RES. 1995/2012 (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA)
Prof.ª Msc. Maria da
Glória Colucci
Os novos
recursos tecnológicos, que permitem o prolongamento da vida humana em situações
de terminalidade, fundamentaram a recente iniciativa do Conselho Federal de Medicina,
em agosto do corrente ano, quanto à disposição antecipada de vontade do
paciente.
Como
assinala a Resolução n. 1995/2012, em Exposição de Motivos de seu relator, a
precitada normativa procurou encontrar alternativas formalizadas à necessidade
do profissional médico de conhecer a vontade do paciente, respeitando-a –
quando em situações de terminalidade – em razão da “[...] dificuldade de
comunicação do paciente em fim de vida”. [i]
Na execução
das declarações de vontade dos pacientes, diante da impossibilidade de
manifestação livre e autônoma de seu querer, devido a grave doença terminal,
defronta-se o médico com o dever de respeitar as “diretivas antecipadas” de
vontade por aquele exaradas, a menos que estejam em desacordo com o Código de
Ética Médica (art. 2º, § 2º). [ii]
No entanto,
dando igual ênfase à autonomia do paciente, princípio basilar da Bioética,
reconhece a Resolução n. 1995/2012 que maiores formalismos poderão ser
dispensados nas situações em que a vontade livre do paciente tiver sido
comunicada, diretamente, ao médico, que a registrará no prontuário (art. 2º,
§4º). [iii]
A propósito
da possibilidade de se ouvir e considerar a vontade do paciente, externada ao
médico, em situações de dor e sofrimento, Maria Julia Kovács, em pesquisa
realizada com diversos pacientes, sobretudo em tratamento de câncer, afirma
que:
Parece evidente falar em autonomia quando se pensa em
pessoas, mas será que esta certeza permanece quando se trata de pacientes gravemente
enfermos? Podem tomar decisões sobre sua vida, quando estão em sofrimento? Não
tenho dúvidas a respeito, mas para familiares e profissionais de saúde esta
pode ser uma questão complexa. [iv]
Como se
constata, a Res. n. 1995/2012 regulou situação conflitante, recorrente na
prática médica, quando o profissional médico se depara com dúvidas, não só
quanto às alternativas de tratamentos, mas quanto à suspensão de procedimentos que
prolonguem a existência sofrida do paciente, sem acréscimos à sua qualidade de
vida (distanásia).
O conflito
ético se torna mais angustiante quando se cogita da ortotanásia, uma vez que os
prognósticos sinalizam que o sofrimento do paciente tende a se intensificar e
os procedimentos utilizados não mais respondem a uma saída favorável à vida.
Desesperados,
os familiares e o próprio paciente temem o confronto com a inexorabilidade da
morte, concordando com a dilação do fim da vida (ou da morte?), mesmo quando a
doença esteja em estágio avançado. Os tratamentos dispensados aos pacientes nem
sempre são claramente comunicados aos familiares ou mesmo ao paciente quando
aptos a entendê-los:
Muitos pacientes não reconhecem a sua possibilidade de
autonomia. Acham que ao expressar sua vontade estarão contestando seus médicos
a quem devem estar sempre agradecidos numa atitude de conformidade e
resignação, muito presente no serviço público. [v]
No entanto,
a Resolução n. 1995/2012 dá à vontade do paciente prevalência sobre os desejos
de seus familiares e sobre qualquer outro parecer não médico: “As diretivas
antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico,
inclusive sobre os desejos dos familiares”. [vi]
Observa-se,
no texto da Resolução 1995/2012 a presença de três pilares que a sustentam: a)
autonomia do paciente, cuja vontade se sobrepõe aos desejos de seus familiares;
b) liberdade do profissional médico de, baseado em sua consciência e no
respeito às diretrizes éticas de sua atividade, recepcionar as diretivas
antecipadas de vontade do paciente e c) o reconhecimento da importância dos
Comitês de Ética nas questões de terminalidade da vida.
A começar
pelo respeito à autonomia do paciente, quer por meio de “diretiva antecipada de
vontade” formalizada ou por comunicação direta ao profissional médico (art. 2º,
§4º da Resolução 1995/2012), trata-se de dever irrefutável da família, do
representante designado e do (s) médico (s) que o assistem:
A tentativa de afastar a morte leva, muitas vezes, o doente a
morrer na hora da equipe de saúde e não mais na sua hora. O funcional substitui
o humano, processo cuja consequência é a desumanização do atendimento àquele
que morre. Resgatar o humano no processo da morte e do morrer não é tarefa
fácil, pois implica em olhar-se no espelho da própria finitude. [vii]
Autonomia
significa, neste contexto, reconhecer-se ao paciente o direito de
autogovernar-se, escolhendo o seu próprio caminho, tanto na vida, quanto na
morte.
O direito
ao próprio corpo fundamenta, dentre outros princípios, a liberdade de dispor de
partes, tecidos ou órgãos, em benefício de outrem, por liberalidade, como
dispõe o art. 14 do Código Civil. [viii]
Da mesma forma, permite à pessoa decidir, em vida, de forma antecipada, como
deseja que se proceda quanto ao seu funeral, cinzas etc.
Seguindo o
mesmo diapasão, a possibilidade de manifestar a sua vontade “[...] sobre
cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver
incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”, veio reconhecer
a liberdade da pessoa, antecipadamente, dispor do próprio corpo em situações de
terminalidade ou em circunstâncias em que esteja, temporariamente, privado de
consciência, de acordo com a Resolução 1995/2012, no art. 1º.
O dever do
médico de acolher as diretivas antecipadas de vontade do paciente não vai ao
ponto de ferir sua consciência (crenças, sentimentos, além de outras questões
de foro íntimo), além de princípios do Código de Ética Médica.
