25/11/2020

Por Onde Anda: José Augusto Pedroso, Advogado.

Por Helem Keiko Morimoto

 

O Ex-aluno cedeu uma entrevista para o Blog UNICURITIBA Fala Direito. Confira:

Nome completo: José Augusto Pedroso (OAB/PR 42.986).

Ano de ingresso no curso de Direito: 2002.

Ano de conclusão do curso de Direito: 2006.

Ocupação atual: advogado (sócio Pedroso e Henrichs Advogados).

 

 Blog UNICURITIBA Fala Direito: Conte-nos um pouco sobre sua jornada profissional.

 José: Minha jornada profissional começou no segundo ano do segundo grau, quando fiz um “estágio” (mais para office boy), duas vezes na semana, em um escritório de advocacia. Parei para estudar para o vestibular e logo que entrei na Faculdade, eu já sabia que desejava exercer a advocacia. Não me passava pela cabeça outras áreas, como as de concursos e, por isso, todos os meus estágios foram em escritórios, voltados à prática da advocacia. Pouco a pouco, peguei gosto pela rotina da advocacia e fui me tornando um advogado. Ao final do curso, não me via fazendo outra coisa. Estudei arduamente para a prova da OAB e com a “carteira rosa em mãos” (2007) fui chamado para atuar como associado em um Escritório com enfoque na área de Direito Público (Henrichs Advogados Associados).

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Como se deu o início da sua trajetória no Direito Eleitoral? E quais as maiores dificuldades que percebe na área?

 José: Eu já atuava na área do Direito Público, mas não fazia muitas ações eleitorais. Porém, em 2011, passei a trabalhar como advogado associado no Escritório VGeP (Vernalha Guimarães e Pereira, hoje chamado de Vernalha-Pereira), que possui um departamento de Direito Eleitoral. Pude participar da pré-campanha do candidato Gustavo Fruet, que veio a se tornar prefeito de Curitiba para o mandato 2013-2016. Também atuei na campanha de Luiz Carlos Setim (prefeito de São José dos Pinhais entre 2013-2016) e de Marcelo Rangel (prefeito de Ponta Grossa entre 2013-2016), que venceu aquelas eleições no segundo turno, com uma pequena e emocionante vantagem de votos. A dificuldade do Direito Eleitoral é angariar clientes, já que os políticos, de maneira geral, tendem a não confiar em novatos. Portanto, o maior desafio é formar uma carteira inicial de clientes. Depois, estes mesmos clientes passam a fazer indicações e a atividade passa a ser mais constante e rentável.

  

Blog UNICURITIBA Fala Direito: O senhor crê que é possível vislumbrar mudanças no Direito Eleitoral a cada eleição? Acredita que as eleições de 2020 estão tendo desdobramentos diferentes das demais?

José: Todas as áreas do Direito vêm sofrendo alterações substanciais, mas o Direito Eleitoral é conhecido por ser uma das áreas mais dinâmicas e com mais mudanças. Cada eleição é única, com regras novas (as chamadas mini reformas) que mudam totalmente as estruturas de campanhas. Há 8 anos (eleição geral de 2012) não se tinha o impacto que a internet tem hoje em dia na formação da opinião do eleitor, de modo que as demandas judiciais migraram substancialmente para fatos que ocorrem no meio virtual e este é apenas um dos exemplos. Antes, o candidato tinha que bater de porta em porta; hoje, a porta pode ser uma conta em alguma rede social. O direito eleitoral tem que estar atento a estas alterações, de modo a permitir que os candidatos disputem com certa igualdade de condição, a chamada “paridade de armas”.

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Blog Unicuritiba Fala Direito: Como é o dia a dia do seu trabalho?

José: Esta é a parte que mais gosto na minha profissão. Cada dia é um dia! Tem dias que fico cumprindo prazos e escrevendo teses de algum lugar com internet - podendo ser no escritório, em casa, ou até mesmo na praia. Tem dias que separo para atender clientes, fechar novos contratos, fazer networking, ou tomar um café com algum colega ou possível cliente. Tem os dias de audiências ou sustentações orais perante os Tribunais e tem os dias em que prefiro chegar mais tarde no escritório e me dedicar à uma leitura pessoal, ou a algum esporte (e isso é fundamental para manter a criatividade acesa).

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Em tempos de Pandemia do Covid-19, como está sendo sua rotina? O que mudou?

José: Muitos setores da sociedade civil foram severamente afetados pela COVID-19, tal como o setor cultural, que tiveram suas atividades completamente paralisadas. Em contrapartida, a advocacia, foi uma das áreas menos impactadas com a pandemia, já que o Judiciário não parou e o processo eletrônico permitiu o trabalho remoto de todos os operadores do direito. Na prática, a minha rotina não mudou muito. Eu acabei trocando alguns dias de escritório por home office; as reuniões presenciais por meio eletrônico (o que poupou muito tempo de deslocamento) e mais alguns ajustes de horário que permitiram conciliar as atividades do escritório, com as necessidades da minha família. Para quem tem criança pequena (e eu tenho uma filha de 3 anos e outra recém-nascida), a falta de escola demandou mais tempo em casa, mas no final, acabei ajustando a rotina de trabalho para fazer em 6 horas o que eu fazia em 8h ou mais. A pandemia veio para repensarmos valores e o uso do meu tempo foi  algo que mereceu especial reavaliação neste era de “novo normal”.


