31/07/2019

Em pauta: Existe Bullying no Ensino Superior?










Acredito que tenha começado no 2° período da faculdade, quando a turma já tinha se "acostumado" uns com os outros e já poderiam deixar de seguir a máscara social e mostrar quem realmente é. De início foram ataques aos professores, xingamentos, calúnia, difamação, entre outros. Me senti deslocada e não queria estar naquele meio, achava injusto tratar uma pessoa que te ensina dessa forma tão desrespeitosa. Quando decidi me afastar, eu virei alvo. Mas foi tudo aos poucos, até virar uma prática corriqueira. Uma provocação aqui, ali, no grupo da sala no whatsapp, na frente da sala inteira. A dimensão foi aumentando cada vez mais [...].



Costumamos acreditar que o bullying é coisa de criança, devido à falta de maturidade ou, até mesmo, que não passa de brincadeira. Por isso, ignoramos que esta realidade tão próxima também do mundo acadêmico. Com isso, o lugar que deveria ser para aquisição do conhecimento através de ideias divergentes e superação de diferenças, pode tornar-se um cenário de violência, muitas vezes velada e silenciosa.
Além da distorção dos valores éticos e sociais que ocorre no ambiente familiar, a mídia cria um determinado padrão de beleza que reflete nos casos de bullying, visto que as vítimas, geralmente, são pessoas fora de tais padrões, seja pelas características físicas, comportamentais ou emocionais. Insultos, intimidações, apelidos cruéis, gozações que magoam profundamente, acusações injustas, atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam a vida de outros alunos levando-os à exclusão, além de danos físicos, morais e materiais, são algumas das manifestações do comportamento bullying.
Eu me sentia incomodada, fingia que não era comigo. Os professores percebiam que havia algo de errado mas não sabiam o que ocorria exatamente. O convívio na sala era assim, tenso. Piorou muito quando fizeram uma difamação grande sobre a minha pessoa, alegando um ato no qual eu não cometi. Foi bem sério. Eu fiquei muito nervosa mas não sabia o que fazer direito.

Por definição, o bullying é um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, adotado por um ou mais alunos contra outros, causando dor, angústia e sofrimento. De acordo com a médica psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, o bullying é um ato de violência, física, moral, psicológica ou sexual, que ocorre de modo intencional e repetitivo, sem justificativa, podendo ser, inclusive, virtual (cyberbullying), de modo em que os alvos das hostilidades não conseguem sequer se defender.
Ainda, a médica psiquiatra afirma que as consequências do bullying no ensino superior são variadas, dependendo do indivíduo, de sua estrutura, vivencia, pré-disposição genética e até mesmo o tipo de agressão praticada, atingindo não apenas a vítima, mas também sua família e os espectadores. Mas, de modo genérico, não se diferem das consequências do bullying em outros níveis de educação: o medo de voltar às aulas, a sensação de vulnerabilidade e insegurança no local, desinteresse pelos estudos, problemas psíquicos e comportamentais, por exemplo.
Enquanto algumas vítimas conseguem lidar com os problemas advindos do bullying – como Geisy Arruda, que em 2009 foi hostilizada por mais de 600 alunos da faculdade em que estudava e fez da situação um impulso para se tornar amplamente conhecida – muitas outras não conseguem converter a agressão em algo positivo, adoecendo. Em casos extremos, há exemplos daqueles que retornaram às universidades e/ou escolas para se vingar dos agressores. Um caso emblemático é o do estudante do último período de Letras, da Universidade de Virgínia Tech, nos Estados Unidos em 2007, o qual adentrou a universidade com arma de fogo, matando 32 pessoas e ferindo outras 29, entre alunos e professores. Este não é um evento isolado, demonstrando que ainda persiste a falta de políticas e ações sobre esse fenômeno no ensino superior.
Fui na ouvidoria e contei o ocorrido, me foi instruído mandar um e-mail contando tudo bem detalhado, e indicar testemunhas que pudessem relatar os fatos. Eu escrevi o e-mail mas não mandei. Denunciar é uma exposição grande, maior da que eu passei anteriormente. Meu receio era denunciar e não acontecer nada, porque eu tenho certeza que as provocações piorariam. Já teve um momento em que uma pessoa desse grupo me seguiu na faculdade, eu percebi e mudei de caminho, ela continuou me seguindo. Tive que mudar a trajetória que eu faço pra chegar até minha sala, faço um caminho mais "escondido" pra não encontrar ninguém. Se eu encontro, eles riem bem alto de mim. Eu sei que eles não tem motivos pra rir, mas sei que é injusto e eu não merecia passar por isso.
De acordo com um artigo da Universidade Federal do Ceará, uma das principais consequências dessa violência é o bloqueio da produção intelectual dos acadêmicos, fazendo com que, indiretamente, toda a sociedade sofra as consequências, visto que interfere na forma em que os profissionais atuarão na comunidade. Entretanto, o bullying continua sendo ignorado em boa parte das faculdades – sendo considerado uma coisa de criança.
                    Quando no ensino superior, o bullying se apresenta de uma forma menos infantil, de forma mais sutil, mas não menos violenta, podendo ocorrer, inclusive, por parte de um professor. Na USP, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto desenvolveu uma escala a fim de verificar a incidência de violência interpessoal no ensino superior, baseando-se em um estudo no qual 187 alunos e 32 professores relataram situações de bullying e seus efeitos no ensino e na aprendizagem. O estudo se baseou em uma lista de 56 situações que podem ser apontadas como discriminação social, por características pessoais e desempenho acadêmico, bem como indicou a frequência de cada episódio. Como conclusão, o levantamento demonstrou que docentes e discentes reconhecem a presença do fenômeno como algo cotidiano, seja em relações entre os próprios alunos (em especial calouros x veteranos) como em relações entre alunos e professores.
          Independentemente de quem for o(s) agressor(res), há de se notar a responsabilidade civil (arts. 186, 187 e 927, CC) e penal do agente. Todavia, nenhuma indenização é capaz de restituir o dano psicológico sofrido, haja vista que, muitas vezes, as ofensas, humilhações e injurias fazem com que a vítima se aprisione em uma imagem de si, moldada e absorvida pela força da palavra destrutiva de outrem, paralisando suas ações e fazendo a superação parecer algo distante.