Por outro
lado, o direito do paciente de opor-se ao tratamento, ou procedimentos, não
abrange as situações de emergência em que haja risco de vida ou exposição da
saúde coletiva. [ix]
A
participação dos Comitês de Bioética, ou na sua falta, da Comissão de Ética
Médica do hospital ou do Conselho Regional e Federal de Medicina na composição
de conflitos éticos envolvendo as “diretivas antecipadas de vontade do
paciente” deixam clara a percepção da Resolução 1995/2012, de que a polêmica
apenas começou no Brasil, apesar de no Direito Positivo de diversos países, já
terem se consagrado como práticas médicas consolidadas pelo uso.
A Exposição
de Motivos da Resolução n. 1995/2012 coleciona significativo rol de disposições
de diversos códigos de ética, a exemplo da Espanha, Itália e Portugal no
sentido de “[...] o médico respeitar as diretivas antecipadas do paciente,
inclusive verbais”. [x]
Em
destaque, pela proximidade histórica e cultural, o Código de Ética Médica
português dispõe em seu art. 46 que o médico deve identificar o melhor
interesse do doente e a decisão que tomaria se pudesse fazê-lo de forma livre e
esclarecida. [xi]
Nem sempre
a intenção de preservar e prolongar a vida do paciente coincide com o melhor
interesse dele ou mesmo de sua família, em decorrência da presença de práticas
médicas configuradas como “obstinação terapêutica” se aproximarem de extremos
tais que podem ofender a dignidade do paciente.
Neste
contexto, insiste Luciano de Freitas Santoro:
A bem da verdade, tanto o direito à vida quanto o princípio
da dignidade têm uma relação intrínseca, porque nascem com o ser humano e
caminham juntos ao longo de toda a sua jornada, já que o que se pretende
garantir, através do reconhecimento desses direitos fundamentais, são condições
existenciais mínimas para o seu pleno desenvolvimento, sem a submissão a
qualquer conduta degradante ou desumana. [xii]
O intenso
sofrimento causado ao paciente moribundo, e a expectativa dolorosa dos
familiares, ensejou a edição da Resolução n. 1805/2006 do Conselho Federal de
Medicina que ao proibir a “obstinação terapêutica” obriga, no entanto, o médico
a prestar cuidados paliativos. [xiii]
Todavia,
entendeu-se na critica jurídica especializada e nos meios acadêmicos, que a
disposição do artigo 1º da Resolução n. 1805/2006 estaria incentivando a
prática da ortotanásia, quando, na verdade, tal não era a finalidade da
normativa em comento.
Com o novo
Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM Nº.1931, de 17 de setembro
de 2009, que entrou em vigor no dia 14 de abril de 2012, ficou clara a intenção
de não proceder, ou mesmo estimular, a distanásia, mas de respeitar o direito
do paciente de morrer em seu “tempo e hora” (ortotanásia):
Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico
oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas
ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade
expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. [xiv]
As razões
que justificam as distintas e contraditórias opiniões sobre o tema da
ortotanásia, e questões referentes à eutaná
sia, podem ser melhor analisadas no texto da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal em 2007. [xv]
sia, podem ser melhor analisadas no texto da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal em 2007. [xv]
[i]BRASIL.
Conselho Federal de Medicina – Resolução n. 1995, 9 de agosto de 2012:
justificativas (1). Disponível em www.portalmedico.org.br.
[ii]“O
médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do
paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os
preceitos ditados pelo Código de Ética Médica”.
[iii]“O
médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes
foram diretamente comunicadas pelo paciente”.
[iv]KOVÁCS,
Maria Julia. Pesquisa com pacientes gravemente enfermos: autonomia, riscos,
benefícios e dignidade. Revista Bioética. Vol. 17, nº. 2 – 2009. Brasília,
Conselho Federal de Medicina, 2009, p. 310.
[v]Idem,
p. 311.
[vi]BRASIL.
Conselho Federal de Medicina – Resolução n. 1995, 9 de agosto de 2012: art. 2º,
§3º. Disponível em www.portalmedico.org.br.
[vii]COVOLAN,
Nádia T./CORRÊA, Clynton Lourenço/, HOROCHOVSKI, Marisete T. Hoffmann,/ MURATA,
Marília P. F. Quando o vazio se instala no ser: reflexões sobre o adoecer, o
morrer e a morte. Revista Bioética. Vol. 18, n. 3 – 2010. Brasília, conselho
Federal de Medicina, p. 565.
[viii]“É
válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do
próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte” – art. 14, lei n.
10.406, de 10 de janeiro de 2002 – (Código Civil).
[ix]BRASIL,
Código Penal. Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, art. 146, §3º, I. Disponível
em www.
[x]BRASIL.
Conselho Federal de Medicina. Resolução 1995/2012 – Exposição de Motivos
(justificativa 4). Disponível em www.portalmédico.org.br.
[xi]Idem.
[xii]SANTORO,
Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba:
Juruá, 2011, p. 77.
[xiii]BRASIL.
Conselho Federal de medicina. Resolução CFM 1805, de 9 de novembro de 2006 –
art. 1º: “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e
tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade
grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante
legal”. Disponível em www.portalmedico.org.br/resoluções/cfm/2006/1805 -
2006.html
[xiv]BRASIL.
Código de Ética Médica: Resolução CFM 1931/2009. Disponível em www.portalmedico.org.br/resoluçoes/cfm/2009
- 1931
[xv]Disponível
em www.df.trfl.gov.br/inteiro_teor/doc_inteiro_teor/14vara/2007.34.00.014809-3_decisao_23-10-2007.doc>.
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