Blog UNICURITIBA Fala Direito: Qual foi a sua experiência mais desafiadora no ambiente profissional?

José: A advocacia é feita de batalhas (embora as redes sociais só revelem as que saímos vitoriosos). Algumas menores, outras maiores, mas todas são importantes para a formação e amadurecimento do profissional. Toda campanha é desafiadora e este ano tivemos alguns julgamentos emblemáticos, com duas decisões tomadas por 4x3 dos 7 magistrados que compõem o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. No final, toda eleição acaba sendo desafiadora, pois, nos municípios menores, a disputa costuma ser mais passional entre os candidatos; nas cidades maiores, o volume de informação, de processos, o alto custo das campanhas e as pessoas envolvidas, acabam tornando a advocacia eleitoral igualmente desafiadora.


Blog UNICURITIBA Fala Direito: Quais as aptidões e conhecimentos desenvolvidos no curso de Direito que mais o ajudam na sua profissão atual?

José: Eu costumo dizer que se você sabe as regras do jogo, o campo pode mudar, o clima pode ser diferente, os jogadores podem ser outros, mas a “partida acontece”. Sempre gostei de processo civil e de matérias mais práticas e este conhecimento, adquirido na Faculdade, me ajudou a entender a “regra do jogo” e a perceber como funciona o processo de maneira geral. Com isso, pude me adaptar mais facilmente ao processo no Direito Eleitoral e em outras áreas que não tive tanto contato na Faculdade (como processos administrativos perante o Tribunal de Contas). Infelizmente, algumas coisas como: relacionamento com cliente; a inteligência emocional para lidar com os altos e baixos da carreira; cobrar honorários adequados, entre outras aptidões, só mesmo vivenciando a advocacia e com alguns anos de atuação.

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Qual a lembrança mais marcante do período de faculdade de Direito?

José: . Eu tenho inúmeras lembranças adoráveis do meu período de faculdade. Fui um acadêmico feliz e que vestia a camisa da UniCuritiba. Comecei na sede antiga. Admirava a união entre todos os acadêmicos do primeiro ao quinto ano. Os professores também eram bastante integrados com os alunos. Parecia que os mais velhos “cuidavam” dos mais novos, numa espécie de mentoria, e os mais novos nutriam uma admiração pelos veteranos que gerava um círculo muito benéfico à formação acadêmica. Aprendi a jogar pebolim (totó) no centro acadêmico; a tocar “surdão” nos jogos jurídicos, a discutir política nos intervalos e a observar a oratória dos veteranos. Estudei com afinco, mas também participei de inúmeras festas (quantos “churras de calouros”, trotes do bem, dia do pendura, jogos jurídicos e outros encontros). Fiz grandes amigos, me apaixonei e extraí o que foi possível da Faculdade.

Para citar uma lembrança, em um dos “jogos jurídicos”, as festas foram canceladas devido à uma briga entre a torcida da Curitiba com a da PUC (a rixa era grande naquela época). Sem programação oficial, nos juntamos em 3 pessoas e passamos a ligar em quartos aleatórios do hotel (inteiramente ocupado pela nossa delegação) e a anunciar que no “quarto 32” aconteceria uma festa épica, somente para convidados VIPs. Era para ser um trote, mas na falta de opção e devido à nossa lábia ao telefone, pouco a pouco os “convidados” foram surgindo e o quarto superlotou. Com gente no corredor, querendo entrar, começou a haver briga para acessar o “camarote vip”. Um veterano, sacana, passou a cobrar valores de entrada e alguns desavisados quiseram pagar o convite. Foi inusitado e divertido. Uma “verdadeira Fake News”.

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Quais são os seus planos para o futuro?

José: A tecnologia tem mudado muito a forma de atuar. Há quem diga que a inteligência artificial virá para substituir parte dos operadores do Direito e que o direito virará um “copia e cola sem fim”. Prefiro acreditar que a demanda por trabalhos específicos, feitos sob medida, por profissionais especializados, por gente que olha nos olhos e entende o sentimento do cliente, sempre vai existir. Você pode comprar um terno feito em grande escala, mas não é como vestir um traje que lhe foi feito sob medida. Meu plano para o futuro é conseguir permanecer prestando este serviço jurídico “sob medida”.

 

Blog UNICURITIBA Fala Direito: Qual seria sua dica para aqueles que desejam seguir carreira neste universo do Direito?

José: Se você gosta de política e de Direito Eleitoral, procure se aproximar de profissionais que trabalham com isso. Só no Paraná, existem 399 Municípios, com 399 Câmaras de Vereadores (todas com no mínimo 9 vereadores). Considerando a quantidade de candidatos, de 2 em 2 anos, surgem novas oportunidades de atuação. O perfil do político também está mudando bastante. A lei da ficha-limpa reciclou a política e tem muita “gente do bem” precisando de assessoria em suas campanhas. Ah, claro, estude muito, mas isto não chega a ser uma dica. É pressuposto para qualquer área.

