11/10/2020

Acontece no UNICURITIBA: Grupos de pesquisa participaram na elaboração de parecer como amicus curiae no julgamento da ADPF 442

 

Por Nicoly Schuster. 

Mais uma vez, integrantes dos grupos de pesquisa do UNICURITIBA, em conjunto com o Instituto Mais Cidadania[i] participaram na elaboração de um parecer na qualidade de amicus curiae perante o Supremo Tribunal Federal. Os pesquisadores se dedicaram a estudar e elaborar teses sobre a ADPF[ii] 442, que trata da descriminalização do aborto até a 12ª semana.

A arguição foi apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o qual sustentou que a Constituição de 88 não poderia recepcionar os artigos 124 e 126 do Código Penal, que tipificam a conduta do aborto voluntário, por configurar afronta aos direitos de liberdade, dignidade da pessoa humana, à cidadania e à não discriminação das mulheres. O partido, ainda, requereu tutela de urgência para que fossem suspensas as prisões em flagrante, os inquéritos policiais, o andamento de ações penais e os efeitos de decisões judiciais que tenham aplicado os referidos artigos do Código Penal. Entretanto, o pedido foi indeferido pela ministra relatora Rosa Weber.  

Sendo o tema aborto tão relevante social, política e culturalmente, quanto mais subsídio para basear suas decisões os ministros tiverem, mais bem informado serão seus votos. A figura do amicus curiae possui, então, papel relevante para contribuir com esses julgamentos, na medida em que permite que estudos aprofundados sobre um tema integrem a ação constitucional. Na decisão que convocou entidades e organizações para audiência pública, a Ministra Rosa Weber[iii] exprimiu que  

À vista do quadro normativo desenhado, verifica-se que a questão da interrupção voluntária da gravidez nas 12 (doze) primeiras semanas envolve o espaço de conformação e incidência de diferentes valores públicos e direitos fundamentais. 13. A discussão que ora se coloca para apreciação e deliberação deste Supremo Tribunal Federal, com efeito, é um dos temas jurídicos mais sensíveis e delicado, enquanto envolve razões de ordem ética, moral, religiosa, saúde pública e tutela de direitos fundamentais individuais. A experiência jurisdicional comparada demonstra essa realidade. Assim, a complexidade da controvérsia constitucional, bem como o papel de construtor da razão pública que legitima a atuação da jurisdição constitucional na tutela de direitos fundamentais, justifica a convocação de audiência pública, como técnica processual necessária, a teor do art. 6º, §1º, da Lei n. 9.882/99, e dos arts. 13, XVII, e 154, III, parágrafo único, ambos do RISTF.

Quando se trata do tema, é inevitável mencionar o caso Roe x Wade, no qual a Supreme Court analisou e estabeleceu parâmetros a nível federal sobre o aborto. Em 1973, a Corte Burger analisou a constitucionalidade de uma lei do estado do Texas — que proibia a conduta em qualquer caso exceto quando houvesse risco de vida para a gestante — e decidiu que o aborto seria permitido até o primeiro trimestre[iv] da gestação.

No Brasil, a primeira grande discussão sobre a matéria foi trazida pela propositura da ADPF 54, a qual estabeleceu que a mulher poderia escolher se vai ou não abortar, caso o feto seja diagnosticado com anencefalia. No julgamento, é importante ressaltar, não foi analisada a descriminalização do aborto, mas sim a incompatibilidade da criminalização em caso de feto anencéfalo. Portanto, aqui, não foi examinado o confronto do direito à vida com a liberdade de escolha da mulher, uma vez que não haveria vida para ser tutelada. Nesse sentido, o voto do ministro relator Marco Aurélio[v] 

Conforme demonstrado, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida. Trata-se, na expressão adotada pelo Conselho Federal de Medicina e por abalizados especialistas, de um natimorto cerebral. Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, no início do voto, a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida. Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível.

O atual ordenamento jurídico brasileiro prevê que o aborto pode ser realizado nas seguintes hipóteses: gravidez resultante de estupro; quando não há outra forma de salvar a vida da gestante ou em caso de feto diagnosticado com anencefalia. Além dessas, existe a possibilidade do aborto eugênico, que se configura quando há pouca chance de sobrevida do feto devido a anomalias congênitas. Essa última não é prevista pela lei, mas é geralmente aceita pela jurisprudência, conforme se vê em algumas decisões judiciais que já têm permitido o procedimento, por exemplo, em casos de diagnóstico do feto com a síndrome de Edwards.

