Por Rafaella Pacheco[1].
“E continuamos. É tempo
de muletas.
Tempo de mortos
faladores
e velhas paralíticas,
nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de
viver e contar.
Certas histórias não se
perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se,
pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a
quartos terríveis,
como o do enterro que
não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas
ácidas,
ao claro jardim
central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a
partida,
conduz às celas
fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?”[2]
A Terra, ao revolve-se sobre si, nos permite conhecer aquilo
que nomeamos de dia e noite. Em tempos de enfermidade epidêmica na política, na
economia e na saúde, tal movimento rotacional se dá por um caminhar contínuo dos
ponteiros do relógio ao ritmo de incertezas, indignações e reflexões. E diante
de tais aflições, uma entrevista do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin[3], para a Folha de São
Paulo, pode nos ajudar a elucidar um caminhar possível para o enfrentamento de
problemas complexos da vida em sociedade.
O sociólogo advertiu acerca dos perigos em sustentarmos uma
política voltada para o imediatismo e para a urgência de resultados financeiros.
Neste aspecto, Morin não se referiu a um imediatismo e urgência como medidas de
resolução a crises já instauradas, mas sim em como tais posturas dentro do
âmbito político são causadoras de instabilidades e autodegradação da
humanidade. Portanto, para ele, uma política voltada para o imediatismo e a
urgência conferem um grande potencial lesivo naquilo que de fato é essencial: o
ensino e desenvolvimento de uma consciência humana sobre a própria humanidade.
A
supremacia do dinheiro resultou na crise democrática que vivemos, evidenciado
pela proliferação da corrupção e, consequentemente, na ausência de confiança em
nossos governantes. Para Morin, a desconfiança no Estado Democrático se
instaura no seio da corrupção com o vazio do pensamento, abrindo as portas para
a proliferação de regimes neoautoritários.
O
filósofo mencionou como a imposição de regras liberais econômicas absolutas,
propostas inicialmente pelos governos de Margaret Thatcher[4] e Ronald Reagan[5], foram fundamentais para a
soberania do dinheiro sobre a política. E essa, para o filósofo francês, é a
constituição da crise da democracia: a sujeição da política à dominação de um
sistema econômico voltado exclusivamente para o lucro. Tal sujeição, “não
tem consciência do destino da humanidade”[6], ou como colocado por
Boaventura Sousa Santos, inviabiliza o debate acerca dos processos
civilizatórios.
A
prova é a degradação da biosfera, que é evidente, e que vivemos na degradação
da Amazônia ou na poluição das cidades, por exemplo, mas que é ignorada em
detrimento de um benefício imediato. Assim, damo-nos conta de que vivemos em
uma época de cegueira e sonambulismo. Isso participa da crise da democracia.[7]
Para
Morin, agimos por muito tempo como sonâmbulos, acreditando que os problemas
futuros — oriundos do imediatismo e urgência em se acumular riquezas sem medir
as consequências, ignorando o potencial destrutivo da exploração desmedida da
natureza e do próprio ser, que se dão e se mantém pelo desequilíbrio social e
político — nunca chegariam. O combate ao sonambulismo, para o sociólogo, só é
possível pelo regate da consciência enquanto comunidade e enquanto ao destino
da humanidade.
A
resolução de grandes problemas, requer uma pluralidade de conhecimentos que
possibilitam um olhar amplo acerca da complexidade do conflito que se apresenta.
A crise do pensamento e a crise da democracia em que vivemos, para o sociólogo
origina-se da carência de reflexão política. Morin salientou que tal crise do
pensamento não nega a existência de grandes pensadores políticos como Karl Marx
e Toqueville, porém houve um distanciamento do debate intelectual na
aplicabilidade e prática dessas reflexões no exercício político. Neste ponto,
podemos traçar um diálogo com o posicionamento dado por Sousa Santos[8] acerca dos problemas
decorrentes do distanciamento do debate político com o debate civilizatório.
Este último debate, é entendido pelo sociólogo português como constituído de
reflexões críticas acerca de alternativas políticas, econômicas, sociais e
culturais que rompeu simbolicamente com o debate político a partir da queda do
Muro de Berlim.
Para Sousa
Santos, a articulação de ambas as esferas — civilizatória e política — é
basilar para a constituição de uma sociedade mais humana e humilde[9]. A academia possui densa
produção intelectual que alimenta o debate ético em termos daquilo que Santos
nomeia de processos civilizatórios, que se inserido ao processo político
possibilitará grandes saltos para a transformação social. Tal transformação,
para Morin, só é possível pela instauração de um senso de solidariedade e
proteção de interesses coletivos de perspectiva global, humanitária e
universal. Para isso, a preservação da resistência e dos valores
universalistas, humanistas e planetários são fundamentais.