 

 

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18/11/2020

Em pauta: O ativismo necessário em defesa do meio ambiente

 

Por Nicoly Schuster. 

O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamental de terceira dimensão, fazendo parte dos direitos coletivos aos quais todas as pessoas tem interesse em ver resguardado. A doutrina e jurisprudência brasileiras comumente atrelam o direito ao meio ambiente à dignidade da pessoa humana, de modo que uma existência digna necessariamente depende da manutenção de condições ambientais sadias.

A dignidade humana se aproxima do conceito de cidadania, na medida em que não seria possível o exercício pleno da cidadania (entendida como uma vida digna em sociedade, não apenas no sentido de participação política) sem que um mínimo existencial seja assegurado[1]. Segundo Cichelero, Nodari e Calgaro:

Afinal, se um sujeito vive abaixo de um certo nível de bem-estar material e social (e acrescenta-se aqui, ambiental), ele simplesmente não pode participar da sociedade como cidadão, e muito menos como cidadão igual aos outros que detêm essas condições. Diante disso, Rawls reconhece como elemento constitucional essencial a existência de um mínimo social que supra as necessidades básicas de todos os cidadãos. Isso porque seria inócuo falar em igualdade de oportunidades e desigualdades vantajosas para os indivíduos marginalizados se eles não possuíssem sequer o básico para as suas vidas.[2]

Dessa forma, o desenvolvimento social em torno de garantias à dignidade humana cristaliza um patrimônio político-jurídico insuscetível de redução, pautando-se no princípio da vedação ao retrocesso, consagrado no texto constitucional pátrio, dada a necessidade de uma estabilidade mínima para que seja possível a garantia e exercício dos direitos fundamentais[3].

Nessa linha, em virtude da inerência entre a preservação ao meio ambiente e a dignidade humana, as correntes ambientalistas revelam ser necessária a existência de um mínimo socioambiental, de modo que medidas inferiores a esse patamar não sejam toleradas. Conforme consignam Sarlet e Fensterseifer:

[...] o recuo de um direito não pode ir aquém de certo nível, sem que esse direito seja desnaturado. Isso diz respeito tanto aos direitos substanciais como aos direitos procedimentais. Deve-se, assim, considerar que, na seara ambiental, existe um nível de obrigações jurídicas fundamentais de proteção, abaixo do qual toda medida nova deveria ser vista como violando o direito ao ambiente’.[4]

Neste ano (2020), a questão ambiental ficou sob os holofotes da mídia, com destaque aos retrocessos e à inércia do Poder Executivo em matéria de proteção ambiental. O mais triste episódio, de longe, foram os incêndios no pantanal, tragédia a qual não foi dada uma resposta efetiva e imediata por parte do governo federal. Para piorar, o Ministério do Meio Ambiente tivera um corte no orçamento de combate a incêndios florestais, justamente durante o período de secas na região amazônica e pantaneira[5].

A isso, somam-se as empreitadas do próprio ministro do meio ambiente (que deveria ser guardião do equilíbrio ambiental) que ao menos por duas vezes nesse ano reduziu as normas de proteção ambiental. A mais recente medida ministerial foi a autorização, durante o período de defeso, da pesca com finalidade econômica em Fernando de Noronha, decisão que foi inclusive criticada pelo secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, José Antônio Bertotti Júnior[6].

Outra providência tomada pelo Ministério do Meio Ambiente foi a alteração das normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), a partir da edição da Resolução 500/2020 que reduziu a proteção à áreas de mangues e restingas. Essa investida contra o meio ambiente foi levada ao Poder Judiciário por partidos políticos, através da propositura das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 747, 748 e 749, que pediram a suspensão da referida resolução. Os argumentos deduzidos pelos partidos foram acolhidos pela ministra Rosa Weber, que determinou liminarmente a suspensão da medida, destacando que

Na seara do direito ambiental, o respeito ao rule of law assume uma dimensão substantiva que se impõe como limite objetivo às medidas de natureza legislativa, administrativa ou judicial que se revelem contrárias aos interesses da proteção ambiental, dada a particular suscetibilidade dos bens jurídicos por ele tutelados aos efeitos potencialmente deletérios de flutuações normativas. (...)

Nesse contexto, embora não caiba ao Poder Judiciário se substituir à avaliação efetuada pelo Administrador relativamente ao mérito das políticas ambientais por ele desenvolvidas, insere-se no escopo de atuação dos Tribunais, por outro lado, forte no art. 5º, XXXV, da CF, assegurar a adequada observância dos parâmetros objetivos impostos pela Constituição, bem como preservar a integridade do marco regulatório ambiental. [7]

O voto da ministra bem revela o posicionamento incisivo adotado pelo Supremo Tribunal Federal quando se trata de violações ao meio ambiente provocadas por atos do Executivo e do Legislativo. Tomemos como exemplo o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4901, uma das quatro ações ajuizadas contra o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012). Na decisão, são levantados importantes princípios atinentes à preservação ambiental, dentre os quais se destaca o da vedação à proteção insuficiente e o da proibição ao retrocesso.