Mesmo nessas situações, nas quais o aborto é um direito, as mulheres enfrentam dificuldades para realizar o procedimento devido a fatores como a recusa dos médicos, a falta de informação sobre o direito que possuem e a estigmatização social que acompanha à prática pelo fato de ser, pela regra geral, um crime. Isso pode ser notado, por exemplo, no caso da criança de 10 (dez) anos violentada pelo tio desde os 6 (seis) anos de idade, que engravidou e teve que ser transferida para outro estado para realizar o aborto, pois a ministra Damares Alves expos o caso em suas redes sociais, acarretando numa comoção conservadora contra a realização do procedimento, obrigando a menina a eixar a sua cidade[vi].

A questão da descriminalização voltou a ser objeto de debate a partir da propositura da ADPF 442, exigindo que o Tribunal Constitucional analise, finalmente, se é possível que a mulher escolha se vai ou não realizar aborto, até a décima segunda semana da gestação. Para compreender um tema tão complexo e sensível é necessário ir além dos aspectos jurídicos e se debruçar sobre teorias da justiça e da argumentação, sobre o percurso da aquisição de direitos feministas, sobre a ótica médica relacionada ao procedimento, entre outros aspectos sociais, culturais e políticos. Foi com esse olhar multidisciplinar, abordando diversas perspectivas sobre o tema, que foi desenvolvido o projeto de trabalho pelos pesquisadores.   

Três integrantes dos grupos de pesquisa aceitaram compartilhar como foi a experiência de elaborar uma peça a ser submetida ao STF, em um dos julgamentos mais importantes já apresentados diante da suprema corte brasileira. Kamylla de Paula Padilha[vii], advogada e egressa da Unicuritiba, contou que se sente mais apta a seguir na carreira acadêmica e que definiu sua linha de pesquisa a partir da elaboração dos estudos para o parecer. Além disso, quando perguntada sobre a possibilidade de aplicar no parecer o conteúdo ministrado em aulas e as teorias estudadas nos encontros do grupo de pesquisa, ela disse que

“Quando estudamos na faculdade as possibilidades de admissão da ADPF, quem são os legitimados, quais são os requisitos etc., parece algo bastante distante, mas quando podemos estudar e fazer parte de um caso específico tudo fica mais claro.

Com relação ao grupo de pesquisa estou no segundo ano, e estudo o fenômeno de judicialização de casos que envolvem o Direito de minorias no Brasil, o assunto é bastante complexo e traz à tona uma série de problemas. Dessa forma, o parecer foi uma oportunidade de ver a realidade que líamos nos textos durantes os encontros.”

A acadêmica Nicolly Jacob Castanha[viii], também ressaltou que foi possível aplicar, em um caso prático, o conteúdo que aprendeu nas aulas sobre controle de constitucionalidade. Segundo ela:

“Acredito que essa seja a verdadeira magia de participar da confecção de um parecer como esse. É preciso, por exemplo, lembrar das saudosas aulas de direito Constitucional da professora Tanya e do Professor Luiz Gustavo, para entender, por exemplo, o porquê, é cabível, no caso em questão, a ADPF e não as demais ações em controle concentrado, ou, para compreender quais são os eventuais direitos fundamentais que podem estar sendo violados com a criminalização, ou ainda para se questionar qual é, verdadeiramente, o papel da Corte Constitucional.”

A acadêmica Bruna Maria Domingues Braga[ix], destacou que participar na elaboração do parecer permitiu a ela ampliar os estudos e a forma com a qual olha para um caso jurídico. Perguntada sobre como participar da confecção desses pareceres poderia refletir na sua vida acadêmica e profissional, respondeu que 

“Com toda certeza eu acho que isso influencia na vida acadêmica e profissional, porque, primeiramente, antes de ser um acadêmico, nós somos indivíduos, nós somos cidadãos e estamos incluídos em uma sociedade. Então, a partir do momento que a gente tem esse tipo de oportunidade acadêmica, conseguimos ampliar primeiramente os nossos estudos, a forma com a qual estudamos e vemos um caso. Isso vai refletir no profissional pelo fato de que a gente vai ter um olhar não somente jurídico, que é esperado de um jurista, mas também um olhar da sociedade, porque para além de juristas nós sempre estaremos tutelando o direito de alguém.”

