouco tempo, “perceberíamos
necessariamente – e é assim que pensamos – o universo povoado pelos seres humanos
como algo insuportável” (HABERMAS, 2004b, p. 100).
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civilistica.com
Recebido em: 05.10.2015
Aprovado em:
13.10.2015 (1o parecer)
30.10.2015 (2o parecer)
civilistica.com || a. 4. n. 2. 2015 || 12
Como citar: CACHAPUZ, Maria Cláudia. Quando morrer na contramão não mais atrapalha o tráfego.
Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 2, 2015. Disponível em: . Data de acesso.
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