Euclides Quintino de Oliveira Júnior (Pomotor de Justiça aposentado e Advogado) e Pedro B. Quintino de Oliveira (Advogado)
Um tema que sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como pela sua complexidade, é o da adoção. Isto porque, em razão do afeto,que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditamos da lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma definição jurídica. Interessante e inusitada decisão foi proferida em um processo que tramitou perante a Vara da Infância e Adolescente da comarca de Itajai/SC.
Como se trata de processo acobertado pelo segredo de Justiça, poucas informações foram obtidas, mas suficientes para que se possa ter a noção do acerto da decisão. Uma menida foi abandonada pelos pais logo após o nascimento, em precário estado de saude, pois era portadora de síndrome de Down, lesão neurológica, mosaicismo, hipotonia, sucção débil, cardiopatia congênita e síndrome de West. Todo esse quadro desanimador era indicativo de que a criança seria abandonado à sua triste sorte e figuraria na esclada daqueles que não são aquinhoados com direitos iguais, mesmo não sendo responsáveis pela sua situação.
Mas há pessoas dotadas de uma sensibilidade estremada, que se posiciionam na escala superior de outras e que tem o senso voltado para a prática do bem e vocação para a solidariedade. Assim é que uma pedagoga solteira, candidatou-se à adoção e inicialmente pleiteou a guarda provisória, que lhe foi conferida. Quatro meses após, no entanto, ainda no curso do processo, a criança faleceu, mas não desencorajou a pretendente a adoção de levar adiante o pedido, que foi julgado procedente posteriormente.
A adoção realizada no Brasil é muito semelhante à praticada em Roma, no direito justinianeu. O pater familias que pretendia a adoção e o adotado dirigiam-se diante da autoridade judicial e, conforme esclarece Alves (José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense), "os dois primeiros faziam declarações concorde no sentido da adoção. a ela aderindo o adotando com o simples silêncio". Vigora regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a natureza) e, para tanto, eram exigidos que o adotante fosse, no mínimo, 18 anos mais velho que o adotando, além da proibição para os incapazes de gerar, como aqueles que tinham sido castrados.
A legislação que trata da adoção no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente. A lei menorista, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou adolescente deve ser criado e educado no seio da família natural, A adoção, portanto, é uma medida excepcional. Com as modificações introzuidas pela Lei 12.010/09, criou-se a adoção unilateral e a bilateral e o direito do adotado de conhecer sua identidade genética.
No caso em questão, trata-se de adoção unilateral, prevista em lei. Por outro lado, há o permissivo de adoção post mortem do interessado que falecer durante a tramitação do pedido, desde que comprovada a posse de estado de filho. Porém, com relaçao à adoção post mortem do adotado a mesma lei silencia a respeito. E até com certa razão, pois cessa o interesse do pedido em razão do falecimento daquele cuja adoção é pretendida, ainda mais sem qualquer reflexo patrimonial e direitos sucessórios.
Ora, não é preciso caminhar muitos passos para se chegar à conclusão de que a pedagoga, pela sua corajosa conduta inicial, pretendia levar adianta sua pretensão. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência toda especial. Tamanhá é sua força, que se encarrega de romper todas as regras previamente estabelecidas. É o caso típtico da menina Marcela, diagnosticada como anencéfala que viveu durante um ano e oito meses, contrariando as previsões médicas.. Este rtempo de vida pode ser compatível com o de qualquer outra criança sem a malformação. Afinal, em um momento se vive uma vida, na fala de All Pacino, no filme Perfume de Mulher.
A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem. já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado. Ela brota no mundo jurídico com a finalidade de atenderdeterminada situação, mas nada impede que, dando a ela uma extensão mais dilatada, alcane outra situação que seja semelhante.
O direito coloca à disposição do intérprete a analogia, que vem a ser a aplicação de uma determinada regra nos mesmos moldes de outra utilizada em casos semelhantes, para fazer prevalece a igualdade juríidica. Quer dizer, espécies semelhantes reguladas por normas semelhantes (analogia legis). "O manejo acertado da analogia adverte Maximiliano, exige da pate de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica, não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigos, facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado." (Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e a aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense).
A Justiça, desta forma, se apoia numa construção intelectual aliada a um sentimento que vem a ser a expressão dos princípios básicos que revelam as ações humanas altruístas, impulsionada por sentimentos de afeto pelo próximo. Assim, nada mais justo do que conferir a adoção póstuma à pedagoga para que ela, conforme bem dimensionado pelo arguto julgador, possa "continuar sendo a mãe e ver o nome pelo qual chamava a filha gravado em sua lápide, preservando-se inclusive o direito de cultuar a filha que era sua e não mas daqueles que renunciaram ao poder familiar".
Fonte: Migalhas, 30/7 (WGF)
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