Essas pessoas são inteligentes, elas nunca vão dar um prato cheio pra você denunciar. É sempre de pouco em pouco e quando são confrontadas dizem que você interpretou errado. No fundo, a sala inteira percebeu o que acontecia, mas o medo tomou conta. Ninguém queria denunciar. Eu só queria que eles me esquecessem e que fossem punidos pelas atitudes que fizeram. Isso não é mais escola, não é hora de aprender certo e errado. O caráter já foi formado e cada um é responsável pelo que faz.

          De todo modo, é sempre importante conversar com alguém, levar a situação aos responsáveis – seja à ouvidoria da instituição ou à delegacia – para que se possa cessar a ação de forma segura e punir os agressores de acordo com a lei.

NOTAS:

1.    A ouvidoria do UNICURITIBA está sempre de portas abertas para resolver tais situações da melhor forma possível, através de uma equipe multidisciplinar.
2.    Os relatos constantes nesta matéria foram extraídos de conversas com acadêmicos do ensino superior, não necessariamente vinculados ao UNICURITIBA. Os nomes não foram divulgados para preservar a segurança e integridade das vítimas.
3.    Ao se deparar com alguma situação discriminatória e/ou violenta, não se cale, denuncie!

REFERÊNCIAS:
BERNARDES, Júlio. ; Escala verifica diferentes situações de “bullying” no ensino superior. 16 abr. 2018. Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/escala-verifica-diferentes-situacoes-de-bullying-no-ensino-superior/>.
OLIVEIRA, Vera Lúcia Ruela de; LIMA, Teófilo Lourenço de. O Bullying no Ensino Superior. abr. 2018. Disponível em: <https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-escolar/o-bullying-no-ensino-superior>.
NASCIMENTO, Tânia Lúcia Nunes do. Bullying: a realidade dolorida de um fenômeno sem distinção de gêneros. Revista Em Aberto, Brasília, v. 27, n. 92, p. 89-98, jul./dez. 2014.
PARLATO FONSECA VAZ, Jose Eduardo. A responsabilidade indenizatória da prática do bullying. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 78, jul 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8104>. Acesso em jun 2019.
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28/07/2019