Morin,
ainda pontuou em sua entrevista que a incerteza — geradora de angústias e
provedora de instabilidades institucionais férteis à ascensão de políticas e
políticos autoritários —, deve ser enfrentada com coragem pela sociedade,
pautando-se na fraternidade. Para isso, o ensino acerca do viver, que permitem
o conhecimento humano e humanitário, é basilar para o enfrentamento de crises,
superação de dogmas e aceitação de certezas e incertezas.
Temos dificuldade de enfrentamento e solução de
problemas diante da vida, tanto enquanto indivíduo, como enquanto cidadão. E
exatamente por isso o filósofo defende um ensino que debata e investigue a
identidade humana para que de fato uma consciência humana se funde e que
obstáculos que violam o bem estar coletivo, como a corrupção e a sujeição ao
dinheiro em detrimento da saúde pública, da educação e da cultura, sejam
superados.
Sobre
poesia eu não penso, eu simplesmente faço: a minha poesia nasce do espanto.
Qualquer coisa pode espantar um poeta, até um galo cantando no quintal. Arte é
uma coisa imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida. E quem diz que
fazer poesia é um sofrimento está mentindo: é bom, mesmo quando se escreve
sobre uma coisa sofrida. A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está
no abismo. A arte existe porque a vida não basta.[10]
O escritor e crítico de arte Ferreira Gullar
compreendia o potencial reflexivo da poesia para o entendimento do ser e do
viver. Uma vida, sem ela, ficaria restrita ao que Morin definiu de prosa —
relativa à sobrevivência, ao cotidiano repetitivo instaurado pelo processo de industrialização
e a burocratização de nossas instituições em que temos o compromisso da
sujeição —, causadora da degradação da qualidade de vida.
O
entendimento de prosa proposto pelo filósofo francês, dialoga com a noção de
esfera do agir racional-com-respeito-a-fins da Teoria da Ação habermaziana. Tal
agir pauta-se em resultados e no lucro, prezando pela celeridade do
desenvolvimento econômico, próprio de um mundo tecnicizado. Mas, esta é apenas
uma das duas esferas do agir que compõem as atividades humanas, sendo a outra
esfera denominada de interação. Nesta última reside aquilo que o filósofo
alemão compreende por dimensão genuína da espécie humana: a linguagem e a nossa
capacidade comunicativa. Na esfera da interação é onde a reflexão crítica, o
debate intelectual e a poesia se manifestam.
A
poesia, para Morin, corresponde à resistência do âmbito privado[11] em relação à hegemonia da
prosa. Ela se dá nas relações de afeto e no jogo (que podemos traduzir por
lazer, prazer, arte, produção de conhecimento e interações próprias do viver)
que promovem a manutenção da qualidade de vida.
Vivemos
num processo de despolitização que se funda na compressão da esfera interativa
(a poesia) pela esfera do agir-com-respeito-a-fins (a prosa). Mais trabalho,
mais consumo e mais exploração desmedida de recursos naturais para a concentração
de renda, resultam na autocoisificação do homem que o distanciam de sua
identidade humana, da criatividade, do diálogo, do viver fraterno em comunidade.
Portanto, o combate à degradação política e democrática que estamos
presenciando só é possível pela poesia.
Poetize-se!
E permaneça em casa.
[1] Estudante do Curso de Direito do
Unicuritiba, e integrante do Grupo de Pesquisa de Ética, Política e
Democracia da instituição.
[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa
do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 40. [fragmento do poema Nosso
tempo, a Oswaldo Alves.]
[3] PASSOS, Úrsula. Seguimos como
sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, diz Edgar Morin. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/seguimos-como-sonambulos-e-estamos-indo-rumo-ao-desastre-diz-edgar-morin.shtml>. Acesso em: 24.04.2020.
[4] Primeira-Ministra do Reino Unido de
1979 a 1990.
[5] 40º presidente dos Estados Unidos, de
1981 a 1989.
[6]
MORIN in PASSOS,2019, p. 3.
[7] MORIN in PASSOS,2019, p. 3.
[8] SANTOS, Boaventura Sousa. A cruel
pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. 33 p.
[9] SANTOS, 2020, p. 30-31.
[10] TRIGO, Luciano. 'A arte existe
porque a vida não basta', diz Ferreira Gullar. Paraty: G1, 07/08/2010.
Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html>. Acesso em: 25/04/2020.
[11] Cabe ressaltar a distinção entre privado
e íntimo, no âmbito da psicanálise. De acordo ao professor e psicanalista
Christian Dunker, ao se pensar a mistura da esfera pública com a privada, a
zona intermediária da intimidade se perde. Privacidade é aquilo que pertence ao
indivíduo e tem sua privacidade regulada por ele. A intimidade como o nome
mesmo o diz, é mais íntimo, aquilo que de fato corresponde ao que o indivíduo é,
seus anseios e angústias. Nesse aspecto, podemos pensar numa dissolução dentro
do próprio âmbito privado pela planificação/achatamento do ser pela prosa,
proposta por Morin, em que o íntimo não se revela naquilo que apresentamos
enquanto privado.
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