Na referida ADI, exprimiu o ministro Celso de Mello que o poder público tem o encargo de “impedir, de um lado, a degradação ambiental e, de outro, de não transgredir o postulado que veda a proteção deficiente ou insuficiente, sob pena de intervenção do Poder Judiciário”[8]. O Estado, portanto, deve respeitar o princípio da proporcionalidade, que compreende de um lado a proibição do excesso (não deve impor medidas excessivamente restritivas) e noutra ponta a vedação à proteção insuficiente (devendo assegurar efetiva proteção ao meio ambiente).

Além disso, deve observar o princípio da vedação ao retrocesso, atuando de maneira ativa na manutenção de políticas efetivas de preservação ambiental, sem que a legislação sofra alterações para impor piores condições de proteção. Nessa esteira, aduziu a ministra Cármen Lúcia à doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer, para os quais os atos emanados do poder público precisam passar por rigoroso controle de constitucionalidade a fim de que se avalie a sua proporcionalidade e a observância ao núcleo dos direitos socioambientais. Para os autores, destaca ela, a vedação ao retrocesso não implica no engessamento da atividade legislativa e administrativa, mas impõe limites às medidas restritivas em matéria de direitos ecológicos.[9] 

A ministra ainda destacou que o Estado tem o dever de garantir a efetividade da proteção ao meio ambiente vez que “os direitos fundamentais revestem-se de inegável força vinculante a eles atribuída pela própria Constituição, a cuja autoridade incontestável acham-se submetidos todos os poderes que pluralizam no âmbito de nossa organização política”.[10] Assim, tomada a dignidade humana como núcleo axiológico das constituições democráticas modernas e considerando que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é intrínseco à dignidade humana, tem-se que o Estado, em todas as suas frentes, tem o encargo de intervir para garantir-lhe a proteção. Dessa maneira, a responsabilidade pela proteção ambiental recai sobre todos os entes da federação (art. 23, VI, CF) e sobre todas as esferas de poder.  

O Poder Judiciário teria, então, a prerrogativa de fazer valer o mandamento constitucional de proteção ambiental, caso o Poder Público deixe de fazê-lo, o faça de maneira insuficiente ou ainda o viole de maneira ativa, por meio de quaisquer atos capazes de precarizar as proteções ambientais levando-as abaixo desse nível mínimo de obrigações jurídicas de proteção.

A filosofia política de John Rawls pode contribuir para elucidar o raciocínio sobre a preservação de recursos naturais, no que tange o desenvolvimento social ao longo do tempo. Levando em conta que uma sociedade deve se organizar não apenas com vistas ao momento presente, o autor elabora o princípio da poupança justa, que serve para preservar e limitar o uso de recursos, considerando as gerações vindouras[11].

Lumertz e Vieira, ao interpretar o princípio apresentado pelo filósofo, exprimem que as gerações atuais devem preservar o que foi adquirido e, ao mesmo tempo, poupar os recursos para que as gerações futuras possam deles usufruir[12]. Segundo os autores, essa noção de poupança pode facilmente se aplicar à preservação do meio ambiente, de maneira que os recursos dele provenientes devem ser (em sua maior parcela) preservados para as gerações futuras, antes de serem explorados pela geração contemporânea. 

Levando em conta a teoria de justiça de Rawls, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (enquanto direito fundamental) deveria ser previsto na Constituição e efetivado a partir das políticas protetivas elaboradas pelo Poder Legislativo. Entretanto, o cenário é distinto quando se tem, na realidade mal-ordenada brasileira, instituições do próprio poder público que propositalmente violam o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio. Nesse contexto, deve-se apontar para a necessidade de ser garantida a vedação ao retrocesso na questão ambiental, devendo o judiciário intervir em todo e qualquer ato do poder público que coloque a proteção ambiental abaixo do mínimo necessário para que os cidadãos vivam com dignidade.



[1] CICHELERO, César Augusto; NODARI, Paulo Cesar; CALGARO, Cleide. A justiça e o direito fundamental ao meio ambiente. Opinión Jurídica, Medellín,  v. 17, n. 34, p. 171-189,  dez. 2018. p. 183.
[2] Ibid., p. 184
[3] LUMERTZ, Eduardo Só dos Santos; VIEIRA, Fabricio dos Santos. A justiça e o direito segundo John Rawls: uma abordagem possível. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 72, p. 115-139, maio/ago. 2012, p. 136.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3. ed.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 302.
[5] G1. Governo reduz verbas para brigadas de incêndio florestal em 58% em um ano. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/09/12/em-um-ano-governo-bolsonaro-corta-verba-para-brigadistas-em-58.ghtml>. Acesso em: 16 nov 2020. 
[6] G1. Governo de Pernambuco critica liberação de pesca da sardinha em Fernando de Noronha. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/11/01/governo-de-pernambuco-critica-liberacao-de-pesca-da-sardinha-em-fernando-de-noronha.ghtml>. Acesso em: 16 nov 2020.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 748. Rel. MIn. Rosa Weber. Inteiro teor da decisão, p. 32. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/rosa-weber-resolucao-conama.pdf >. Acesso em: 17 nov 2020.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4901. Rel. Min. Luiz Fux. Inteiro teor do acórdão, p. 631. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750504532&prcID=4355097#>.  Acesso em: 28 set. 2020.
[9] Ibid., p. 222.
[10] Ibid., p. 626.
[11] RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. Martins Fontes: 2003, p. 226.
[12] LUMERTZ; VIEIRA, op. cit., p. 134.
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14/11/2020

Me indica um podcast - Projeto Humanos Caso Evando: a (in)Justiça contada nos mínimos detalhes

Por Felipe Ribeiro.