Entretanto, a complexidade do tema se mostrou um desafio importante, já que foi preciso esmiuçar, por exemplo, conceitos de teorias da justiça e a jurisprudência do STF, bem como analisar ordenamentos jurídicos estrangeiros. Conforme apontado por Kamylla[x], foi desafiante compreender os contextos sociais e políticos dos diferentes países e sua legislação, assim como interpretar decisões judiciais estrangeiras, já que existiam poucas fontes oficiais disponíveis para pesquisa. Já a acadêmica Bruna[xi], asseverou que foi desafiador deixar as opiniões pessoais de lado e escrever um parecer técnico e imparcial, e apontou para a grande responsabilidade de atuar em um julgamento cuja decisão vai impactar de maneira tão significativa a vida de todas as pessoas. A acadêmica Nicolly, que também é monitora da disciplina de Direito Constitucional III, foi responsável por auxiliar os professores na organização final do parecer e apontou para a complexidade de compilar, em um texto único, os escritos de mais de dez pesquisadores[xii]. Apesar disso, a monitora destacou que todos os textos foram produzidos com muito comprometimento e, por isso, o resultado do parecer foi de excelência.        

A oportunidade de elaborar textos para serem apresentados perante um dos tribunais mais importantes do país é primordial para o desenvolvimento acadêmico e profissional dos estudantes, além de permitir uma visão de mundo ampla e que vai além da mera interpretação e aplicação das leis. Permite que seja aprimorada a escrita e desenvolvida a pesquisa, a partir do aprofundamento sobre temas importantes que não são tratados em profundidade nas aulas, além de ser possível colocar a teoria em prática para resolver questões em casos reais, sobre assuntos de grande relevância social.  

Para saber mais sobre outras ocasiões nas quais os grupos de pesquisa participaram em julgamentos perante o Supremo Tribunal Federal e como se dá a escolha dos alunos para participar da elaboração dos pareceres, acesse aqui.   


[i] Presidido pelo professor Roosevelt Arraes e dirigido pelo professor Luiz Gustavo de Andrade, ambos integrantes do corpo docente do UNICURITIBA. 

[ii] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: espécie de ação de controle de constitucionalidade de caráter residual - própria para as hipóteses nas quais não cabe outro tipo de ação de controle - cabível contra atos do poder público que infrinjam preceitos fundamentais.

[iii] STF. Decisão da ministra Rosa Weber. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AudnciaPblicaADPF442.pdf>. Acesso em 1º de outubro de 2020. 

[iv] Equivale, mais ou menos, à 24ª semana de gestação.

[v] STF. Voto do ministro relator Marco Aurélio. Disponível em:  <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf> Acesso em: 1º de outubro de 2020.

[vi] BRASIL ELPAIS. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital. Disponível em:  <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html>. Acesso em: 1º de outubro de 2020.

[vii] Advogada e egressa do UNICURITIBA. 

[viii] Acadêmica do decimo período do curso de Direito. 

[ix] Acadêmica do sexto período do curso de Direito.

[x] Em entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.

[xi] Em entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.

[xii] Em entrevista ao UNICURITIBA Fala Direito.

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07/10/2020

Me indica um filme: The Social Dilemma

 

Por Rafaella Pacheco. 

“Dataísmo é niilismo. Ele renuncia inteiramente ao sentido. Dados e números são aditivos, não narrativos. O sentido, ao contrário, baseia-se na narração. Os dados preenchem o vazio do sentido.” Byung-Chul Han, 2018.

            O docudrama norte-americano The Social Dilemma (O Dilema das Redes) foi lançado pela plataforma Netflix em setembro deste ano e, além de ter sido taxado por Mark Zuckerberg de sensacionalista, tem promovido algumas reações aos que o assistiram, em conversas com amigos e em grupos de WhatsApp. A descrição contida na plataforma de streaming enfatiza a proposta do filme de alertar sobre os impactos devastadores das redes sociais sobre a democracia e sobre a humanidade. E sim, ele alerta sobre pontos já conhecidos acerca das redes sociais, mas nada que promova uma grande transformação no agir humano. Até porque é pequeno o estímulo por parte desta produção audiovisual para nos desconectarmos por completo das redes sociais (afinal, ela mesma veicula-se numa plataforma de streaming mundialmente conhecida que chegou a grande maioria dos espectadores através de uma massiva propaganda a respeito). Nem mesmo o medo da vigilância ou a consciência da manipulação contínua são suficientes para a maioria dos usuários das mídias sociais mencionadas no filme deletarem suas contas.

 Sobre a película

As questões levantadas em The Social Dilemma, dirigido por Jeff Orlowski, são necessárias e a película funciona muito bem como uma introdução ao debate sobre o papel e os efeitos da tecnologia em nossas vidas. Mas a mensagem do docudrama fica apenas na superfície, limitando-se às falas de profissionais do meio que afirmam que as redes sociais fazem mal e transformam o sujeito em um produto. O que não é uma grande novidade se voltarmos nossos olhos aos teóricos críticos da Escola de Frankfurt, por exemplo.

