Por Heloisa Payão Bregano e Matheus Henrique Alencar¹
1. Animais de Direito e a luta pelo Direito dos Animais
A fim de que se compreenda o ponto do desenvolvimento em que estamos, é imprescindível compreender a gênese da questão ética envolvendo a relação do animal humano com os demais animais não humanos. E para que isso seja possível é necessário fazer um movimento de regresso à própria criação do homem enquanto tal.
Tomando como ponto de referência as religiões cristãs que seguem a tradição judaico-cristã, a questão da existência ou não do direito dos animais a uma vida digna é irrelevante:
Deus disse: "Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie." E assim se fez.
Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie, os animais domésticos igualmente, e da mesma forma todos os animais, que se arrastam sobre a terra. E Deus viu que isso era bom.
Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra."
Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.
Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." (Gênesis 1:24-28)
Entende-se que por ser a pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus teria uma natureza espiritual que o diferenciaria dos animais não humanos e possibilitaria o domínio sobre eles. Oportuno destacar que o mesmo livro sagrado em outra passagem esclarece que:
Disse eu no meu coração, quanto a condição dos filhos dos homens, que Deus os provaria, para que assim pudessem ver que são em si mesmos como os animais.
Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro; e todos têm o mesmo fôlego, e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade.
Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó. (Eclesiastes 3:18-20)
Avançando alguns poucos séculos, quando se pensa na relação dos Romanos com os animais não humanos é forçoso lembrar dos festivais do Coliseu, o que para nós poderia ser considerado uma atrocidade; era comum na época. Homens eram forçados a literalmente lutar pelas suas vidas, sendo acorrentados à ursos, elefantes, tigres e outras diversidade de espécies.
Como menciona Peter Singer, em sua obra a Libertação animal: “O cristianismo trouxe ao mundo romano a ideia da singularidade da espécie humana que herdou da tradição judaica, mas na qual insistia com grande ênfase em razão da importância que conferia à alma imortal do ser humano” (SINGER, 2010, p. 277).
O que se tenta demonstrar é que o tratamento dispensado pelos humanos aos animais, embora possamos comemorar algumas conquistas, ainda não foi fundamentalmente alterado. Os animais não humanos são tratados como coisas sobre a qual recai a propriedade. São explorados na produção de peles a ser implementadas em roupas, na prática de experimentação científica, nas atividades de entretenimento, no transporte de cargas pesadas, entre outros.
Os fundamentos éticos que estruturam a relação do ser humano com os animais não humanos deve ser revista como bem aborda o filósofo Tom Regan e que será apresentado no próximo capítulo.
2. A Ética por trás do Movimento Animalista
Não é difícil encontrar hodiernamente pessoas que condenam a crueldade contra os animais. Até parece que essa é uma questão superada, pois os animais têm proteção constitucional e legal e que somente monstros seriam capazes de maltratar um cachorro ou um gato.. Mas existem outras formas de crueldade além da crueldade contra gatos e cachorros. A grande maioria dos animais de produção tem uma vida de sofrimento e morte prematura.
Segundo Tom Regan, filósofo animalista:
As pessoas devem mudar suas crenças antes de mudar seus hábitos. Um número suficiente de pessoas, especialmente aquelas eleitas para os cargos públicos, devem acreditar na mudança - devem querê-la - antes de promulgarmos leis que protejam os direitos dos animais. (REGAN, 2013, p. 21 e 22)
Para que se chegue a conclusão proposta, abordaremos o utilitarismo de Jeremy Bentham. Resumidamente Bentham propôs que se escolhesse pelo menor sofrimento e maior prazer. É interessante ressaltar que certos princípios deveriam ser levados em consideração, sendo eles o princípio da igualdade e da utilidade em sentido estrito.
Segundo Regan (2013, p. 28), o primeiro princípio é aquele pelo qual o interesse de todos é válido e o segundo é a ação da melhor forma, gerando equilíbrio entre satisfação e frustração de todos os envolvidos.
Veja-se, ainda que se atue da maneira que trará um resultado satisfatório à maioria dos envolvidos na situação, encontram-se dilemas. É uma questão problemática para uma ética que trata sobre a vida, a possibilidade de que os fins venham a justificar os meios, ainda que a causa seja justa e o fim a ser alcançado seja bom, as atitudes que levaram à ela podem não ser corretas.