Contar uma história criminal nunca é fácil e o desafio se torna ainda maior quando a vítima é uma criança. Por quase dois anos, o Projeto Humanos explorou e tentou trazer certa luz a um dos episódios policiais e jurídicos mais emblemáticos do Paraná. Só para a gente ter uma ideia, esse é o homicídio que até hoje é marcado pelo maior júri popular da história brasileira, com 34 dias. Com um trabalho, que não consigo definir menos que brilhante, Ivan Mizanzuk nos apresenta fatos, dúvidas e nos prova que toda a acusação foi uma mentira, já que tudo é feito a partir de confissões obtidas por meio de tortura.

Fazendo um breve resumo, apenas para contextualizar o caso, Evandro Ramos Caetano desapareceu em 6 abril de 1992, aos seis anos, em Guaratuba, no Litoral do Paraná. Cinco dias depois, um corpo foi encontrado próximo a sua casa e aí entra todo um elemento mórbido: o pequeno estava sem as mãos, sem os olhos, sem o couro cabeludo, sem alguns dedos dos pés, com uma parte da coxa esquerda faltando, com o ventre aberto e sem os órgãos internos. Apesar de testes de DNA comprovarem que de fato é a mesma pessoa, até hoje ronda um certo mistério se aquele de fato era o menino.

Inicialmente, o grupo de elite da Polícia Civil, o Tigre (Tático Integrado de Grupos de Repressão Especial) foi designado para o caso. Sem conseguir solucionar o ocorrido, porém, um grupo da Polícia Militar, o Aguia (Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque) foi enviado um tempo depois para desvendar o caso. E foi o que supostamente aconteceu.

           Sete pessoas acabaram presas por envolvimento no que o Aguia relatou como um ritual de magia negra. E aqui entram mais elementos que assustariam a todos: a filha e a esposa do prefeito de Guaratuba, Beatriz e Celina Abagge, estavam entre os acusados.

            Com todos esses elementos, é óbvio que o caso ganhou um estrondoso espaço da mídia e aqui é um dos primeiros pontos que merecem elogio a Ivan Mizanzuk. O produtor do podcast nos mostra como a mídia pode ser preconceituosa e criar narrativas que vão acompanhar acusados pelo resto da vida.

É o lado processual jurídico, porém, que talvez seja o maior destaque do trabalho. Ao longo dos 36 episódios, muitos que chegam a passar de 2 horas, Mizanzuk apresenta detalhes que partem do inquérito policial, passa pelas argumentações da defesa, pela acusação do Ministério Público do Paraná, pelo primeiro júri popular (aquele que é o mais longo da história do país), pela anulação do júri (sim!), e pelos demais júris, desta vez ocorridos de forma separada em Curitiba.

        O podcast também se destaca ao nos apresentar conceitos que poderiam ser, de certa forma, complexos, como o funcionamento de um júri popular no Brasil e as diferenças com o sistema penal dos Estados Unidos.

Tortura

À polícia, Beatriz, Celina Abagge, e outros três acusados: Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula Ferreira confessaram envolvimento no crime. As fitas com as confissões ganharam intensa repercussão na época e a divulgação delas gerou muita revolta na população de Guaratuba.

Durante a instrução processual, porém, os cinco, mais Airton Bardelli e Francisco Sérgio Cristofolini passam a alegar que sofreram torturas.

Para a acusação, isso nunca aconteceu, a ponto de as confissões continuarem sendo extremamente relevantes no decorrer do processo.

Quase trinta anos depois, porém, Mizanzuk apresenta novas fitas e elas provam: as torturas aconteceram, mesmo com a vigência da Constituição de 1988. Por óbvio, toda a história está contaminada e temos um mistério em aberto.

Com tudo isso, me resta aqui apenas indicar o podcast Projeto Humanos Caso Evandro. Ele está disponível em praticamente todas as plataformas, incluindo o Spotify e o Deezer. Em breve, o caso será retratado também em série da Globoplay e em livro, escrito pelo próprio Mizanzuk.

 

*Em tempo...

Lembra que eu falei da dúvida em torno do corpo? Ela aparentemente se justifica, uma vez que temos um caso ainda em aberto em Guaratuba: o desaparecimento de Leandro Bossi, que sumiu poucos meses antes de Evandro. Até hoje não temos uma resposta para esse caso, mas a relação entre eles sempre foi muito explorada e Mizanzuk relaciona muito bem as histórias.

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12/11/2020

Em pauta: Qual o limite da ampla defesa? Uma análise do caso Mariana Ferrer

 

Por Beatriz Duma.

No dia 3 de novembro de 2020 o The Intercept Brasil tornou público um vídeo junto a uma matéria acerca do caso da acusação de estupro de Mariana Ferrer contra André de Camargo Aranha[i]. No vídeo, há trechos de uma das audiências do processo, na qual a vítima do suposto estupro é intensamente ofendida e atacada pelo advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho. O conteúdo das falas de Gastão não será repetido nesse texto, como forma de respeitar Mariana Ferrer e diminuir a circulação de falas tão danosas.

Além da atitude severamente inadequada e desrespeitosa do advogado do réu, é importante salientar também como houve negligência do juiz Rudson Marcos pois, mesmo presente no momento em que Gastão atacava a vítima, o juiz se manteve omisso e não advertiu o advogado. A audiência em questão pode ser assistida na íntegra através do canal no YouTube do Estadão[ii].

Após a publicação da matéria e vídeo houve uma grande comoção nacional nas redes sociais e também ocorreram protestos em grandes cidades brasileiras. Dentre as várias questões que foram levantadas, o horror sentido por muitas pessoas ao ver as falas do advogado do réu e a omissão do juiz trouxeram um interessante debate sobre os limites da ampla defesa em um processo penal democrático. É sobre esse tema que nos debruçaremos neste texto.

A ampla defesa é um princípio constitucional do ordenamento jurídico brasileiro e possui status de cláusula pétrea, pois é um dos direitos fundamentais enunciados no artigo 5° da carta constitucional, no inciso LV[iii]. Isso significa que no decorrer de um processo, seja ele judicial ou administrativo, é necessário assegurar para as partes em litígio, em especial ao réu, todos os meios necessário para que ele possa se defender de forma plena e ampla.

Esse princípio, assegurado desde a formulação original da Constituição, é um dos mais importantes direitos que todo e qualquer cidadão deve poder usufruir quando for parte em um processo. Por essa razão, não há nada de imoral ou ilegal em uma pessoa acusada de um crime ter acesso a uma defesa de qualidade, seja ela feita por advogado ou defensor público. Por esse motivo considero que as ofensas direcionadas ao advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, pelo simples fato de ter aceitado defender um acusado de estupro, não são razoáveis. Mesmo a pior das pessoas, quando acusada de um crime, deve ter o direito de se defender, pois este é um direito fundamental.

Contudo, o que chocou o Brasil no vídeo da audiência não foi o fato de que André de Camargo Aranha estava sendo defendido por um advogado, mas sim que este advogado estava atacando verbalmente a vítima do crime alegado. Gastão mostrou fotos que Ferrer havia postado em redes sociais, tecendo comentários pessoais de cunho ofensivo, com o objetivo de insultar a vítima. Há um momento que a própria Ferrer clama para que o juiz intervenha nas falas do advogado e pede que seja respeitada. Portanto, a questão que fica é: será que o direito constitucional à ampla defesa abarca as ofensas proferidas a Mariana Ferrer pelo advogado do réu? Será que vale tudo para a defesa de seu cliente, inclusive agredir verbalmente a parte contrária?

Antes de responder essa questão, menciono o que o professor e advogado criminalista Humberto B. Fabretti comentou sobre o caso em uma live no seu perfil pessoal no Instagram[iv]. Fabretti afirma que muitas vezes vítimas de estupro que prosseguem com uma denúncia formal contra seus agressores se arrependem de terem denunciado, pois sofreram mais violência durante o processo. Esse fenômeno é denominado de vitimização secundária ou revitimização, como observa o professor, pois o próprio sistema de justiça criminal não funciona de uma maneira que acolha a vítima, mas sim repete e perpetua a violência contra essa.

Prosseguindo para a análise da conduta do advogado de defesa, o Código de Ética e Disciplina da OAB no artigo 44 determina que “deve o advogado tratar o público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo com respeito [...]”, e no artigo 45 “Impõe-se ao advogado lhaneza, emprego de linguagem escorreita e polida, esmero e disciplina na execução dos serviços”[v]. Conforme é evidente no vídeo vazado da audiência, o advogado Gastão não teve respeito pela vítima em seus atos, tampouco empregou linguagem polida, tanto que já foi instaurado um processo disciplinar na OAB/SC para apurar as acusações. Caso haja uma condenação por desvio ético, o advogado poderá ter a carteira da Ordem cassada, conforme informa o portal de notícias Terra[vi].

Portanto, é correto afirmar que, apesar da ampla defesa ser um direito constitucionalmente assegurado, excessos de conduta que não visam a defesa da parte, mas sim o ataque à outra não são admitidos no ordenamento jurídico brasileiro, vide os códigos de ética que permeiam a atividade jurisdicional.