Me indica um livro: Como as democracias morrem









            A Ciência Política é uma das matérias basilares à formação dos juristas, que possui o Estado como objeto de seu estudo, e traça íntimo diálogo com o Direito Constitucional. E, neste ponto, que iniciaremos a nossa sugestão de leitura para o início deste segundo semestre letivo. Como as Democracias Morrem[1] foi um livro escrito por dois professores/pesquisadores de Ciência Política de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O primeiro possui o enfoque de sua pesquisa na América Latina, e Ziblatt na Europa do século XIX até os dias atuais.
            A obra teve sua primeira edição publicada no Brasil em ano eleitoral, em 2018, e é considerada um best-seller devido sua linguagem acessível, qualidade e recorte da pesquisa, sendo o tema extremamente relevante devido os contextos subversivos à democracia que ressurgem de forma sutil na política, em escala global. Em nove capítulos, nos é apresentado pelos professores Levitsky e Ziblatt o que o The New York Times classificou de guia lúcido e essencial sobre como as democracias podem entrar em colapso seja o lugar que for.
            O livro foi escrito com a intenção de se responder a pergunta: “democracias tradicionais entram em colapso?”. E, tal questão, advém do fato da democracia norte americana ser uma das mais consolidadas e referenciadas democracias do mundo, mas que, atualmente tem gerado uma crescente incerteza a respeito da segurança de seu sistema democrático de direito devido ao seu cenário político, desde a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Para isso, Levitsky e Ziblatt comparam a situação política atual norte americana com uma análise histórica de contextos de regimes totalitários ocorridos no mundo. Neste ponto, o olhar sobre tais conjunturas ocorridas na América Latina, bem como o contexto e análise sobre a democracia nos Estados Unidos é enriquecedor. Servindo-nos como um alerta, principalmente à nós brasileiros, em relação ao nosso cenário político atual que tem buscado, por parte de nossos representantes eleitos, um espelhamento e sujeição equivocada aos posicionamentos e estratégias do presidente norte-americano (em termos de políticas sociais, ambientais e militares).
            Os autores demonstram, através de suas pesquisas, como a ruína da democracia pode se dar de diversas formas. O que antigamente se configurava numa morte abrupta e trágica — como ocorrido no Chile, em que a morte da democracia foi marcada com a morte do presidente eleito Allende, pelas forças armadas chilenas — pode também ocorrer de maneira gradual, sutil e legal, através de líderes eleitos, os chamados outsiders políticos.

“O retrocesso democrático hoje começa nas urnas.”[2]

            Além do diagnóstico minucioso de como processos antidemocráticos se instauram no poder através do próprio sistema democrático afim de dissolvê-lo, há alguns pontos importantes da obra que gostaríamos de ressaltar. O primeiro, é o papel do Poder Legislativo e do Poder Judiciário que, nesses cenários de subversão da democracia, atuam como aliados do Poder Executivo, aprovando e aceitando seus atos. Mantendo, através de uma legitimidade legal própria da segurança jurídica, o que Levitsky e Ziblatt denominaram de um “verniz de democracia” enquanto o sistema, em sua essência é corroído.
Em segundo, a maneira como aspirantes a autocratas justificam medidas antidemocráticas através de situações de crise como instabilidade econômica, perigo à segurança nacional, ou mesmo desastres naturais. Desta forma, o verniz se mantém, conseguindo a tolerância e, por vezes, o apoio da população em tais decisões.
Outro ponto, refere-se ao papel fundamental de partidos já estabelecidos em salvaguardar a democracia, distanciando-se, isolando e derrotando forças extremistas que pretendem ascender ao poder. Para isso, é essencial que tais partidos tenham clareza sobre o perfil, posicionamento e discurso de seus candidatos, bem como, tenham a defesa do sistema democrático e do bem do país acima de qualquer divergência política e ideológica.
            A obra Como as Democracias Morrem é densa em seu conteúdo, e merece um olhar atento dos acadêmicos de Direito. É um livro fundamental pois, visando responder às incertezas políticas de nosso tempo, perpassa os fundadores do presidencialismo norte americano — desde o início preocupados com salvaguarda da democracia —, os caminhos trilhados pelo autoritarismo na América Latina e na Europa, e o papel das Constituições que, de acordo aos autores, possuem ao menos quatro defensores: as instituições críticas, os partidos políticos, os cidadãos organizados e as normas democráticas.

Boa leitura!


[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução: Renato Aguiar. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
[2] LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 16.


