Certa vez, passando pela frente de um sebo, o livro Prisioneiras de Drauzio Varella me chamou até ele. Levei essa conversa para casa, pois havia recentemente lido Quarto de Despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, e a temática sobre as condições de vidas femininas no Brasil foi cada vez mais crescente em meu repertório.
Carolina, na década de 1950, compartilhou em sua obra seus relatos como mulher, negra, catadora de papel, da favela e as situações que viveu, enfrentou, bem como, suas indagações e reflexões diante do difícil cenário político, econômico e opressor que vivera. Por meio de uma identidade literária única e íntima, em seu diário cultivado por anos a fio na esperança de ser publicado um dia, nós temos o retrato de uma mulher que continuamente afirmava viver num cômodo da cidade destinado aos dejetos, o quarto de despejo da sociedade paulistana: a favela.
Já em Prisioneiras de Varella não encontramos mais um cômodo, em que o que não se quer ver é fechado num quarto (que poderíamos situar geograficamente naquele quartinho minúsculo que está para além da área de serviço) e que é aberto com o raiar do sol para a manutenção dos demais cômodos da casa. A obra de Drauzio nos apresenta o que está trancado para o lado de fora, à margem e inacessível a casa: a penitenciária feminina. E aqui, determinamos em específico as penitenciárias femininas pois , como o médico e escritor bem pontuou em sua experiência enquanto observador da realidade daquele espaço, as mulheres praticamente não recebem visitas. Logo, aqueles que residem na casa, mesmo que no quarto de despejo, não levam um pedaço do lar para as mulheres em cárcere. O afeto não chega até elas, elas são esquecidas e rejeitadas. Já em penitenciárias masculinas o dia de visitas é contemplado por filas enormes de mulheres ansiosas para ver seus filhos e esposos.
Neste mês de março o documentário Flores do Cárcere dirigido pela cineasta Barbara Cunha foi lançado na plataforma digital Now. E, assim como em Prisioneiras, denuncia a realidade por trás das grades das penitenciárias femininas. Cenas de precarização da vida da mulher em cárcere são apresentadas através dos relatos das experiências vividas pelas ex-detentas. O documentário além de retratar o interior do cárcere, também apresenta as dificuldades vividas na reinserção social pós privação da liberdade. E o que vemos é o peso da desigualdade de gênero quando se trata do acolhimento dessas mulheres durante o cumprimento de pena e depois dele.
Conforme a segunda edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres, de 2018, dos doze países com maior população prisional feminina do mundo, o Brasil ocupava o quarto lugar com 42.355 mulheres privadas de liberdade, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia e China. O estado de São Paulo possui a maior concentração de mulheres privadas de liberdade (15.104), seguido de Minas Gerais (3.279) e Paraná (3.251).
Foi
analisada também a evolução da taxa de aprisionamento feminino num lapso de
tempo de 16 anos, referente a 2000 a 2016. Enquanto os Estados Unidos havia
aumentado sua população prisional feminina em 18%, o Brasil, neste mesmo
período havia aumentado 455%. Além disso, observou-se que a maior parte dos estabelecimentos
penais são projetados para o público masculino. Dos 1449 existentes apenas 7%
dos estabelecimentos penais são destinadas ao público feminino e 16% caracterizam-se
enquanto mistos pois possuem alas/celas específicas para o cumprimento de penas
privativas de liberdade de mulheres.
Avaliou-se
a média de visitas sociais por pessoa privada de liberdade durante o primeiro
semestre de 2016, e foi constatado que um homem em regime fechado recebe em
média 7,8 visitas ao longo do semestre, enquanto em estabelecimentos femininos e
mistos uma mulher privada de liberdade recebe em média 5,9. Nos estados do
Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte a taxa de visitação para homens
é cinco vezes maior que para mulheres.
É
precária também a realidade das gestantes e lactantes em cárcere, sendo que
apenas 55 unidades penais de todo o país declararam possuir cela ou dormitório
para gestantes. E para em relação ao acompanhamento de seus filhos ao longo da
amamentação durante o cumprimento de suas penas, apenas 14% das unidades
femininas ou mistas possuem berçário ou centro de referência materno-infantil
(para crianças de até 2 anos) e apenas 3% das unidades prisionais possuem
creche para crianças acima de 2 anos.
Identificou-se
nesta pesquisa sobre a população prisional feminina que 50% é composta por
jovens de até 29 anos e 45% não concluíram o ensino fundamental e 17% não
terminaram o ensino médio. Além disso, destaca-se o racismo estrutural presente
no encarceramento feminino ao observarmos o fato de que 62% das mulheres
privadas de liberdade no Brasil são negras e 37% brancas.
