Por Giovanna Maciel e Alan José de Oliveira Teixeira
Cinco crianças negras. Antron McCray (Jovan Adepo), Kevin Richardson (Asante
Blackk), Yusef Salaam (Ethan Herisse), Raymond
Santana (Marquês Rodriguez) e Korey Wise (Jharrel
Jerome). Cinco infâncias e juventudes perdidas. Cinco condenados pela Justiça
que, em conluio com a sociedade do espetáculo e financiada pelos veículos de
comunicação, sofreram as consequências de um crime que sequer cometeram.
A minisérie original
do Netflix traz a história dos “Cinco do Central Park”, uma história real,
ocorrida em 1989 em Manhattan. Na mesma noite em que um grupo de amigos
passeava no famoso parque estadunidense, Thisha Meili (Alexandra Templer), uma
executiva branca, foi agredida e estuprada enquanto corria no mesmo local. A
polícia logo prendeu o grupo de jovens, todos negros e com idade entre 14 e 16
anos, imputando a eles o crime, mesmo cientes que de os horários e locais em
que se encontravam, tanto os jovens, quanto a corredora, não batiam.
Linda Fairstein (Felicity Huffman), então chefe da unidade
de crimes sexuais do escritório do Procurador Distrital de Manhattan entre 1976
a 2002, ficou à frente do caso de estupro e, desde o primeiro momento, decidiu
pela condenação dos adolescentes. Para isso, autorizou diversos abusos contra
os meninos: tortura, interrogatórios de mais de 12 horas ininterruptas e sem a
presença dos pais, coação, agressões... Como consequência, obtiveram um
discurso orquestrado.
Os meninos, que sequer se conheciam, precisavam confessar o crime para
supostamente irem para casa. Então, coagidos pelos investigadores, acabaram por
colocar uns contra os outros. Com os depoimentos em mãos, os vídeos foram
editados e cortados, fazendo com que apenas as falsas confissões ficassem em
evidência, escondendo todas as violências praticadas pela polícia.
Coube à promotora Elizabeth Lederer condenar os garotos,
mergulhando de cabeça na narrativa da construção da imagem violenta do homem
negro, mesmo ciente da fragilidade das provas e das confissões claramente
fabricadas. Antron, Kevin, Yusef, Raymond e Korey passaram de cinco jovens
comuns para criminosos sexuais. A crueldade e o racismo de Nova
York deixaram sequelas eternas na vida dos jovens.
Ao longo dos quatro
episódios, vemos o drama dos meninos no injusto processo, e a consequente
condenação, bem como o sofrimento deles e de suas famílias. Algumas mães
perderam os empregos devido à prisão dos filhos, outras não tinham nem dinheiro
para visitá-los na prisão.
Raymond, negro com ascendências
latinas, passou quatro anos preso na prisão de menores infratores. Ao sair,
além dos problemas com a nova esposa de seu pai, não conseguia emprego pela
ficha suja. Acabou se envolvendo em tráfico de drogas e foi preso novamente.
Korey, o único que
foi para a prisão de adultos, por já ter 16 anos na época dos fatos, permaneceu
lá por 13 anos. Foi espancado, taxado de estuprador e chantageado por
policiais. Preferiu ficar na solitária a ficar com os demais presos e passou a
ter diversas alucinações. Só foi solto em 2002, quando Matias Reyes (Reece Noi), estuprador em série que cumpria pena de
40 anos, confessou a autoria do crime contra Trisha Meilli.
O tema tão delicado,
foi tratado pela diretora Ava DuVernay com maestria. Faz chorar, faz doer na pele,
faz refletir sobre a construção de uma sociedade na qual o negro não é
bem-vindo. Mesmo 30 anos dessa injusta condenação, o racismo não deixou de ser
evidente, muito menos exclusividade dos Estados Unidos.