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26/07/2019

Me indica um livro: “Os Miseráveis”, de Victor Hugo




O livro “Os Miseráveis” é uma obra francesa que retrata a história de Jean Valjean, um homem que foi sentenciado por furtar um pão para poder alimentar sua irmã mais velha, viúva e com sete filhos. Na época, foi condenado a cinco anos, porém, como tentou fugir por duas vezes, sua pena foi aumentada para dezenove anos, com trabalhos forçados.
Ao cumprir sua pena, foi liberto e viajou até a cidade francesa de Digne, local este onde ninguém o conhecia. Como era de costume, passou pela prefeitura para se identificar. Ocorre que, ao tentar se hospedar nas estalagens locais, todos o rejeitaram, pois possuía, supostamente, um passado extremamente violento. Percebe-se aqui, como o estigma influencia a vida dos indivíduos, tendo em vista que a sociedade havia descoberto o passado de Valjean por possuir um passaporte amarelo que o identificava como “Ex-presidiário perigoso”.  
Depois de inúmeras tentativas de encontrar alguém que o hospedasse, Jean Valjean foi abrigado pelo Bispo Monsenhor. Após passar a noite no recinto, resolveu furtar os castiçais e talheres de prata do Bispo. A polícia o capturou, mas o Bispo ajudou o Jean Valjean informando que havia presenteado o homem com os apetrechos de prata.
A partir disto, o personagem principal transformou-se em outra pessoa, inclusive, mudou de nome e tornou-se um grande industrial na Alemanha.
Durante toda a trama, possui o medo de ser reconhecido e é perseguido pelo inspetor Javert, um homem fissurado pela justiça que tenta seguir a lei ao pé da letra.
Além disto, o livro aborda a vida de Fantine, uma linda moça que engravidou muito jovem e deu à luz a Cossette. Como precisava trabalhar, deixou a bebê aos cuidados dos Thenadièrs, uma família que judiava de Cossette, mesmo Fantine enviando mesada mensalmente.
Certo momento, Fantine é demitida, o que fez com que ela vendesse seus lindos cabelos, dentes e se prostituísse para ganhar dinheiro e enviar à família que estava com sua filha.
Valjean, portanto, ao descobrir o ocorrido, adotou Cossette. 
O livro traz uma série de episódios históricos, como as Rebeliões de 1832 e as Barricadas na rua.
            Do ponto de vista do Direito Penal, podemos averiguar o que é de fato um crime e o que é a pena. Embora existam conceitos analíticos, devemos pensar nas consequências da vida de um ex-presidiário, bem como de que forma ele irá ser inserido novamente na sociedade sem ser estigmatizado.
O livro traz uma reflexão de que nenhum crime pode ser analisado sem o seu contexto, eis que todo fato criminoso possui uma co-responsabilidade da sociedade. Surge a ideia de que a pena deverá ser justa, mas não poderá interferir na vida do homem.
            A obra abarca o pensamento de Rousseau, de que o homem, no seu íntimo é bom.
            Por fim, para Victor Hugo, a indignação é o princípio da virtude e se salvarão aqueles que ainda se indignam com as atitudes perante a sociedade.

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24/07/2019

Me indica uma série: Olhos que condenam




Por Giovanna Maciel e Alan José de Oliveira Teixeira


Cinco crianças negras. Antron McCray (Jovan Adepo), Kevin Richardson (Asante Blackk), Yusef Salaam (Ethan Herisse), Raymond Santana (Marquês Rodriguez) e Korey Wise (Jharrel Jerome). Cinco infâncias e juventudes perdidas. Cinco condenados pela Justiça que, em conluio com a sociedade do espetáculo e financiada pelos veículos de comunicação, sofreram as consequências de um crime que sequer cometeram. 

A minisérie original do Netflix traz a história dos “Cinco do Central Park”, uma história real, ocorrida em 1989 em Manhattan. Na mesma noite em que um grupo de amigos passeava no famoso parque estadunidense, Thisha Meili (Alexandra Templer), uma executiva branca, foi agredida e estuprada enquanto corria no mesmo local. A polícia logo prendeu o grupo de jovens, todos negros e com idade entre 14 e 16 anos, imputando a eles o crime, mesmo cientes que de os horários e locais em que se encontravam, tanto os jovens, quanto a corredora, não batiam.

Linda Fairstein (Felicity Huffman), então chefe da unidade de crimes sexuais do escritório do Procurador Distrital de Manhattan entre 1976 a 2002, ficou à frente do caso de estupro e, desde o primeiro momento, decidiu pela condenação dos adolescentes. Para isso, autorizou diversos abusos contra os meninos: tortura, interrogatórios de mais de 12 horas ininterruptas e sem a presença dos pais, coação, agressões... Como consequência, obtiveram um discurso orquestrado.

Os meninos, que sequer se conheciam, precisavam confessar o crime para supostamente irem para casa. Então, coagidos pelos investigadores, acabaram por colocar uns contra os outros. Com os depoimentos em mãos, os vídeos foram editados e cortados, fazendo com que apenas as falsas confissões ficassem em evidência, escondendo todas as violências praticadas pela polícia.

Coube à promotora Elizabeth Lederer condenar os garotos, mergulhando de cabeça na narrativa da construção da imagem violenta do homem negro, mesmo ciente da fragilidade das provas e das confissões claramente fabricadas. AntronKevinYusef, Raymond e Korey passaram de cinco jovens comuns para criminosos sexuais. A crueldade e o racismo de Nova York deixaram sequelas eternas na vida dos jovens.

Ao longo dos quatro episódios, vemos o drama dos meninos no injusto processo, e a consequente condenação, bem como o sofrimento deles e de suas famílias. Algumas mães perderam os empregos devido à prisão dos filhos, outras não tinham nem dinheiro para visitá-los na prisão.