Quanto à omissão do Juiz Marcos, que não interveio quando houve excesso por parte do advogado do réu, o art 3° do Código de Ética da Magistratura determina que:

 

A atividade judicial deve desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa humana, objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas.[vii]

 

É possível concluir que, ao ser tratada com tanta truculência e desrespeito, houve violação à dignidade humana de Mariana Ferrer no decorrer do processo. Como essa violação poderia e deveria ter sido impedida pelo juiz, o magistrado sofrerá um processo disciplinar frente ao Conselho Nacional de Justiça, que irá averiguar a conduta do juiz e determinar, caso condenado, as sanções cabíveis[viii].

Apesar da conduta inadequada do advogado da defesa e do juiz, especialistas na área creem que dificilmente a sentença absolvendo Aranha será anulada[ix]. Existem formas de recorrer da sentença, e a defesa de Mariana Ferrer afirmou que tomará esse caminho.

Por fim, concluo esta análise recapitulando que o direito a ampla defesa, apesar de abrangente, não admite excessos e abusos. Dessa forma, é inadmissível que qualquer audiência feita no Poder Judiciário tenha qualquer semelhança ao que mostrou o vídeo publicado pelo The Intercept Brasil.



[i] ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem. The Intercept Brasil. 03 nov. 2020. Disponível em:<https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/>.
[ii] VEJA a íntegra da audiência de Marian Ferrer em julgamento sobre estupro. Canal Estadão Youtube. 4 nov. 2020 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P0s9cEAPysY>.
[iii] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
[iv] Estupro culposo? Perfil @humbertofabretti. Instagram. 3 nov. 2020. Disponível em: <https://www.instagram.com/tv/CHJlqWRHnNY/?utm_source=ig_web_copy_link>.
[v] OAB. Ordem dos Advogados do Brasil. Código de Ética e Disciplina da OAB. Disponível em: <https://www.oab.org.br/visualizador/19/codigo-de-etica-e-disciplina>.
[vi] BISPO, Fábio. OAB-SC analisa caso de advogado que atacou Mari Ferrer. Terra. 08 nov. 2020. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/oab-sc-analisa-caso-de-advogado-que-atacou-mari-ferrer,86e3a05cdca8cffc0d4fdd8ed4682d59kuecuda8.html>.
[vii] CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Código de Ética da Magistratura. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/codigo-de-etica-da-magistratura/>.
[viii] CONSELHO Nacional de Justiça abre processo contra juiz Rudson Marcos: “Sessão de Tortura”. Hora do Povo. 04 nov. 2020. Disponível em: <https://horadopovo.com.br/conselho-nacional-de-justica-abre-processo-contra-juiz-rudson-marcos-sessao-de-tortura/>.
[ix]
CASO Mari Ferrer: Juristas criticam advogado, mas anular sentença é difícil. IstoÉ. 05 nov. 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/juristas-criticam-advogado-de-acusado-de-estupro-mas-anular-sentenca-e-dificil/>.

 

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10/11/2020

Em pauta: Vamos falar de Democracia Agonística e a produção de afetos na política?

Por Rafaella Pacheco.

O modelo de democracia agonística foi proposto pela cientista política pós-marxista belga, Chantal Mouffe. Em sua obra Sobre o Político[1] ela desenhou uma crítica à perspectiva pós-política de um mundo globalizado, sem inimigos e consensual. Mouffe refuta a teoria política liberal que nega em seus modelos de democracia a dimensão antagônica do político, desconsiderando etimologicamente da palavra democracia a essência de seu prefixo dêmos, compreendido enquanto divisão. As democracias instituídas pelo mundo consideradas por grande parte da mídia global e de teóricos políticos em situação de colapso, para Chantal, isso se deve ao caráter plural e conflitivo inerente a um processo democrático que é desprezado pelos pensadores políticos liberais.

Mouffe, através da análise das elaborações teóricas de Ulrich Beck e Anthony Giddens, identificou como problema da retórica da modernização o fato de que, ao empreender uma negação da natureza constitutiva da fronteira nós/eles na luta política, promove-se o silenciamento de possíveis contestações políticas do “nós”, ou do “eles”, nesta relação, bem como, do próprio debate democrático. Desta forma, a negação do antagonismo do político conduziria para uma possível concretização da dimensão antagônica na política, através da eliminação do outro. 

Portanto, aceitar a política como uma dimensão potencialmente conflitiva, haja vista que é impactada pela dimensão constitutiva antagônica do político, significa assumir que a democracia só é possível pois, em sua essência, reside na existência de um embate antagônico que, através do dissenso e da diversidade, molda práticas, discursos e instituições que tem por finalidade o estabelecimento de uma ordem e organização do corpo social.

 

Penso que o antagonismo não pode ser eliminado, pode apenas ser pacificado temporariamente. Esta é, para mim, uma das tarefas da democracia: encontrar as instituições que permitem ao conflito expressar-se, de forma que não coloque em questão a própria existência da comunidade política e não leve à guerra civil. Meu modelo poderia se chamar modelo de deliberação agonística. Evidentemente, não elimino o elemento de deliberação, não existem só as paixões, mas há que se reconhecer que o antagonismo é ineliminável; que sempre haverá dois projetos hegemônicos que não podem se conciliar; que haverá sempre um caráter partisan na política.[2]

O caminhar para um pluralismo agonístico proposto na teoria política mouffeana, inicia-se pela instituição do agonismo no campo político, em contraposição ao antagonismo, através do reconhecimento do “outro” no conflito, enquanto adversário, e não inimigo. Neste prisma, a pensadora partiu da formulação antagônica de confrontação schmittiana entre amigo/inimigo, para o desenvolvimento de uma proposta de confrontação agonística entre adversários. Enquanto o inimigo é passível de ser eliminado, a proposta adversarial mouffeana assimila o “outro” como passível de ser respeitado numa estrutura conflitiva entre forças políticas.