É nesse sentido que Regan conclui ser essencial que se aborde a ética a partir da visão dos Direitos. Para que tenhamos uma conclusão adequada deve-se adotar a falta de valor inerente dos indivíduos, como ocorre no utilitarismo. De acordo com Regan (2013, p. 32), “Meu valor como indivíduo não depende de minha utilidade para você. O seu valor não depende de sua utilidade para mim", porém, é nesse ponto que a visão dos direitos ganha importância, ao não permitir quaisquer formas de discriminação.
3. Aplicando a Teoria na Prática, Animais em juízo
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi um grande marco no que tange os direitos dos animais. Pelo art. 225, § 1º, inciso VII, parte final, estabeleceu que é incumbência do Poder Público a proteção da fauna e da flora, vedando, na forma da lei, práticas que possam colocar em risco a função ecológica, possam gerar a extinção de espécies ou submetam animais em situações cruéis.
A doutrina do Direito Animal tem se expandido, sendo tópico de diversos livros e publicações especializadas, além de estar cada vez mais presente nas faculdades de direito (ATAIDE JUNIOR, 2018, p. 49). Ainda conforme Ataide Junior (2018, p. 50), o tema animais como sujeitos, ainda desperta curiosidade e espanto, porém o discurso jurídico animalista tem se propagado constantemente.
Visando as mudanças nos direitos dos animais e a constante judicialização desses direitos, surge o Projeto de Lei n.º 145/21, de autoria do Deputado Federal Eduardo Costa (PTB-PA), que visa possibilitar aos animais não humanos, individualmente, ser parte em processos judiciais. A representação legal dos animais seria feita pelo Ministério Público, Defensoria Pública, por associações de proteção ou até mesmo por quem tiver sua tutela ou guarda. Sendo assim, alteraria o Código de Processo Civil, pelo qual define em seu art. 70: “toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo.”
O texto do referido projeto de lei usa como precedente, no plano federal, o PL n.º 6.054/2019 (anterior PL n.º 6.799/2013), pelo qual se estabelece no caput do seu Art. 3º: “Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa.” Ressalta-se que o PL n.º 6.054/2019 já foi aprovado em ambas as Casas do Congresso Nacional, embora tenha sido emendado no Senado Federal, reduzindo o âmbito de aplicação da norma legal, restringindo-se somente aos cães e gatos.
4. Considerações Finais
A relação ética dos seres humanos com os animais passou por grandes transformações no decorrer dos séculos. Ao longo das últimas décadas, os animais não humanos, em especial os domésticos, foram sendo cada vez mais adaptados à realidade das pessoas. Diante de todas essas transformações, o direito não poderia deixar de acompanhar as mudanças demandadas pela sociedade. No Brasil, é possível destacar a Constituição da República, que veda a submissão dos animais a situações de crueldade. O Projeto de Lei n.º 145/21 abordado nesse artigo, é um grande exemplo da manifestação da necessidade de uma legislação menos genérica e mais eficaz no que diz respeito aos direitos dos animais.
As demandas judiciais, em sua grande maioria, focam nos animais domésticos, exóticos e silvestres. Infelizmente, esse número é bem menos expressivo quando se trata de animais de produção, que são utilizados para a indústria de consumo em geral.
Vale a pena refletir se algum dia os animais que são destinados ao consumo ou usados em testes de diversos produtos, na tração animal, no entretenimento, poderão requerer ao judiciário a proteção prevista na Lei Maior do Brasil.
¹ Integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Direito Animal, coordenado pela professora Lucimar de Paula.
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Referências Bibliográficas
Gênesis 1 - VC - Versão Católica - Bíblia Online. Bibliaonline.com.br. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/vc/gn/1>. Acesso em: 27 Apr. 2021.
SINGER, P. (2010). Libertação Animal. São Paulo : WMF Martins Fontes.
REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: Peter Singer (ed), In Defense of Animals. New York: Basil Blackwell, 1985. Em português, REGAN, Tom. A causa dos direitos dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 08. Nº 12. Jan/abr. 2013
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
ATAIDE JUNIOR, Vicente. Introdução ao Direito Animal Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 13, n. 3, 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/28768/17032>. Acesso em: 27 Apr. 2021.
COSTA, Eduardo. CÂMARA DOS DEPUTADOS PROJETO DE LEI No , DE 2020. [s.l.]: , [s.d.]. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1959938&filename=PL+145/2021>. Acesso em: 27 Apr. 2021.
BRASIL. Código de Processo Civil (1973). Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, DF: Senado, 1973
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