Ao examinar a conjunção social da maioria das mulheres latinas, percebe-se que elas estão imersas no constante agravamento da crise econômica e social que os seus países enfrentam. As dificuldades que sofrem, como mães solteiras, sozinhas, sem escolaridade e emprego formal, acarretam saídas que, por vezes, se revelam únicas, como o tráfico de drogas. Adentrando-se nessa realidade, vê-se ainda que a sociedade patriarcal estabelece uma hierarquia, cujo lugar de ocupação feminino está em posições mais baixas que as dos homens. Inclusive, por esses motivos, ficam mais expostas ao flagrante, sendo seus papéis, conforme exposto anteriormente, secundários ou subordinados, conhecidos como “vapor” ou “bucha”. (REZENDE; OSÓRIO, 2020, p. 13)
Corroborando
com a pesquisa de Rezende e Osório sobre o encarceramento feminino, o INFOPED
Mulheres apresentou os dados de distribuição de crimes tentados/consumados por
tipo penal que levaram ao cárcere mães e esposas, constatando que a massiva
maioria foi detida por envolvimento com o tráfico, flagranteadas enquanto
“vapor” ou “bucha”, ou seja, enquanto cúmplices.
Rezende e Osório também destacaram que grande parte
dessas mulheres privadas de liberdade entraram para o tráfico devido seus envolvimentos
com traficantes. Tal relacionamento implica em fidelidade e subordinação, sendo
o dever delas proteger e manterem o vínculo estabelecido.
Esse envolvimento é conhecido popularmente como “amor bandido”, que é uma das razões para o encarceramento feminino por drogas. Um dos reflexos desse amor é percebido, ao analisar a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na qual há um considerável número de mulheres condenadas que tenta adentrar presídios masculinos com drogas. (REZENDO; OSÓRIO, 2020, p. 13)
Na
obra Prisioneiras, Drauzio percebeu com pesar essa realidade e em vários
relatos das detentas. A presença de uma figura masculina em suas vidas que as
inseriu nas drogas e no tráfico é um contexto recorrente que ecoa das celas.
Para Varella os efeitos e desdobramentos do tráfico de drogas na sociedade e precisamente
sobre inchaço populacional nos presídios são questões de saúde pública e não propriamente
de segurança pública.
Mencionamos no Toga News desta semana sobre a cultura
do encarceramento feminino e a necessidade de se combater o punitivismo e a
misoginia que ainda permeia nossa jurisprudência afetando consideravelmente o
agravamento populacional no sistema carcerário, bem como, promovendo a
manutenção das desigualdades de gênero e social enfrentadas pelas famílias das
camadas mais vulneráveis da sociedade.
Destacamos novamente a pesquisa realizada pela
Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, entre 2019 e 2020, de nome “Mulheres
nas audiências de custódia no Rio de Janeiro”. Apresentando dados
alarmantes a respeito da quantidade de mulheres que poderiam estar em liberdade
provisória, mas permanecem em privação de liberdade por determinação do juiz. Em
cada quatro mulheres presas em flagrante no estado do Rio de Janeiro ao menos
uma preenche todos os critérios para
responder em liberdade, e estes são ignorados. Os dados foram apresentados no
início deste mês de março no evento "Encarceramento feminino em
perspectiva: 10 anos das regras de Bangkok" (clique aqui para assistir
ao evento).
Em vista disso, reforçamos as palavras de Beauvoir citadas no início do texto, uma vez que ser mulher na sociedade em que vivemos por si só é uma luta diária. E as mulheres que possuem o direito de liberdade ceifado pelo sistema jurisdicional para o cumprimento de suas penas, estas se encontram em maior risco. O cárcere em nosso país não contribui em nada para o reajuste e reinserção de um indivíduo na sociedade, o retrato de nossos presídios são do cumprimento de pena enquanto punitivismo, tortura e vingança. Quando o único direito do qual a pessoa em conflito com a lei deveria ter falta é a de liberdade, os demais direitos fundamentais, principalmente a dignidade humana, não deveriam por hipótese alguma ser violados pelo Estado.
REFERÊNCIAS:
AZENHA, Manuela. Como a Covid-19 tem ecoado nas penitenciárias femininas no estado de SP. São Paulo: Editora Globo, Rev. Marie Claire, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/05/como-covid-19-tem-ecoado-nas-penitenciarias-femininas-no-estado-de-sp.html>. Acesso em: 18.03.2021.
DOCUMENTÁRIO “Flores do Cárcere” aborda o encarceramento feminino com histórias reais. Rio de Janeiro: EBC Radios, 2021. Disponível em: <https://radios.ebc.com.br/arte-clube/2021/03/documentario-flores-do-carcere-aborda-o-encarceramento-feminino-com-historias>. Acesso em 21.03.2020.
ITO, Carol. A pandemia nas prisões femininas. São Paulo: Revista Trip, 07 mai. 2020. Acesso em: < https://revistatrip.uol.com.br/tpm/a-pandemia-nas-prisoes-femininas>. Acesso em: 18.03.2021.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
REZENDE, G. A. de; OSÓRIO, F. C. Encarceramento feminino: da (in)visibilidade à garantia de direitos. Rio Grande do Sul: PUCRS, 2020. Disponível em: <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2020/08/giullia_rezende.pdf>. Acesso em: 21.03.2020.
SANTOS, Thandara (Org.). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível em: <https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf>. Acesso em: 22.03.2021.
VARELLA, Dráuzio. Prisioneiras. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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