É um filme com uma fórmula já conhecida, em que intercala depoimentos de especialistas em tecnologia, engenheiros e idealizadores do Google, Facebook, Pinterest, Youtube, Instagram e Twitter, com o drama de uma família de classe média em que os filhos não conseguem desconectar de seus aparelhos de celular e têm suas inseguranças potencializadas pela rede, de modo a reforçar a mensagem destes profissionais entrevistados.

Os pontos que mais norteiam é a relação entre saúde mental e o uso das mídias sociais, destacando como foram desenvolvidos algoritmos de alienação contínua nas telas de nossos celulares e computadores. Nós manipulamos a tecnologia para benefício próprio ou somos manipulados através dela (e não por ela) para atender demandas políticas e econômicas específicas? Infelizmente a película fomenta tais questões, mas não as trabalha de maneira profunda que este tema demanda. E o entendimento sobre o poder disciplinador em Michel Foucault e a análise sobre a psicopolítica neoliberal de Byung-Chul Han são fundamentais a este debate.

 Sobre o não dito

A palavra dilema pressupõe duas premissas contrárias e mutuamente excludentes. Mas, ao atentarmos à palavra central que encabeça o título do filme, ao término dele, percebemos ser uma escolha terminológica inapropriada, pois não se trata de um dilema e nem nos é apresentado como uma escolha sobre as redes sociais (como, por exemplo, viver sem elas ou sujeitar-se a elas).

O que fica claro aos olhos atentos é que tais redes são ferramentas úteis – no que tange a facilidade e agilidade de trocas de informações. Porém, são projetadas para nos entreter, de tal modo que, possam mapear nossas ações e desejos e então nos catalogar e nos transformar em um produto deste mercado que nos molda – potencializando vícios e modulando ideias – para atender às necessidades dos empreendedores e empresários deste mercado muito especifico de mapeamento e manipulação de intenções humanas.

Portanto, o que temos para além da superfície de The Social Dilemma é uma denúncia de que vivemos num processo de coisificação natural do capitalismo em que um seleto grupo tira vantagem de uma grande, e porque não dizer massiva, quantidade de pessoas. Logo, é notório, nesta equação que o bônus é todo desse seleto grupo de negociantes, enquanto o ônus é de grande parte da população global usuária de redes sociais. Demonstrando que não há dilema nem para o seleto grupo detentor dos dados e do poder da manipulação tecnológica da comunicação e da informação; nem mesmo a grande massa de corpos dóceis que está imersa na dependência de programas e aplicativos.

Alguns exemplos simples de como a tecnologia pode facilitar e ao mesmo tempo criar dependências nada saudáveis ao desenvolvimento de nosso intelecto são reveladas em pequenos questionamentos, como: quantos professores ao corrigirem trabalhos manuscritos de seus alunos perceberam que estes não fazem ideia de como separar sílabas ou mesmo acentuar palavras, pois digitalmente este artificio é dispensável e o corretor ortográfico existe para isso. Ou, você sabe de cabeça o telefone das cinco pessoas mais próximas de você para o caso de uma emergência em que você não tenha o seu celular em mãos? E o Google virou seu oráculo que tudo responde e tudo encontra e o site dos sinônimos seu fiel companheiro de redação?

 Sobre a coisificação dos indivíduos e dos afetos

Em Modern Times (Tempos Modernos), de 1936, Chaplin já nos alertava sobre a transformação do homem em engrenagem dentro de um sistema voltado para metas e lucros. The Social Dilemma, de maneira menos poética, apresenta que a importância de permanecermos conectados à internet reside, não apenas em sermos inundados por propagandas e moldados aos interesses das startups e empresas de tecnologia do Vale do Silício, mas para mantermos outros de nós também conectados, em rede. Sim, o sistema foi feito para nos prendermos a ele, mas se você não curte, não comenta, não publica nada, ou mesmo não tem uma conta na plataforma x, isso já dificulta parte do domínio sobre você.

 O regime neoliberal emprega emoções como recursos para alcançar mais produtividade e desempenho. A partir de certo nível de produção, a racionalidade, que representa o médium da sociedade disciplinar, atinge seus limites. [...] De repente, a racionalidade atua de forma rígida e inflexível. Em seu lugar entra em cena a emocionalidade, que está associada ao sentimento de liberdade que acompanha o livre desdobramento individual. Ser livre significa deixar suas emoções correrem livres. O capitalismo da emoção faz uso da liberdade. A emoção é celebrada como expressão da subjetividade livre. A técnica neoliberal do poder explora essa subjetividade livre. (HAN, 2018, p. 65)

 O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua pequena, porém feroz, obra Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder[1] destinou um capítulo para refletir acerca do capitalismo das emoções, que neste debate é essencial. O pensador distinguiu sentimentos, emoções (e afetos) e disposição para demonstrar seus graus de profundidade no ser e suscetibilidade em termos de manipulação e comoção social. E, em sua reflexão, constatou que a circulação de emoções e afetos são mais fáceis de moldar na sociedade, por serem subjetivas, não-narráveis (por isso frases isoladas de teor provocativo causam um efeito imediato), fugaz, dinâmicas e situacionais, e desta forma são favorecida pela comunicação digital que possui descarga imediata. Logo, as emoções e afetos são mais fáceis de suscitar e induzir ações impulsivas nos indivíduos, e por consequência, na sociedade.