No Brasil, a população carcerária é masculina, jovem e negra[i]. O dado alarmante é
retratado por meio de diversos sensos, que durante anos vêm demonstrando que a
população negra é a que mais sofre a negligência do sistema acusatório
decadente e o racismo das autoridades públicas.
Como regra, as políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam
contra a população negra e pobre. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos[ii]. Ainda, segundo o
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em 2014, 75% dos encarcerados têm
até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda[iii].
Informações recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatam
que a população negra está mais exposta à violência no Brasil, representando
71% das vítimas de homicídio[iv].
Casos similares à história contada pela série Olhos Que Condenam - e
tão tristes e revoltantes quanto - já ocorreram aqui. Em 2003, Heberson Lima de
Oliveira foi preso acusado de estupro, sem provas, e contraiu AIDS ao ser
violentado por 60 detentos, tendo sido absolvido após dois anos e sete meses
atrás das grades[v].
Mais recentemente, a história de Leonardo Nascimento, jovem e negro, 26
anos, emocionou o Brasil e, novamente, escancarou a seletividade policial
enfrentada pela população negra. O jovem passou uma semana preso acusado
injustamente do assassinato de Matheus Lessa, que entrou na linha de tiro
durante um assalto para salvar a vida da mãe.
Leonardo foi solto graças à determinação do pai[vi], que provou às autoridades
com as imagens da câmera de segurança que seu filho estava próximo ao
condomínio onde mora no momento da morte de Matheus.
Leonardo foi reconhecido por testemunhas apenas porque tem a pele escura
como a do assaltante. Primeiro, houve o seu reconhecimento por meio de uma foto
e, depois, na delegacia, ele foi colocado na frente das testemunhas e ao lado
de outros dois homens de pele clara. Então, foi apontado como o criminoso[vii].
Em 2014, o Estado de Nova York pagou uma indenização
de 42 milhões de dólares aos cinco jovens. Donald Trump, atual presidente dos
Estados Unidos e que à época fez diversas declarações polêmicas e racistas, não
se arrependeu do que disse e, ainda, qualificou o acordo de indenização como
uma “vergonha”, advertindo que os meninos “não eram exatamente anjos”. Após 25
anos, tentaram indenizar o que dinheiro nenhum pode comprar: liberdade e
dignidade.
Enquanto isso, o Brasil continua se eximindo dos erros
do judiciário. Continua acolhendo a imagem de um país receptivo e aberto a
todos. Enquanto isso, homens, mulheres, meninos e meninas, negros, periféricos,
continuam morrendo e sendo presos devido à um racismo nem um pouco mascarado.
[i]
FALCÃO, Mércio; MUNIZ, Mariana. JOTA. População carcerária no Brasil é
masculina, jovem e negra. 06 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/populacao-carceraria-do-brasil-e-masculina-jovem-e-negra-08122017>.
08 de dezembro de 2017.
[ii]
CAMARA DOS DEPUTADOS. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na
prisão. 06 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>.
[iii]
CAMARA DOS DEPUTADOS. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão.
06 de agosto de 2018. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>.
[iv]
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da violência 2017. 2017.
Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2017/>.
[v]
R7. Repórter em Ação. Homem preso injustamente por estupro contrai AIDS na
cadeia após ser violentado por 60 detentos. 23 de março de 2017. Disponível
em: <https://noticias.r7.com/reporter-em-acao/videos/homem-preso-injustamente-por-estupro-contrai-aids-na-cadeia-apos-ser-violentado-por-60-detentos-21022018>.
[vi]
GELEDÉS. Leonardo Nascimento preso por engano é solto no Rio. 24 de
janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/leonardo-nascimento-preso-por-engano-e-solto-no-rio/>.
[vii]
COELHO, Henrique. G1. Polícia assume erro, e rapaz preso injustamente por
matar jovem em mercado no Rio será solto. 23 de janeiro de 2019. Disponível
em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/01/23/inocente-homem-apontado-como-assassino-de-rapaz-em-mercado-no-rio-e-solto.ghtml>.
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