Por Nicoly Schuster.
O meio ambiente
ecologicamente equilibrado é direito fundamental de terceira dimensão, fazendo
parte dos direitos coletivos aos quais todas as pessoas tem interesse em ver
resguardado. A doutrina e jurisprudência brasileiras comumente atrelam o
direito ao meio ambiente à dignidade da pessoa humana, de modo que uma
existência digna necessariamente depende da manutenção de condições ambientais
sadias.
A dignidade humana se aproxima do conceito de cidadania, na medida em que não seria possível o exercício pleno da cidadania (entendida como uma vida digna em sociedade, não apenas no sentido de participação política) sem que um mínimo existencial seja assegurado[1]. Segundo Cichelero, Nodari e Calgaro:
Afinal, se um sujeito vive abaixo de um certo nível de bem-estar material e social (e acrescenta-se aqui, ambiental), ele simplesmente não pode participar da sociedade como cidadão, e muito menos como cidadão igual aos outros que detêm essas condições. Diante disso, Rawls reconhece como elemento constitucional essencial a existência de um mínimo social que supra as necessidades básicas de todos os cidadãos. Isso porque seria inócuo falar em igualdade de oportunidades e desigualdades vantajosas para os indivíduos marginalizados se eles não possuíssem sequer o básico para as suas vidas.[2]
Dessa forma, o
desenvolvimento social em torno de garantias à dignidade humana cristaliza um
patrimônio político-jurídico insuscetível de redução, pautando-se no princípio
da vedação ao retrocesso, consagrado no texto constitucional pátrio, dada a
necessidade de uma estabilidade mínima para que seja possível a garantia e
exercício dos direitos fundamentais[3].
Nessa linha, em virtude da inerência entre a preservação ao meio ambiente e a dignidade humana, as correntes ambientalistas revelam ser necessária a existência de um mínimo socioambiental, de modo que medidas inferiores a esse patamar não sejam toleradas. Conforme consignam Sarlet e Fensterseifer:
[...] o recuo de um direito não pode ir aquém de certo nível, sem que esse direito seja desnaturado. Isso diz respeito tanto aos direitos substanciais como aos direitos procedimentais. Deve-se, assim, considerar que, na seara ambiental, existe um nível de obrigações jurídicas fundamentais de proteção, abaixo do qual toda medida nova deveria ser vista como violando o direito ao ambiente’.[4]
Neste ano
(2020), a questão ambiental ficou sob os holofotes da mídia, com destaque aos
retrocessos e à inércia do Poder Executivo em matéria de proteção ambiental. O
mais triste episódio, de longe, foram os incêndios no pantanal, tragédia a qual
não foi dada uma resposta efetiva e imediata por parte do governo federal. Para
piorar, o Ministério do Meio Ambiente tivera um corte no orçamento de combate a
incêndios florestais, justamente durante o período de secas na região amazônica
e pantaneira[5].
A isso, somam-se
as empreitadas do próprio ministro do meio ambiente (que deveria ser guardião
do equilíbrio ambiental) que ao menos por duas vezes nesse ano reduziu as
normas de proteção ambiental. A mais recente medida ministerial foi a
autorização, durante o período de defeso, da pesca com finalidade econômica em
Fernando de Noronha, decisão que foi inclusive criticada pelo secretário de
Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, José Antônio Bertotti Júnior[6].
Outra providência tomada pelo Ministério do Meio Ambiente foi a alteração das normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), a partir da edição da Resolução 500/2020 que reduziu a proteção à áreas de mangues e restingas. Essa investida contra o meio ambiente foi levada ao Poder Judiciário por partidos políticos, através da propositura das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 747, 748 e 749, que pediram a suspensão da referida resolução. Os argumentos deduzidos pelos partidos foram acolhidos pela ministra Rosa Weber, que determinou liminarmente a suspensão da medida, destacando que
Na seara do
direito ambiental, o respeito ao rule of law assume uma dimensão substantiva
que se impõe como limite objetivo às medidas de natureza legislativa,
administrativa ou judicial que se revelem contrárias aos interesses da proteção
ambiental, dada a particular suscetibilidade dos bens jurídicos por ele
tutelados aos efeitos potencialmente deletérios de flutuações normativas. (...)
