30/08/2020

Mulheres de Destaque: Bertha Lutz

Uma das pioneiras da luta pelo voto feminino e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no Brasil, Bertha Maria Júlia Lutz nasceu em São Paulo, em 02/08/1894.

Era uma mulher branca e privilegiada, formada em ciências naturais na Universidade Paris, especializando-se em anfíbios anuros (subclasse que inclui sapos, pererecas e rãs). Foi na Europa onde tomou contato com o movimento feminista inglês e, retornou ao Brasil logo após sua graduação (1918).

Foi a segunda mulher a ingressar no serviço público brasileira, após ser aprovada em concurso no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Mais tarde, foi promovida chefe do departamento de Botânica do Museu.

Contudo, começou a se destacar na política, buscando pela igualdade de direitos jurídicos entre os gêneros, em torno de 1919, além de fundar, no mesmo ano, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Em 1922, organizou o I Congresso Feminista do Brasil e foi a representante brasileira na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, sendo eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana.

Ainda, substituindo a Liga criada em 1919, criou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, para encaminhar a luta pela extensão de direito de voto às mulheres (o que só se concretizou em 1932).

Já em 1933, fundou a União Profissional Feminina e a União das Funcionárias Públicas e representou o Brasil na VII Conferência Pan-Americana, em Montevideo (Uruguai). Sempre em busca dos direitos das mulheres, formou-se em Direito neste mesmo ano, pela Faculdade do Rio de Janeiro e tentou se tornar professora na instituição com a tese “A Nacionalidade da Mulher Casada perante o Direito Internacional Privado”, abordando a perda da nacionalidade feminina quando a mulher se casava com um estrangeiro.

Não satisfeita, em 1936 assumiu a cadeira de Deputada Federal, defendendo a mudança da legislação referente ao trabalho da mulher e dos menores de idade, propondo não só a igualdade salarial, mas também a licença de três meses para a gestante e a redução da jornada de trabalho que, até então, era de 13 horas diárias. Também, lutou pela criação de um Ministério Nacional da Mulher, foi presidente da Comissão do Estatuto da Mulher e apresentou o projeto do Departamento de Maternidade, Infância, Trabalho Feminino e Lar; projeto esse que, embora aprovado, não chegou a sair do papel, devido ao fechamento do Congresso em 1937.

Foi a representante brasileira Conferência Internacional do Trabalho, de 1944 e, no ano seguinte, foi convidada por Getúlio Vargas a integrar a delegação do Brasil na Conferência de São Francisco, que pretendia redigir o texto definitivo da Carta da ONU.

Durante o evento, Bertha se empenhou, junto a outras delegações da América do Sul, para assegurar que a Carta fosse revista periodicamente. Contudo, seu grande mérito foi a luta para incluir menções sobre a igualdade de gênero no texto do documento, batendo de frente com a delegada estadunidense e contanto com o apoio da dominicana Minerva Bernadino.

Devido à sua atuação na Conferência de São Francisco, Lutz foi convidada pelo Itamaraty a integrar a delegação brasileira à Conferência do Ano Internacional da Mulher, organizada pela ONU e realizada no México, em 1975.

Mesmo com toda a dedicação à política e ativismo, Lutz nunca abandonou a pesquisa, descobrindo inclusive uma nova espécie de sapos, que carrega seu sobrenome em forma de homenagem (Paratelmatobius lutzii).

O que é importante destacar desta mulher que faleceu aos 82, sem nunca ter se casado e sem ter filhos, é que não importa sua condição econômica ou privilégios quando se tem empatia e consciência de classe. Bertha era filha de cientista e teve a oportunidade de não apenas estudar, mas o fazer na Europa, em uma faculdade de renome, mesmo em um período em que o acesso à educação para mulheres era extremamente restrito.

Mesmo ciente de suas vantagens, buscou incansavelmente pela igualdade de gênero, pelo sufrágio feminino e REPRESENTATIVIDADE, dando voz à inúmeras mulheres esquecidas pelo governo formado por homens brancos elitistas.

Por fim, o primeiro passo para entender seus direitos, é conhecer a sua história e os atores que tornaram as conquistas possíveis.

 

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25/08/2020

Em pauta: 12% de taxação para livros – Uma afronta aos direitos humanos

 

            No mês de agosto de 2020, o atual Ministro da Economia Paulo Guedes sinalizou que pretende criar uma tributação para a compra de livros, revistas, periódicos etc. no valor de 12%. Conforme descreve o portal Uol Economia “a ideia do governo é criar uma nova Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS), substituindo PIS e COFINS[i]. A justificativa do Ministro foi de que os livros são produtos consumidos apenas pela elite, e portanto a taxação não geraria grande impacto econômico na classe que os consome. Não surpreende que uma visão tão retrógrada sobre o consumo de livros venha de um ministro que, em transmissões ao vivo em redes sociais, acabou revelando que em sua estante pessoal não existem muitos exemplares desse item que ele mesmo classificou como um privilégio das elites.

Vários setores da sociedade se manifestaram de forma contrária a essa medida, como o movimento “Defenda O Livro” e a União Brasileira de Escritores (UBE), que publicou um manifesto criticando de maneira direta não somente a tributação proposta, como também a justificativa dada pelo Ministro da Economia de que a leitura é um privilégio de poucos.

            Sob o ponto de vista constitucional, que impera sobre as vontades de qualquer governante, de acordo com o artigo 150, inciso VI, alínea “d” é proibido a qualquer ente federado instituir impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão[ii].  Essa parte do texto constitucional foi proposta pelo autor brasileiro Jorge Amado durante a Assembleia Constituinte de 1946, a Emenda 2.850 que foi ratificada e ampliada na Constituição de 1988[iii]. Desde a vigência desta, essa alínea não foi alterada ou retirada, portanto ela tem eficácia plena. Dessa maneira, independentemente de qualquer argumentação oferecida pelo Ministro Paulo Guedes, a tributação de livros está claramente em desacordo com o texto constitucional, e não deve ser implementada.

            Superando essa primeira explicação da inconstitucionalidade da taxação sobre livros, pretendo ampliar a discussão sobre esse assunto a partir de um texto de Antonio Cândido, renomado estudioso e crítico de literatura brasileiro. “O Direito À Literatura[iv] foi um texto escrito em 1988, época da redemocratização brasileira e da elaboração da nossa atual Constituição. Nesse contexto, Cândido constrói um raciocínio de como a literatura é um direito humano, inclusive para as classes menos favorecidas.

            O autor compreende que a base dos direitos humanos é “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo[v]. Nesse ponto existem alguns bens, como casa, comida, educação e saúde, que todos concordam que são bens essenciais a todos os indivíduos, independentemente do valor de sua renda ou posição social. Contudo, quando se discute o acesso à literatura, o autor afirma que uma boa parte das pessoas não considera a literatura como um bem tão essencial à vida quanto os que foram citados anteriormente.

            Cândido menciona um conceito criado por Louis-Joseph Lebret, renomado sociólogo francês e fundador do movimento Economia e Humanismo, sobre a distinção entre “bens compressíveis” e “bens incompressíveis”. Esses últimos, os incompressíveis, são bens que não podem ser negados a ninguém, ou seja, são essenciais a todos. Nessa perspectiva podemos enquadrar os direitos humanos como um movimento que visa assegurar a todos os seus bens incompressíveis. Antonio Cândido amplia o rol desses bens quando argumenta que “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física, em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual[vi], sendo essa integridade não restrita a uma visão religiosa, como também humanística.

            Para justificar a comparação do direito à literatura como um bem tão essencial a todos quanto os demais direitos, Cândido demonstra como a literatura está presente em todas as camadas sociais, dos mais pobres aos mais abastados, porém aos primeiros é relegada a cultura dita popular, enquanto que aos últimos reserva-se a cultura erudita. O contato com a literatura seria, de acordo com o autor, traço essencial para a formação da personalidade do indivíduo e o desenvolvimento de sua humanidade. “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”[vii] Afirma o crítico, e reforça que “Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade[viii].

Apesar das elites reconhecerem como essencial o contato com a literatura erudita para a formação de seu pensamento, Cândido aponta como elas falham em reconhecer que uma pessoa que more em uma favela possa também ler Dostoiévski e ouvir Beethoven. Um exemplo contemporâneo desse mesmo comportamento foi uma situação que ocorreu com Audino Vilão – nome artístico de Marcelo Marques, jovem de 19 anos e estudante de história, que em seu canal no Youtube traduz as ideias de grandes filósofos para a “gíria da quebrada”, como o mesmo descreve. Audino contou em uma live com Leandro Karnal como um de seus críticos afirmou que “a favela não tem demanda pela filosofia. Para quê levar a filosofia na favela?[ix]. Ele refuta veementemente essa ideia, afirmando que “filosofia não é demanda de classe social, é demanda de humanidade”.  

            Além disso, em seu texto, Cândido demonstra como a literatura se desenvolveu enquanto ferramenta de promoção de direitos humanos, sendo utilizada para desmascarar a restrição ou negação destes. O crítico crê que a inserção do pobre como protagonista literário a partir do Romantismo do século XVIII, e no Brasil a partir da década de 1930, foi um fator importante para o reconhecimento desse sujeito enquanto um indivíduo merecedor de direitos, inclusive o de acesso à literatura erudita.

Cândido afirma que para que esse bem incompressível deixe de ser privilégio de uma pequena elite, é necessário que haja uma distribuição equitativa de bens, pois “quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura[x]. Relembro que, segundo uma pesquisa do Instituto Pró-livro, publicada em 2016, o brasileiro lê, em média, 2,43 livros por ano. Além disso, cerca de 30% da população nunca comprou um livro.[xi] Partindo da visão de Cândido, esse é um indicador que reflete a má distribuição de riquezas no país.

            A partir da análise contundente feita por Cândido em 1988, é necessário que nós percebamos como a questão da taxação de livros, revistas e periódicos que está sendo proposta por Paulo Guedes, além de ferir expressamente o artigo 150 da Constituição, também é um profundo ataque a esse direito humano tão essencial que é a literatura. Caso essa medida seja implementada restará a muitos brasileiros uma semelhança com o ministro, a estante vazia. 

“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”[xii]



[i] UNIÃO Brasileira de Escritores se manifesta contra tributação de livros. Uol Economia. 17 ago. 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/17/uniao-brasileira-de-escritores-se-manifesta-contra-tributacao-de-livros.htm>.

[ii] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

[iii] CINTRA, André; RUY, José Carlos. Livros sem impostos: uma conquista democrática, um legado comunista. Rádio Peão Brasil. 19 ago. 2020. Disponível em: <https://radiopeaobrasil.com.br/livros-sem-impostos-uma-conquista-democratica-um-legado-comunista/>

[iv] CÂNDIDO, Antonio. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011.

[v] Ibid., p. 174.

[vi] Ibid., p. 176.

[vii] Ibid., p. 182.

[viii] Ibid., p. 188.

[ix] FILOSOFIA Pop | Audino Vilão e Leandro Karnal. Canal Prazer, Karnal. YouTube. 20 ago. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SGVQHc6DZlo&t=1413s>.

[x] CÂNDIDO, 2011, p. 189.

[xi] ROSA, Joseane. Dia do leitor: desafios da leitura no Brasil. Educa Mais Brasil. 07 jan. 2020. Disponível em: <https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/dia-do-leitor-desafios-da-leitura-no-brasil>.

[xii] CÂNDIDO, 2011, p. 193.


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