27/05/2020

Em pauta: A exceção do retorno da criança, sequestrada internacionalmente, sob a perspectiva do Direito Internacional Privado

Por Christina M. Carreiro

Em uma primeira visão sobre o tema, há de se desanuviar o conceito de sequestro de crianças, muitas vezes visto como a mera detenção indevida do infante ou adolescente por um de seus pais. Ora, a temática vai muito além disso, porquanto a mudança da residência habitual do mesmo, além de envolver um outro Estado soberano, trata da ausência de conhecimento ou consentimento de um dos genitores¹. A guarda unilateral sem o resguardo de uma sentença, judicial ou extrajudicial, tem o potencial de provocar prejuízos de diversas ordens aos envolvidos, questão a qual o Direito Internacional Privado também se dedica a evitá-los e tutelar.
Com o avanço da racionalidade do Direito de Família no Brasil, finalmente reconhecendo a criança como sujeito de direitos, ativo e influente no seio familiar, houve de se atualizar diplomas internacionais, quando  a  nação  se  torna signatária da Convenção de Haia de 1980², além da que rege a adoção internacional, de 1993. Desde então, é formada uma jurisprudência clara e pacífica, em verdadeiro desincentivo à conduta lesiva – vide banco de dados atualizado de INCADAT.
Diante da dificuldade de se estipular medidas de urgência em um contexto internacional, o estrito cumprimento das normas de DiPri através de uma efetiva cooperação   entre   Estados   signatários   se   faz   especialmente   relevante, quando a transferência, também chamada de retenção ou subtração ilícita, já ocorrera e é preciso reparar ou mitigar o dano o quanto antes.
A Carta Magna prevê, por exemplo, a competência ao STJ para homologar sentença estrangeira e conceder exequatur às cartas rogatórias — art.  105, inciso I —, bem como a execução por parte de Juízos Federais, art. 109, X, ambos da CF/88. Porém, diante do número excessivo de casos internos, como lidar com demandas internacionais? Considerando que a referida convenção, a de 1980, é norma  infraconstitucional, submetida à legislação interna hierarquicamente superior, que é a Constituição, deverá o juízo brasileiro conciliar não apenas o interesse do litigante³, o eventual entendimento da corte estrangeira, mas também, enquanto na fase instrutória  da lide, a viável e adequada produção de provas.
Desta forma, considerado o art. 6º da Convenção, a autoridade central brasileira é a União (AGU), cuja responsabilidade de responder internacionalmente é delegada à Secretaria Especial de Direitos Humanos – Dec. 3951/2000.  Recebido  o  pedido  de restituição e preenchidos os requisitos formais, notifica-se a Interpol para localização da criança em caráter sigiloso, geralmente no caso em que o Brasil seja Estado demandado, mas no caso de que o menor esteja no Brasil por genitor estrangeiro, e se manterem em situação irregular, é notificada a Polícia Federal para saída voluntária do acusado de retenção ilícita da criança; senão, repassado o caso à Polícia de Imigração para a deportação. Localizada a criança, informado o acusado de processo em trâmite, após tentativa de conciliação, remete-se à AGU para ingresso da ação.
Assim, o Brasil prevê o retorno imediato da criança em sede de tutela antecipada de mérito, o qual aqui se questiona. Muito embora a Convenção preveja a celeridade na restituição do menor, devem ser observadas as condições pelas quais o menor passa no  contexto aonde vive se comparado donde foi retirado, além de características diversas,  como qualidade do vínculo afetivo de parentesco, passível de decisão de mantimento   da criança no local aonde foi readequada — sem desrespeitar a jurisprudência da Comunidade Internacional. (O próprio STJ se refere ao “combate” do Sequestro Internacional de Crianças, termo perigoso se visto unicamente de um ponto de vista combatente, e não devidamente ponderado).
Haja vista o comentado caso Sean Goldman, há de se salientar que o papel do DiPri não é fomentar discussões políticas e empresariais, de grande caráter comercial e especulativo, meramente, mas respeitar o Direito de Família dos Países envolvidos na demanda, enquanto preserva a criança de uma exposição exacerbada e prejudicial ao seu processo de desenvolvimento. A situação, tanto do infante quanto de seu genitor, deve sempre estar regularizada, além de respeitado o espaço pessoal de criança, e analisadas as suas posições sociais e psicológicas.
A partir de uma análise de legalidade do pleito particular é que se avalia a necessidade e possibilidade de laudos psicossociais para o conhecimento do contexto do menor. Quanto ao princípio do “melhor interesse da criança”, por vezes camuflado como o melhor interesse dos pais, há de se ter cuidado na interpretação jurídica e fundamentos de sentenças judiciais, evitando a permissividade de expressões    radicais    e preconceituosas — como a de nacionalistas e xenófobos oportunistas.
Nesse presente trabalho acadêmico se defende uma posição ponderada da Justiça Federal enquanto cumpridora de Convenções Internacionais, eis que não haja uma mais relevante que a outra em matéria de DiPri. Considera-se a Convenção de Haia bem redigida, ainda que cerca de quarenta anos atrás, apenas aprimorada pela interpretação de novos entendimentos do Direito de Família Contemporâneo, como a multiparentalidade, casamento homossexual, e demais composições de família.
Deste modo, dá-se especial enfoque ao art.  13,  b,  da  Convenção  quando,  em complemento  ao  que  cita  Jacob  Dolinger,    previsão  de  não  restituição  do  menor quando há probabilidade de dano físico ou psíquico dele caso assim se procedesse de volta ao seu local de origem, situação, esta intolerável  ou  ainda,  caso  o  adolescente, atingindo a maioridade, se opõe ao seu retorno.
Adayr Dyer, quando foi primeiro secretário da Comissão Especial da  Conferência de DIP, em Haia, 1993, ressaltou a relevância de se considerar a exceção    de não retorno da criança quando a ação foi aqui interposta, ou de não homologar  sentença estrangeira — com muito cuidado, sem excessos, devidamente fundamentada.
A proteção de crianças enquanto discutível matéria de ordem pública há de ser considerada,  ainda que em grau recursal, priorizando o comportamento preventivo estatal de evitar separação entre irmãos ou de qualquer figura afetiva fática da convivência do infante/adolescente — ponto este não pacífico na doutrina, na medida em que observada, aliás, a práxis dos Estados contratantes.


NOTAS DE RODAPÉ:
¹Similar ao contexto de alienação parental, tão suscitado em discussões de Psicologia Jurídica, Mediações, e Direito de Família.
²Vigente, hoje, em mais de 80 Estados contratantes.
³A depender, poderá ser protelatório e excessivamente litigante, gerando uma demora excessiva na resolução da demanda. O perigo de um erro judicial aumenta se diante de medidas de urgência.
⁴Possibilitando um efetivo protecionismo do melhor interesse da criança, diante de todo um contexto social e psicológico, sobretudo quando a demanda é revestida de caráter internacional.
⁵Como os genéricos do código processual civil de medidas cautelares, pertinência temática do pedido, e prova pré-constituída suficiente a guiar uma cognição sumária, bem como instruir a petição com demais documentos
⁶Vide título da página: https://www.stf.jus.br/convencaohaia/cms/verTexto.asp Acessada em 10/04/2020.
⁷Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p. 256.
⁸Relembra o mesmo autor Dolinger, na página 258.
⁹Página 305, idem acima.

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