Raymond, negro com ascendências latinas, passou quatro anos preso na prisão de menores infratores. Ao sair, além dos problemas com a nova esposa de seu pai, não conseguia emprego pela ficha suja. Acabou se envolvendo em tráfico de drogas e foi preso novamente.

Korey, o único que foi para a prisão de adultos, por já ter 16 anos na época dos fatos, permaneceu lá por 13 anos. Foi espancado, taxado de estuprador e chantageado por policiais. Preferiu ficar na solitária a ficar com os demais presos e passou a ter diversas alucinações. Só foi solto em 2002, quando Matias Reyes (Reece Noi), estuprador em série que cumpria pena de 40 anos, confessou a autoria do crime contra Trisha Meilli.

O tema tão delicado, foi tratado pela diretora Ava DuVernay com maestria. Faz chorar, faz doer na pele, faz refletir sobre a construção de uma sociedade na qual o negro não é bem-vindo. Mesmo 30 anos dessa injusta condenação, o racismo não deixou de ser evidente, muito menos exclusividade dos Estados Unidos.

No Brasil, a população carcerária é masculina, jovem e negra[i]. O dado alarmante é retratado por meio de diversos sensos, que durante anos vêm demonstrando que a população negra é a que mais sofre a negligência do sistema acusatório decadente e o racismo das autoridades públicas.

Como regra, as políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam contra a população negra e pobre. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos[ii]. Ainda, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em 2014, 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda[iii].

Informações recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatam que a população negra está mais exposta à violência no Brasil, representando 71% das vítimas de homicídio[iv].

Casos similares à história contada pela série Olhos Que Condenam - e tão tristes e revoltantes quanto - já ocorreram aqui. Em 2003, Heberson Lima de Oliveira foi preso acusado de estupro, sem provas, e contraiu AIDS ao ser violentado por 60 detentos, tendo sido absolvido após dois anos e sete meses atrás das grades[v].

Mais recentemente, a história de Leonardo Nascimento, jovem e negro, 26 anos, emocionou o Brasil e, novamente, escancarou a seletividade policial enfrentada pela população negra. O jovem passou uma semana preso acusado injustamente do assassinato de Matheus Lessa, que entrou na linha de tiro durante um assalto para salvar a vida da mãe.

Leonardo foi solto graças à determinação do pai[vi], que provou às autoridades com as imagens da câmera de segurança que seu filho estava próximo ao condomínio onde mora no momento da morte de Matheus.

Leonardo foi reconhecido por testemunhas apenas porque tem a pele escura como a do assaltante. Primeiro, houve o seu reconhecimento por meio de uma foto e, depois, na delegacia, ele foi colocado na frente das testemunhas e ao lado de outros dois homens de pele clara. Então, foi apontado como o criminoso[vii].

Em 2014, o Estado de Nova York pagou uma indenização de 42 milhões de dólares aos cinco jovens. Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos e que à época fez diversas declarações polêmicas e racistas, não se arrependeu do que disse e, ainda, qualificou o acordo de indenização como uma “vergonha”, advertindo que os meninos “não eram exatamente anjos”. Após 25 anos, tentaram indenizar o que dinheiro nenhum pode comprar: liberdade e dignidade. 

Enquanto isso, o Brasil continua se eximindo dos erros do judiciário. Continua acolhendo a imagem de um país receptivo e aberto a todos. Enquanto isso, homens, mulheres, meninos e meninas, negros, periféricos, continuam morrendo e sendo presos devido à um racismo nem um pouco mascarado.


[i] FALCÃO, Mércio; MUNIZ, Mariana. JOTA. População carcerária no Brasil é masculina, jovem e negra. 06 de agosto de 2018.  Disponível em: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/populacao-carceraria-do-brasil-e-masculina-jovem-e-negra-08122017>. 08 de dezembro de 2017.

[ii] CAMARA DOS DEPUTADOS. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão. 06 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>.

[iii] CAMARA DOS DEPUTADOS. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão. 06 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>.

[iv] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da violência 2017. 2017. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2017/>.

[v] R7. Repórter em Ação. Homem preso injustamente por estupro contrai AIDS na cadeia após ser violentado por 60 detentos. 23 de março de 2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/reporter-em-acao/videos/homem-preso-injustamente-por-estupro-contrai-aids-na-cadeia-apos-ser-violentado-por-60-detentos-21022018>.

[vi] GELEDÉS. Leonardo Nascimento preso por engano é solto no Rio. 24 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/leonardo-nascimento-preso-por-engano-e-solto-no-rio/>.