Nesse contexto, embora não caiba ao Poder Judiciário se substituir à avaliação efetuada pelo Administrador relativamente ao mérito das políticas ambientais por ele desenvolvidas, insere-se no escopo de atuação dos Tribunais, por outro lado, forte no art. 5º, XXXV, da CF, assegurar a adequada observância dos parâmetros objetivos impostos pela Constituição, bem como preservar a integridade do marco regulatório ambiental. [7]
O voto da
ministra bem revela o posicionamento incisivo adotado pelo Supremo Tribunal
Federal quando se trata de violações ao meio ambiente provocadas por atos do
Executivo e do Legislativo. Tomemos como exemplo o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4901, uma das quatro ações ajuizadas contra o Código
Florestal (Lei nº 12.651/2012). Na decisão, são levantados importantes
princípios atinentes à preservação ambiental, dentre os quais se destaca o da
vedação à proteção insuficiente e o da proibição ao retrocesso.
Na referida ADI,
exprimiu o ministro Celso de Mello que o poder público tem o encargo de
“impedir, de um lado, a degradação ambiental e, de outro, de não transgredir o
postulado que veda a proteção deficiente ou insuficiente, sob pena de
intervenção do Poder Judiciário”[8]. O
Estado, portanto, deve respeitar o princípio da proporcionalidade, que
compreende de um lado a proibição do excesso (não deve impor medidas
excessivamente restritivas) e noutra ponta a vedação à proteção insuficiente
(devendo assegurar efetiva proteção ao meio ambiente).
Além disso, deve
observar o princípio da vedação ao retrocesso, atuando de maneira ativa na
manutenção de políticas efetivas de preservação ambiental, sem que a legislação
sofra alterações para impor piores condições de proteção. Nessa esteira, aduziu
a ministra Cármen Lúcia à doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago
Fensterseifer, para os quais os atos emanados do poder público precisam passar
por rigoroso controle de constitucionalidade a fim de que se avalie a sua
proporcionalidade e a observância ao núcleo dos direitos socioambientais. Para
os autores, destaca ela, a vedação ao retrocesso não implica no engessamento da
atividade legislativa e administrativa, mas impõe limites às medidas
restritivas em matéria de direitos ecológicos.[9]
A ministra ainda
destacou que o Estado tem o dever de garantir a efetividade da proteção ao meio
ambiente vez que “os direitos fundamentais revestem-se de inegável força
vinculante a eles atribuída pela própria Constituição, a cuja autoridade
incontestável acham-se submetidos todos os poderes que pluralizam no âmbito de
nossa organização política”.[10]
Assim, tomada a dignidade humana como núcleo axiológico das constituições
democráticas modernas e considerando que o meio ambiente ecologicamente
equilibrado é intrínseco à dignidade humana, tem-se que o Estado, em todas as
suas frentes, tem o encargo de intervir para garantir-lhe a proteção. Dessa
maneira, a responsabilidade pela proteção ambiental recai sobre todos os entes
da federação (art. 23, VI, CF) e sobre todas as esferas de poder.
O Poder
Judiciário teria, então, a prerrogativa de fazer valer o mandamento
constitucional de proteção ambiental, caso o Poder Público deixe de fazê-lo, o
faça de maneira insuficiente ou ainda o viole de maneira ativa, por meio de
quaisquer atos capazes de precarizar as proteções ambientais levando-as abaixo
desse nível mínimo de obrigações jurídicas de proteção.
A filosofia
política de John Rawls pode contribuir para elucidar o raciocínio sobre a
preservação de recursos naturais, no que tange o desenvolvimento social ao
longo do tempo. Levando em conta que uma sociedade deve se organizar não apenas
com vistas ao momento presente, o autor elabora o princípio da poupança justa,
que serve para preservar e limitar o uso de recursos, considerando as gerações
vindouras[11].
Lumertz e
Vieira, ao interpretar o princípio apresentado pelo filósofo, exprimem que as
gerações atuais devem preservar o que foi adquirido e, ao mesmo tempo, poupar
os recursos para que as gerações futuras possam deles usufruir[12].
Segundo os autores, essa noção de poupança pode facilmente se aplicar à
preservação do meio ambiente, de maneira que os recursos dele provenientes
devem ser (em sua maior parcela) preservados para as gerações futuras, antes de
serem explorados pela geração contemporânea.
Levando em conta
a teoria de justiça de Rawls, o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (enquanto direito fundamental) deveria ser previsto na Constituição
e efetivado a partir das políticas protetivas elaboradas pelo Poder
Legislativo. Entretanto, o cenário é distinto quando se tem, na realidade
mal-ordenada brasileira, instituições do próprio poder público que
propositalmente violam o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado
e sadio. Nesse contexto, deve-se apontar para a necessidade de ser garantida a
vedação ao retrocesso na questão ambiental, devendo o judiciário intervir em
todo e qualquer ato do poder público que coloque a proteção ambiental abaixo do
mínimo necessário para que os cidadãos vivam com dignidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário