Por Rafaella Pacheco.
“(...) poderíamos dizer,
historicamente, que a sociedade humana nasceu com a compaixão e com o cuidado
do outro, qualidades apenas humanas. A preocupação contemporânea está toda aí: levar
essa compaixão e essa solicitude para a esfera planetária. Sei que gerações
precedentes já enfrentaram essa tarefa, mas vocês terão de prosseguir nesse
caminho, gostem ou não, a começar por sua casa, por sua cidade — e já.”[1]
Nesta
última semana tivemos posicionamentos mais incisivos em relação ao controle
epidemiológico do COVID-19. Grande parte das instituições de ensino suspenderam
suas atividades acadêmicas, e os entes federados, bem como seus respectivos
órgãos, tem se pronunciado acerca de medidas de prevenção e controle sobre a
doença. Destacamos as orientações a respeito de cuidados individuais como higiene
das mãos, evitar aglomerações, manter os ambientes ventilados, e não compartilhar
seus objetos pessoais. Em caso de resfriado, ou mesmo gripe, a orientação é ficar
em casa e observar seu quadro de sintomas. Caso apresente febre, tosse e
dificuldade de respirar, deve-se procurar auxílio médico[2].
Mas,
além das medidas informativas de saúde, o governo federal determinou o
fechamento temporário das fronteiras terrestres do Brasil, inicialmente pelo
prazo de 15 (quinze) dias. Num primeiro momento apenas com a Venezuela, em
divisa com o estado de Roraima, e posteriormente com a Argentina; Bolívia;
Colômbia; Guiana Francesa; Guiana; Paraguai; Peru; e Suriname. Cabe ressaltar
que a Portaria nº 125 que trata sobre a restrição de acesso ao nosso país nesse
período de pandemia, apoiou-se nas recomendações da Anvisa, e não se aplica aos
brasileiros, natos ou naturalizados; imigrantes com prévia autorização de
residência definitiva em território brasileiro; profissionais estrangeiros em
missão a serviço de organismo internacional, desde que devidamente
identificado; e aos funcionários estrangeiros acreditado junto ao Governo
brasileiro.[3]
Tais
restrições também não impedem o tráfego do transporte rodoviário de cargas; a
execução de ações humanitárias transfronteiriças previamente autorizada pelas
autoridades sanitárias locais; e o tráfego de residentes de cidades gêmeas com
linha de fronteira exclusivamente terrestre[4].
Outro ponto a se observar são as sanções em caso de descumprimento de tais
medidas, implicando em responsabilização civil, administrativa e penal do
agente infrator; bem como, na deportação imediata do agente infrator e a
inabilitação de pedido de refúgio.[5]
Recentemente,
o podcast Hora do Intervalo[6]
trabalhou questões relevantes sobre a nova epidemia, e dentre elas, a
questão do controle de fronteiras. Nossa colega de redação, Manuela Paola, destacou
que a saúde deveria ser um tema que ultrapassasse fronteiras, haja vista que a
epidemia não as respeita. E o professor Gustavo Blum, do curso de Relações
Internacionais do Unicuritiba, ressaltou a importância do controle das
fronteiras para a manutenção das atividades estatais, como da própria segurança
e da saúde pública do país.
“Jamais deixaremos de ser estrangeiros:
permaneceremos assim, e não interessados em interagir, mas, justamente porque
somos vizinhos uns dos outros, destinados a nos enriquecer reciprocamente.
(...) quanto mais o espaço e a distância se reduzem, maior é a importância que
sua gente lhe atribui; quanto mais é depreciado o espaço, menos protetora é a
distância, e mais obsessivamente as pessoas traçam e deslocam fronteiras.”[7]
Zygmunt
Bauman está se referindo às fronteiras entre pessoas em espaços reduzidos, mas
acredito que possamos espelhar tal concepção sobre as fronteiras entre países
de um mesmo continente. Esta afirmação pode ser claramente vista nas questões
de cunho migratório e na transformação de países hegemônicos em enclaves
fortificados. Podemos ainda transpor tal olhar ao posicionamento do Brasil em
relação aos demais países fronteiriços da América Latina.
O
antropólogo norueguês Fredrik Barth, é citado por Bauman em sua obra Confiança
e medo na cidade para ressaltar que o objetivo das fronteiras não está em
delimitar diferenças, ao contrário, é o fato de demarcarmos fronteiras que as
distinções se consolidam e, por sua vez, tornam-se legitimadas. Mas, sendo a
delimitação uma justificativa para o fortalecimento de uma identidade e
soberania nacional, a ausência de fronteiras em relação ao direito universal à
saúde e, como destacado por Manuela, não reconhecida pela própria epidemia, não
deveria ser um motivador para caminharmos em sentido oposto? Entendemos a
questão do isolamento como fundamental para o controle da epidemia, mas no caso
da Venezuela, a justificativa para a restrição de seus nacionais em nosso
território brasileiro foi atribuída por nosso presidente, Jair Bolsonaro, à fragilidade
do país venezuelano. Esta fragilidade não deveria ser abraçada por uma
solidariedade entre nações, em busca de uma integração e fortalecimento através
da colaboração e reciprocidade em prol da humanidade?
