Por Giovanna Maciel**
Ao final da década de 50, em São
Paulo, encontramos uma moça conservadora e completamente dependente de seu pai
– Ademar – e de seu marido - Pedro. No entanto, sua vida toma um rumo
completamente diferente quando Pedro desaparece ao viajar para o Rio de Janeiro
a fim de montar um restaurante. Maria Luiza, é claro, segue os rastros do
marido e, em terras cariocas, essa jovem passa a descobrir um novo mundo na
companhia de mulheres feministas e liberais, ao som da Bossa Nova.
Protagonizada por quatro personagens,
cada uma com seus problemas e dilemas a série mostra que, unidas, elas são capazes
de superar seus impasses, ainda que vivam em realidades diferentes. Uma
premissa da série é que, por mais que se passe nos anos 1950 e começo dos anos
1960, muitos dos pensamentos da época permanecem enraizados em nossa sociedade.
A questão em si, não é sobre os ideais
feministas, nem se cada uma delas consegue superar seus próprios obstáculos.
Também, não diz respeito apenas sobre a amizade das mulheres, bebedeiras e
bossa nova. A questão trazida pela série é muito mais profunda. Diz respeito
aos direitos das mulheres – ou falta deles. Assistindo a série com um pouco de
empatia, nos deparamos com alguns questionamentos que, apesar de comuns à época
devido à falta de legislação, ainda permanecem em nosso cotidiano.
Dentre estes questionamentos, a falta
de direitos civis das mulheres. Maria Luiza não consegue pedir empréstimos ou
dar andamento ao seu projeto do clube de música por um motivo: não ser
homem. A própria personagem faz uma
passagem quanto à preocupação do banco em exigir a assinatura de um homem para
conceder um empréstimo, mas pouco terem se preocupado com o fato de que foi um homem quem levou
todo o seu dinheiro. Em breve análise da evolução dos direitos da mulher,
percebe-se que só em meados dos anos 1960 houve alteração no Código Civil a fim
de ampliar os direitos da "MULHER CASADA". Isso mesmo! Só a partir de 1962 as
mulheres que fossem casadas não precisavam mais PEDIR AUTORIZAÇÃO do marido
para trabalhar, receber heranças e ficar com a guarda dos filhos em caso de
separação. Engraçado é que, por mais que a expressão “pedir autorização” nos
choque nos dias atuais, não é raro ver situações de mulheres que não são
capazes de adquirir sua liberdade financeira porque seus cônjuges ou
companheiros as impedem ou dificultam o acesso ao mercado de trabalho.
Em linha oposta, encontramos
Thereza. Seu marido não vê problemas quanto ao trabalho e ainda a incentiva.
Entretanto, o impasse está justamente em seu local de trabalho: uma revista
FEMININA composta apenas por editores HOMENS. Ainda, ao propor pautas que
saíssem um pouco do padrão "bela, recatada e do lar", teve que ouvir de seu
chefe – homem – que assuntos mais revolucionários não interessavam às mulheres
(claro, porque um homem sempre sabe o que mais interessa à mulher). Como se não
bastasse, ao sugerir contratar uma redatora mulher, usou o argumento de que
mulheres recebem menos do que os homens e, por isso, seria mais vantajoso
contratá-la. Aqui, ao invés de inexistirem direitos à mulher, ressalta-se que
em 1951, anos antes do tempo cronológico da série, a Organização Internacional
do Trabalho aprovou a igualdade de remuneração entre trabalho masculino e
feminino para igual função. Por óbvio, mesmo quase 60 anos após a normativa,
ainda vemos corriqueiramente mulheres recebendo salários bem inferiores, mesmo
desempenhando o mesmo papel de seu colega.
O cenário de Lígia é um pouco diferente. Ela é
casada e parece estar sempre feliz. Mas ao longo dos capítulos, conhecemos sua realidade... Ao se casar, ela abriu mão do seu maior sonho:
ser cantora. Infelizmente, seu marido não aceita que ela trabalhe e, muito
menos, que viva da música, mesmo sabendo o quanto isso a faria feliz. No
desenrolar da história, vemos inúmeras cenas de violência doméstica, em sua
forma psicológica, física, sexual e, indiretamente, até econômica. A personagem
se depara com estupro marital, diversas agressões físicas, xingamentos e
ofensas, mas não conta para ninguém sobre os fatos, nem para suas amigas, devido
seu marido ser pessoa rica, da alta sociedade e possuir bom relacionamento
político. Aos poucos ela deixa sua vida e desejos de lado para manter a boa
imagem de seu cônjuge. Ressalto, ainda, que foi apenas com a Lei Maria da
Penha, em 2006, que o governo passou a olhar um pouco para essas mulheres
vulneráveis. Até então, a máxima de “em briga de marido e mulher não se mete a
colher” era fielmente seguida. Ainda que hoje, mais de 10 anos após a
promulgação desta lei vejamos situações como esta todos os dias, é muito mais
difícil de imaginar o sentimento da mulher do século passado, sem qualquer
amparo.
Finalmente, temos Adélia.