[vii] COELHO, Henrique. G1. Polícia assume erro, e rapaz preso injustamente por matar jovem em mercado no Rio será solto. 23 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/01/23/inocente-homem-apontado-como-assassino-de-rapaz-em-mercado-no-rio-e-solto.ghtml>.
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22/07/2019

Me indica um livro: No seu pescoço – Chimamanda Ngozi Adichie








            Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nascida em Enugu, na Nigéria, e escreveu romances como Hibisco Roxo (2003), Americanah (2013) e o premiado Meio Sol Amarelo (2006), este último, uma tocante narrativa sobre a Guerra do Biafra. Dentre suas obras, cabe destacar um ensaio adaptado de uma conferência TED, de nome Todos devemos ser feministas, que além de fundamental a todos que anseiam por uma sociedade justa e feliz, traz uma marca presente a literatura de Adichie, o feminismo. Sua escrita permite ao leitor acessar contextos diversos através de envolventes delineações de gestos, memórias e vivências, que tornam a identificação, ou mesmo a empatia, com as personagens e a narrativa em si, inevitáveis.
Adichie traz em suas obras uma reflexão constante sobre o exercício da alteridade em relações que trabalham questões migratórias, de gênero, de identidade e de raça em ambientações sensíveis e precisas que as contextualizam. A alteridade é basilar, não apenas à autora nigeriana que a utiliza como um meio de embate e identificação em suas obras, mas também à Antropologia, sendo trabalhada logo de início nas aulas da disciplina propedêutica, do curso de Direito do UNICURITIBA. Com o texto de François Laplantine[1], minha querida professora, Karla Pinhel Ribeiro, iniciou a turma ao estudo do ser humano em sua diversidade. O professor de etnologia francês, em seu texto, pontuou que a descoberta da alteridade foi elementar à revolução epistemológica da abordagem antropológica. Nas palavras do antropólogo:

Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a ideia de que existe um “centro do mundo”, e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutação de si. (...) A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade, correlativamente deixar de rejeitar o presumido “selvagem” fora de nós mesmos. Confrontados à multiplicidade, a priori enigmática, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalização do social.[2]

Logo, como podemos perceber através da afirmação de Laplantine, a alteridade corresponde a uma relação com o outro, que amplia nosso conhecimento sobre o que nos era desconhecido e sobre nós mesmos. Ou seja, o exercício da alteridade nos promove autoconhecimento enquanto humanidade. E, é neste ponto que a obras ficcionais de Adichie nos toca de forma tão marcante. Ela promove imersões antropológicas à cultura africana que molda suas personagens e, estas, nos são apresentadas em suas relações, perspectivas e vivências. As narrativas possuem uma forte identidade marcada por um olhar particular, o de uma autora mulher nigeriana negra, que nos revela realidades tão distintas e sentimentos tão afins.
A leitura que recomendamos é a obra No seu pescoço[3], que contém doze contos de Adichie e, como a própria apresentação do exemplar descreve, trata-se de uma obra que “explora a colisão entre duas culturas e as consequências deste encontro para a alma humana”. A autora ao retratar situações de instabilidades políticas e conflitos armados, trabalhando os atritos e inquietações que cercam temas como migração e gênero, em ambientes domésticos, acadêmicos e sociais, promove reflexões importantes sobre a alteridade e sobre a mulher. Seus contos nos fazem ponderar sobre quem somos nós diante do outro, diante das situações que se apresentam, e diante de nós próprios.
É uma obra que pode ser lida na ordem que prouver ao leitor, pois cada conto apresenta personagens e situações distintas que, como já mencionado, trazem a alteridade como fio condutor através do olhar feminino sobre as relações e situações narradas. Com linguagem acessível, a leitura torna-se rápida, mas ao final de cada conto exige-nos um respiro para reflexões existenciais, sociais e culturais.
O primeiro conto do livro, A cela um, apresenta-nos a história de um jovem rapaz, Nnamabia. É um conto impactante que retrata o contato de Nnamabia com a violência, desde pequenas contravenções da infância à violência do Estado dentro do sistema carcerário. E, o ponto forte da narrativa reside no fato dele ser contado pela perspectiva da irmã de Nnamabia.
O conto seguinte, trabalhado em terceira pessoa, de título Réplica, apresenta a vida de Nkem uma mulher nigeriana casada com Obiora, descrito como um homem nigeriano rico. Ela mora nos Estados Unidos com seus filhos, enquanto seu marido morava nos dois países, Nigéria e Estados Unidos, devido aos negócios. O conto traz os anseios e aflições de Nkem em sua adaptação a um novo país, as imposições culturais implícitas em ser uma mulher nigeriana casada e a construção de sua identidade. O penúltimo conto do livro traça um paralelo com Réplica, de nome Os casamenteiros, traz a história de Chinaza Agatha Okafor, narrada em primeira pessoa. Ela, também nigeriana, casa-se com Ofodile Emeka Udenwa, que prefere ser chamado por seu nome americano, Dave. Nesta história o eixo central reside na assimilação e indignação de Chinaza deste novo contexto cultural que lhe é imposto e ao mesmo tempo idolatrado por seu marido.
Uma experiência privada, é o terceiro conto da obra (provavelmente o meu conto favorito de Adichie), relata o encontro de Chika, uma jovem igbo de família cristã estudante de medicina, e “a mulher”, uma feirante mulçumana que vende cebolas. Ambas se refugiam em uma pequena loja abandona utilizada por elas como abrigo improvisado durante um conflito armado, na cidade de Kano. É uma narrativa extremamente sensível em que, o encontro entre duas pessoas tão diametralmente opostas em crença, cor e classe, numa situação de medo e instabilidade encontram-se espelhadas, em anseios e sentimentos.
O conto Jumping Monkey Hill, é especial aos aspirantes a escritores, e principalmente às feministas, pois o ambiente da narrativa se dá nos arredores da Cidade do Cabo, em que ocorre um Workshop para Escritores Africanos. A personagem principal é a escritora Ujunwa Ogundu, de Lagos, Nigéria, e o conto relata o encontro destes escritores, trata de violência de gênero e o processo criativo de Ujunwa.
O conto que leva o título do livro é inebriante, de início No seu pescoço coloca o leitor como personagem principal da história, refere-se a personagem como “você”, e em duas páginas a identificação torna-se inevitavelmente angustiante. Se você, mulher, já foi estereotipada, ou diminuída, ou violada por causa da sua cor, ou por ser mulher, se você vê a realidade desigual que a cerca, se já se sentiu invisível, se sua angústia envolveu o seu pescoço quase deixando-a sem ar, então este é um conto de Adichie que você não pode deixar de ler.
Estes são alguns dos contos que mais me impactaram nestas férias, mas os doze contos de Adichie merecem a sua atenção e reflexão. E, leitoras e leitores, espero que o contato com obras como a de Adchie promova o exercício precioso da alteridade que nos faz questionar o lugar que ocupamos no mundo, e o próprio meio que nos cerca.
Uma boa leitura a todxs!