Retomando
o podcast Hora do Intervalo, a professora Edna Torres Felício, do curso
de Direito do Unicuritiba, pontuou sobre a competência administrativa acerca da
esfera da saúde, compreendendo a atuação estatal fundamental para a vigilância
epidemiológica da saúde individual e coletiva. Outro ponto destacado pela
professora é a ausência de legislação sobre quarentena, e para tanto, foi
expedida em caráter emergencial a Lei nº 13979, de 06 de fevereiro de 2020, a
respeito de medidas de urgência para enfrentamento da epidemia do corona vírus[8].
A
professora Edna nos explicou que alguns direitos individuais podem vir a ser
suprimidos em prol da saúde pública, dentre eles, o direito de ir e vir. Para
isso, ela nos relembrou que os direitos fundamentais possuem estrutura de
princípios e por isso podem vir a colidirem, demandando a harmonização no caso
concreto. E, neste sentido, deve-se respeitar a temporariedade, a legalidade e a
proporcionalidade, para se evitar uma ampliação do controle estatal de forma
arbitrária.
Apoiando-se
no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, Torres reforçou que momentos
de insegurança, como a da presente pandemia, suscitam a instauração de estados
de exceção que podem vir a ser tomados como paradigmas de normalidade. Nesse aspecto
o medo pode ser utilizado como ferramenta para a insurgência de um estado não
democrático. Algo similar ao papel do terror para a manutenção de poder num
sistema totalitário, outrora analisado por Hannah Arendt em Origens do
Totalitarismo. Esta parte final da fala da professora Edna é muito
importante pois nestes últimos dias as palavras “estado de sítio” têm-se
apresentado temerosamente presentes e constantes na mídia.
“As fronteiras e
deslocamentos migratórios são processos econômicos e socioculturais, como são
estudados pelos demógrafos, antropólogos e sociólogos, e também processos
simbólicos que se expressam como metáforas, e não apenas como conceitos.”[9]
Utilizando da comparação proposta por
Canclini das fronteiras e deslocamentos, e porque não das restrições a estes,
como processos simbólicos dados por metáforas, torna-se inevitável nos
remetermos ao entendimento de sintoma para Freud e Lacan[10].
Este último, compreendia o inconsciente enquanto linguagem e o sintoma enquanto
mensagem-metáfora, ou seja, um significante de um significado recalcado. Para
Freud, o caminho da gênese da neurose é trilhado pelo inconsciente diante de um
trauma que o recalca e se manifesta sob as vestes de sintoma.
O ponto
que gostaria de chegar na questão sobre as fronteiras, suas delimitações e medidas
de contenção, reside exatamente nesta concepção de metáfora que Canclini sugeriu,
e que podemos correlacionar com a compreensão de sintoma para a psicanálise. Um
sintoma que na verdade não guarda enquanto trauma, ou significado recalcado, a
pandemia que vivemos, mas é um sintoma similar à crise migratória, à
desigualdade entre os povos, e a manutenção de estruturas de poder que
consolidam blocos hegemônicos. Portanto, finalizo com uma proposta de reflexão:
qual é o trauma, em termos de humanidade, que estes sintomas sociais, políticos
e econômicos tentam nos revelar?
[1]
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar,
2009. p. 90.
[2] BRASIL. Corona vírus –
COVID-19. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/>.
Acesso em:20/03/2020.
[3] BRASIL. Portaria nº
125, de 19 de março de 2020. Brasília: Diário Oficial, 2020. Art. 4º.
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/portaria-125-fechamento-fronteiras.pdf
>. Acesso em, 20/03/2020.
[4]
BRASIL, 2020, art. 5º.
[5]
BRASIL, 2020, art. 6º.
[6]
Podcast dos Blogs Internacionalize-se e Unicuritiba Fala Direito.
[7]
BAUMAN, 2009, p. 75.
[8] BRASIL. Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020. Brasília: Diário Oficial da União, 2020.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm>.
Acesso em: 21/03/2020.
[9] CANCLINI, Nestor García. O
Mundo Inteiro como Lugar Estranho. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2016. p. 65.
[10] VILLELA DIAS, Maria das
Graças L. O Sintoma: de Freud a Lacan. Psicologia em Estudo: Maringá, v.
11, n.2 maio/2006.
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