Uma mulher negra, mãe solteira, moradora do morro e doméstica. Somente por ser
negra, ela vive uma realidade completamente diferente das demais. A cada
capítulo a personagem passa por alguma forma de discriminação, seja pela sua
antiga chefe, impedindo-a de usar o elevador social do prédio, seja pelas
demais protagonistas da série, em especial Lígia. Ao contrário das demais,
Adélia não busca seu lugar na sociedade e consequentes direitos civis. Ela
busca seu reconhecimento como humana, pois não era tratada e vista como tal. Em
minha opinião, é neste contexto que há mais falhas da produção. Pouco se mostra
da realidade dos negros no Brasil daquela época, dando mais ênfase na
dificuldade em erguer o clube de música, do que das dificuldades de aceitação
de uma mulher negra na sociedade carioca – e brasileira. Coincidentemente, este
é um dos fatos que mais nos deparamos nos dias atuais. Ainda que mulheres
continuem ganhando menos, ainda que continuem sofrendo diariamente violências domésticas
e tenham seus direitos civis subestimados, nada se compara à realidade desta
tripla vulnerabilidade. Mulher. Negra. Pobre. O modo como as coisas acontecem
para Adélia parecem, de certo modo, simples, nada compatível com a realidade,
já que rapidamente adquire um alto cargo no clube de música e não recebe nenhum
tipo de discriminação por parte dos clientes. Isso abre precedente para o
questionamento: a alta sociedade da época aceitaria uma negra como sócia de um
estabelecimento, sem qualquer manifestação contrária? Eu acredito que não.
É possível notar o
tamanho da diferença entre os contextos sociais vividos entre as personagens
por uma questão simples, igualmente presente no nosso cotidiano. Tanto Maria
Luiza, quanto Adélia possuem filhos, entretanto, ao deixar São Paulo e ir atrás
do marido no Rio de Janeiro, Maria Luiza contou com todo o apoio de sua mãe, a
qual se dispôs a cuidar de seu filho. Por outro lado, Adélia não tinha com quem
deixar sua criança, tendo que leva-la, inclusive, para o trabalho por não ter
outra opção naquele momento.
No geral, a série é incrível, com uma
ótima produção e demonstra, em sua maioria, o machismo presente no nosso
cotidiano mesmo com a lenta evolução dos direitos femininos. Não subestimem a
trama pelo simples fato de ser brasileira, muito menos por ser protagonizada
por quatro mulheres. Mas, ao assistirem, aproveitem o tempo para refletir, que
é o real motivo de sua produção. Claro, ainda há muito que se discutir e
acredito que por essa mesma razão tenham deixado o capítulo final em aberto,
possibilitando uma continuação.
E caso você ainda esteja se
perguntando porque esta resenha veio parar num blog de Direito, eis aqui sua
resposta: a série é interessante justamente por ilustrar a importância das
conquistas jurídicas femininas ao longo do Século XX e XXI, bem como para
refletir sobre sua aplicabilidade. Aproveito o momento para deixar mais uma
pergunta: apenas a criação de normas tem sido eficaz no combate à discriminação
das mulheres, ou há algo a mais que precisa ser feito neste sentido?
Por fim: mulheres, ao assistir a
série, pensem nos seus direitos, nas lutas das nossas antepassadas e em como
podemos lutar para conquistar a real paridade de gêneros. Pensem na união
feminina, em como uma pode ajudar a outra, ao invés de apontar os dedos umas
para as outras. Homens assistam com suas namoradas, amigas, sozinhos. Reflitam
sobre o machismo implícito em suas condutas do dia a dia e em como isso afeta
não só a elas, mas a vocês mesmos. Não tenham medo de “passar vergonha” por
assistir uma “série de menininha” – isso é só mais uma consequência do machismo!
** Giovanna Maciel é acadêmica do nono período de Direito do UNICURITIBA e integra a equipe editorial do Blog UNICURITIBA Fala Direito, Projeto de Extensão coordenado pela Profa. Michele Hastreiter.
Deu vontade de assistir...Parece ser muito boa!
ResponderExcluirAdorei, deu vontade de assistir
ResponderExcluirRealmente a série é incrível e retrata a luta das mulheres por seus direitos! Parabéns Giovanna.
ResponderExcluirQ texto maravilhoso, com certeza faz jus à série! Parabéns Giovanna! Suas considerações são pertinentes às reflexões que a série aborda, com uma crítica bem construída em relação a aceitação da personagem Adélia naquele contexto. A série, por si só, já me impactou ( além do tema, temos que apreciar a atuação, a direção, a fotografia e a trilha sonora. Esta última também atua como um personagem no decorrer dos episódios), agora estou refletindo sob o aspecto jurídico. Parabéns mais uma vez!
ResponderExcluirA indignação com respeito aos direitos conquistados ainda dói! Nós mulheres temos que vencer os preconceitos machistas que infelizmente as próprias mulheres ainda tem sobre as mesmas! Toda esta luta será vencida por cada uma de nós, com o devido respeito restaurado.
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