[1] LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.
[2] LAPLANTINE, 1998, p. 22-23.
[3] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. No seu pescoço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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19/07/2019

Me indica uma série: ‘Bandidos na TV’ e o embate entre crime e perseguição política


Foto: Divulgação - Netflix




O embate entre o envolvimento em crimes e a suposta perseguição política parece sempre acompanhar ocupantes de cargos públicos no Brasil. A Operação Lava Jato é o exemplo mais grandioso disso, já que envolve deputados, governadores e até mesmo ex-presidentes da República.

Na série ‘Bandidos na TV’ acompanhamos um caso ocorrido na cidade de Manaus, capital do Amazonas. Proporcionalmente menor em número de envolvidos e de mídia envolvida, o caso retratado, porém, é um dos mais macabros da história recente do Brasil.

Ao longo dos sete episódios, passamos a acompanhar os últimos anos de Wallace Souza, apresentador do programa de TV de maior audiência do Amazonas no começo dos anos 2000: o Canal Livre. Policialesco, daqueles que fazem sucesso por todo o país, o programa tinha um diferencial para se destacar entre os concorrentes: chegar sempre primeiro aos locais de crime em Manaus. 

Com a bandeira de denunciar a criminalidade e ajudar a polícia em prisões, Wallace ganha popularidade, principalmente nas camadas mais pobres de Manaus. Com isso, ele ganha uma cadeira de representante do povo na Assembleia Legislativa. (Ele seria reeleito mais duas vezes, com recordes de votações).

Em 2008, porém, o que parecia ser uma jornada de popularidade e subida ao poder, desmorona.
Denúncias passam a acusar Wallace de comandar o crime organizado de Manaus e o motivo não poderia ser menos brutal: a busca constante pelo topo da audiência de seu programa de TV.

Com esse ponto de partida, a série da Netflix passa a nos dar um panorama de como tudo ocorria em Manaus na época. Com depoimentos fortes de membros da força-tarefa que investigou o deputado, de supostos criminosos e também de familiares, somos levados a uma dúvida: mas será?

Wallace Souza foi acusado por tráfico de drogas, associação criminosa e mais de uma dezena de homicídios. O filho dele, Raphael, é outro personagem importante da história, já que teria envolvimento direto com os crimes com resultado morte. A série, porém, nos dá certa liberdade de formar uma opinião e, talvez, esse seja seu maior mérito.

Com questionamentos em torno do trabalho policial, somos levados a questionar métodos comprovadamente falhos: como o uso da tortura para confissões. Os episódios também nos dão motivos de sobra para duvidar de testemunhas. Sejam de defesa, sejam de acusação.