 [...] as emoções são controladas pelo sistema límbico, no qual também se assentam os impulsos. Eles formam o nível pré-reflexivo, semiconsciente e corporalmente impulsivo da ação, do qual frequentemente não se tem consciência de forma expressa. A psicopolítica neoliberal se ocupa das emoções para influenciar ações sobre esse nível pré-reflexivo. Através da emoção, as pessoas são profundamente atingidas. Assim, ela representa um meio muito eficiente de controle psicopolítico do indivíduo. (HAN, 2018, p. 68)

 Dentro de tais considerações, explica-se a insurgência dos outsiders detentores de discursos autoritários e/ou de ódio no cenário político de países democráticos, gerando insegurança e instabilidades aos pilares da democracia. Infelizmente, ao olharmos para a atual conjuntura, perceberemos que a verdade, outrora perdida, dissolveu-se por completo em Fake News, e processos de massificação hoje são confundidos com identificação coletiva.

 Sobre o poder disciplinar

 A vigilância digital é mais eficiente porque é aperspectivista. Ela é livre de limitações perspectivistas que são características da óptica analógica. A óptica digital possibilita a vigilância a partir de qualquer ângulo. Assim, elimina pontos cegos. Em contraste com a óptica analógica e perspectivista, a óptica digital pode espiar até a psique. (HAN, 2018, p. 78)

 Por fim, é crucial voltarmos ao pensamento de Michel Foucault para uma maior compreensão acerca da sistemática de dominação e sujeição que o docudrama ilustra em sua narrativa. O filósofo francês entendia o poder enquanto algo que funciona em cadeia, ou seja, enquanto algo que se exerce em rede. Aqui enfatiza-se o papel dos usuários de mídias sociais para que essa estrutura de servidão se mantenha ativa. Pois, é nessas cadeias de sujeição e opressão que o poder circula, sendo que, um mesmo sujeito pode dominar e ser oprimido ao mesmo tempo dentro das relações que estabelece no tecido social.

Partindo dessa compreensão basilar sobre as relações de poder, podemos então adentrar no entendimento de Foucault acerca do poder disciplinar, para visualizarmos a extensão da problemática que vemos na ponta do iceberg apresentado em The Social Dillema.

A dominação utiliza-se do poder disciplinar – que é uma modalidade de poder sobre os corpos, ações e a própria constituição do indivíduo –, para se manifestar. E o pensador francês determinou quatro ordens de ações disciplinadoras que, através de um processo de adestramento, objetivam a constituição de corpos dóceis[2], sendo elas: a celular, dada pela repartição espacial; a genética, pela acumulação do tempo; a orgânica, através da codificação das atividades; e a combinatória, compreendida pela composição das forças.[3]

            Estas ações se realizam por meio de três instrumentais, que são entendidos enquanto recursos para o bom adestramento: a vigilância hierárquica (através de nossos aparelhos que viraram o panóptico da contemporaneidade); a sanção normalizadora (dada por pequenos mecanismos penais que instituem um processo de normalização, a exemplo: a exclusão daqueles que não estão conectados); e o exame (compreende a catalogação do indivíduo afim de controlá-lo e vigiá-lo; é a base da big data, que permite qualificar, classificar e punir).

            Portanto, o capitalismo da vigilância funda-se no que Foucault denominou de saber-poder – essencial para se conhecer o indivíduo e então melhor discipliná-lo – e a disciplina – que mascara o poder deixando a mostra seus súditos, os rostos na timeline, que transforma os indivíduos em produtos, objetos de poder.

“Enquanto o poder soberano ostentava o direito de matar, o biopoder, da era disciplinar, 
 deixam viver para investirem sobre a vida.”[4]

 



[1] HAN, Byung-Chu. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.

[2] O homem é o principal alvo e objeto do poder, que tem como meta, a tarefa de incorporar nos corpos características de docilidade. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.” (FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 126).

[3] MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro, Guanabara-Koogan, s/d, p. 67-68.

[4] MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 81.

 

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