Portanto, compreendida a necessidade da fronteira nós/eles para a dimensão democrática, a estrutura política agonística entende que, na defesa da categoria de “adversário”, torna-se possível o estabelecimento de um espaço simbólico que garanta a legitimidade do “eles” ocuparem um lugar na luta política. Neste ponto, o pensamento ético de Baruch de Espinosa acerca das afecções do corpo como viabilizadoras de produção um conhecimento calcado na consciência de si através da identificação do outro, torna-se fundamental à pesquisa. Pois, em Mouffe, reconhecer a existência do adversário como legítima implica no reconhecimento de si também como legítimo na dinâmica agonística, assumindo o direito de ambos em defender seus respectivos pontos de vistas. 

Além da categoria adversarial que sinaliza as primeiras possibilidades de inserção da dimensão afetiva enquanto mediadora de um embate político agonístico, Chantal trabalha a categoria hegemonia, também crucial para a compreensão acerca do papel das paixões na produção de identificações coletivas.

 

Hegemonía es, simplemente, un tipo de relación política; una forma, si se quiere, de la política; pero no una localización precisable en el campo de una topografía de lo social. En una formación social determinada puede haber una variedad de puntos nodales hegemónicos. Evidentemente algunos de ellos pueden estar altamente sobredeterminados; pueden constituir puntos de condensación de una variedad de relaciones sociales y, en tal medida, ser el centro de irradiación de uma multiplicidad de efectos totalizantes[...].[3]

As articulações hegemônicas se dão precisamente por um viés conflitivo, que é constitutivamente atravessado por antagonismos. E, por isso é tão estreito o diálogo entre as categorias hegemonia e político, de tal modo que, a análise de tais articulações e conceituações permite a compreensão de sua crítica às propostas de mundo unipolar.

Nesta seara, a autora elaborou uma crítica às propostas cosmopolitas habermasiana e a ultraesquerdista de Hardt e Negri, destacando que a preocupação da primeira estaria mais sobre uma legitimação dos direitos humanos que a garantia de um exercício democrático em si; e, a segunda, acreditaria na eliminação do antagonismo na dimensão política, que para Mouffe é impraticável pois negar tal elemento é negar a própria democracia. A solução cabível, para tais problemas volta-se a uma proposta de confronto agonístico, dado pelo reconhecimento de um nós/eles em escala hegemônica, pluralizando as hegemonias, aceitando a característica antagônica indissociável a elas e às práticas decisórias democráticas.

Na defesa da criação de um mundo multipolar, Mouffe, pontuou a importância em se “encontrar formas de “pluralizar” a hegemonia[4]. E como visto, na definição apresentada por ela e Ernest Laclau desta categoria, sinaliza-se para um potencial agregador desta relação política entre hegemonias que viabiliza a convergência simbólica de valores comuns.

Daqui, o caminhar em direção a um pluralismo agonístico, que reconhece elementos fundamentais à constituição de práticas democráticas – o dissenso e a diversidade – por meio de uma confrontação adversarial no campo político, seja nacional ou internacionalmente, encontra, para Mouffe, na mobilização das paixões um meio possível para sua concretização.

 

Poderíamos dizer que o objetivo da política democrática é transformar um “antagonismo” em “agonismo”. Isto tem conseqüências importantes para o modo como encaramos política. Contrariamente ao modelo de “democracia deliberativa”, o modelo de “pluralismo agonístico” que estou defendendo assevera que a tarefa primária da política democrática não é eliminar as paixões nem relegá-las à esfera privada para tornar possível o consenso racional, mas para mobilizar aquelas paixões em direção à promoção do desígnio democrático.[5]

Entendendo o antagonismo como um conflito que não possui, nem pode vir a ter, uma solução racional, a cientista política se volta para o potencial transformador das paixões, enquanto produtoras e circuladoras de afetos comuns, na tentativa de instituir uma possibilidade de discussão agonística. Neste ponto da teoria mouffeana, debruçar-se sobre a formação e potencialidades dessa dinâmica de subjetividades para o favorecimento do confronto entre identidades políticas coletivas, pode auxiliar no desenvolvimento de uma possível psicopolítica agonística.



[1] MOUFFE, Chantal. Sobre o político. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
[2] MOUFFE, Chantal. Entrevista. Curitiba: Revista da Faculdade de Direito - UFPR, n.51, 2010. p. 242.
[3] LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: Hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987, p. 237.
[4] MOUFFE, 2015, p. 117.
[5] MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Trad. Kelly Prudêncio. Florianópolis: Revista Política & Sociedade, UFSC, nº 03, outubro de 2003. p. 16.
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