A história contada também nos remete a palavras constantes no noticiário brasileiro: força-tarefa, delação, perseguição política...sendo justamente isso que nos dá aproximação e faz querer buscar entender algumas relações de poder no país, onde o crime parece fazer parte do todo.

‘Bandidos na TV’ é uma série que merece a atenção do estudante de direito, já que mostra a importância de muitas vezes evitar a espetacularização do trabalho executado, uma vez que isso pode levar a todos a interpretações confusas do que está sendo analisado. 

É uma série que merece atenção e está disponível no catálogo da Netflix.
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15/07/2019

Me indica um livro: “Uma Criança no Inferno”, de David Pelzer

A indicação de hoje é um tanto perturbadora, mas, ao mesmo tempo necessária. O livro “Uma Criança no Inferno”, de David Pelzer, trata de um tema pesado, triste, porém extremamente importante para refletir. Antes de seguir com a resenha, já deixo um aviso: é preciso ter estômago para concluir a leitura. Como já enunciado na própria capa do livro, os episódios de violência acontecem onde não deveriam: dentro da própria casa, pela própria mãe.
Trata-se de uma história autobiográfica, na qual o autor relata os maus tratos que sofreu enquanto criança. Em primeira pessoa e no ponto de vista de uma criança, Dave conta os inúmeros episódios de violência psicológica e física que sofreu desde os seus 4 anos.
O que, a princípio, era uma família comum e feliz, aos poucos foi se tornando um verdadeiro pesadelo para Dave, que viu sua mãe Catherine Roerva se tornar uma pessoa agressiva com ele, e seu pai, além de alcóolatra, omisso. De um dia para o outro, Catherine passou agir de forma agressiva com o Dave, tratando-o diferente dos outros filhos do casal e aplicando duros castigos a ele. Com o passar do tempo, as punições se agravaram para fortes violências físicas e abusos psicológicos. Incansavelmente, a mãe repetia a Dave que ele era um menino mau e que merecia tudo aquilo, fazendo uma “lavagem cerebral” não só nele, mas em seus irmãos também, afastando-os do convívio com o narrador.
Como se não bastasse, o menino passou a sofrer discriminação na própria escola, por parte dos colegas. Por ser impedido de comer em casa, Dave passou a furtar o lanche dos colegas, que não ficaram nem um pouco felizes. Além disso, ele era impedido de tomar banho e de lavar suas roupas e, por isso, constantemente ia à aula com mau cheiro. Ainda que professores e a coordenação tenham percebido esses detalhes, não foi o suficiente para ajudar o menor, visto que Catherine negava toda a situação, dificultando a solução do problema.
A realidade é que sua mãe estava em um surto de loucura, seu pai se afundou nas bebidas para “fugir” dessa realidade e seus irmãos, por serem crianças, achavam que tudo aquilo era normal.
De fato, embora a leitura seja relativamente rápida (132 páginas), não é uma leitura fácil, devido aos inúmeros relatos de violência. A cada página o desespero aumenta, a vontade de ajudar o menino é imensa, principalmente quando nos damos conta de que tudo isso se tratou de uma história real. Por isso digo que é um livro reflexivo. Ao ler os relatos, me perguntei inúmeras vezes o porquê disso tudo, o motivo da violência, a discriminação com apenas um dos filhos e o que mudou na mãe, que passou de uma pessoa atenciosa e carinhosa, para um verdadeiro “monstro”. Também, me questionei o motivo de o pai ser tão omisso, de não ter efetivamente ajudado o filho, assim como os demais parentes.
Mas a verdade é que não há um motivo. Não há uma explicação para a violência, ela simplesmente está ali e deve ser combatida. Embora seja uma leitura pesada e dolorida, é importante para nos fazer observar as pessoas ao nosso redor, as sutilidades de quem sofre qualquer forma de violência e a ter mais compaixão pelo próximo. Ninguém sabia o que acontecia dentro da casa de Dave, e ele sofria um duplo desprezo: por sua mãe, e por seus colegas, que não eram capazes de entender pelo o que ele estava passando.
Quantas pessoas poderiam ser salvas se nós nos atentássemos um pouco mais aos detalhes das vítimas, caladas por seus agressores? A palavra chave é EMPATIA. Tentar observar e entender as peculiaridades das outras pessoas antes de julgá-las e discriminá-las. As más vestimentas de Dave, seu mau cheiro e excessiva fome, carregavam um histórico de extrema violência, potencializada pela falta de empatia de seus colegas (que, embora também fossem crianças, deveriam ser instruídos pelos pais a serem mais “humanos”).


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