Por Beatriz Duma de Oliveira*
Na terça-feira, 24 de março, o
Presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento oficial que
causou grande comoção Brasil afora. O Presidente defendeu o fim de medidas restritivas,
como a quarentena decretada pelo governador de São Paulo, para conter a
transmissão local do novo Coronavírus. No dia seguinte, as reuniões entre
Presidente e governadores dos estados foi marcada por diferenças quanto à
adoção de medidas restritivas. Nesse cenário, surgem dúvidas como: Quem tem
competência para decretar quarentena? E é possível que algum órgão ou ente
possa suspendê-la?
Para responder essas questões conversei com Luiz Gustavo de
Andrade, professor de Direito Constitucional na Unicuritiba. Ele me explicou que, primeiramente,
precisamos entender como funciona o Pacto Federativo no Brasil.
Pela
Constituição de 88, são entes da federação: a União (ou Governo Federal), os
estados, municípios e o Distrito Federal. Cada um desses entes possui
competência para exercer algumas funções. Os serviços postais e a emissão de
moeda, por exemplo, são competências exclusivas da União. Ou seja, estados e
municípios não podem criar seu próprio serviço de Correios ou sua própria moeda.
Mas também existem funções que são de competência comum
entre os entes da federação, como é o caso da educação e da saúde - sendo a
última prevista no artigo 23, II da Constituição. Portanto, tanto o Governo
Federal, quanto o Estadual e o Municipal não só podem como devem prestar
serviço de saúde para a sua população. Contudo, a Constituição não elencou qual
área da saúde cada ente federado deve atuar preferencialmente. Dessa forma,
todos prestam serviço e tem competência para tomar as medidas cabíveis para a
promoção da saúde, em suas várias formas. Além disso, de acordo com o artigo
24, XII da Constituição, tanto a União quanto os estados podem legislar sobre a
saúde de forma concorrente, ou seja, o Governo Federal edita normas gerais
(§1°), e os governos estaduais particularizam essas normas à sua localidade,
sem contrariá-las (§2°).
Essas noções de Direito Constitucional são necessárias para
compreendermos como um estado pode atuar na questão da saúde nessa pandemia da
Covid-19. Além de criar leis locais, os estados podem usar de um instrumento
chamado "Decreto Executivo", que é uma ordem editada pelo chefe do executivo
no nível estadual - o governador - que versa sobre ações administrativas.
Por via de decreto, um governador pode, por exemplo,
suspender as aulas em escolas e fechar alguns estabelecimentos, com objetivo de
evitar a transmissão do novo Coronavirus. Porém, como é uma ordem editada pelo
poder Executivo, um decreto não pode trazer nenhuma medida que não esteja
prevista em lei - tendo em vista que, pela Tripartição de Poderes, cabe ao
Legislativo criar normas jurídicas, e ao Executivo, executá-las. Não poderia,
por exemplo, um decreto criar e impor um tributo que não estivesse previsto em
legislação, pois vimos que o decreto não pode inovar no mundo jurídico.
Sintetizando os conceitos apresentados, para verificar se
decretos estaduais são válidos no que diz respeito à questão da saúde,
precisamos a) ver se os dispositivos nele presentes possuem base legal, pois os
decretos são atos normativos secundários, ou seja, estão abaixo da lei, e não
podem criar algo que já não exista nela; b) verificar se contrariam as normas
gerais determinadas pela União, conforme artigo 20, § 2º, da Constituição. Toda
essa linha de raciocínio serve para entendermos por qual razão
o decreto do estado de São Paulo[1], que determinou a
quarentena, é ilegal. E como outros decretos estaduais podem sofrer do mesmo
status.
O decreto editado por João Dória não é contrário às normas
gerais estabelecidas pela União. Na Lei n° 13.979/2020[2], artigo 2º, II, é
permitido declarar quarentena em razão da disseminação do novo Coronavírus. E
no parágrafo 7º, II do mesmo artigo, determina-se que os gestores locais (como
prefeitos e governadores) podem adotar essa medida de restrição, desde que
autorizados pelo Ministério da Saúde. Também reafirma essa questão a Portaria
n° 356 de 11/março/2020[3], do Ministério da Saúde,
no artigo 4º, §1º prevê que a quarentena pode ser adotada mediante ato
administrativo formal, por órgãos federais, estaduais e municipais de saúde.
Nesse aspecto, o decreto do Governador é válido. A questão problemática é que,
para que o decreto de quarentena fosse legal, deveria existir uma lei estadual
que regulamentasse como a quarentena aconteceria. Essa lei não existe e, ao que tudo indica, nenhum estado do Brasil criou uma lei sobre essa questão.
O que vemos, portanto, é um grande problema jurídico, pois os
decretos tanto de São Paulo como de outros estados podem ser anulados por inovarem no mundo jurídico sem previsão legal, ou seja, maculados por uma ilegalidade. No entanto, caso decretada a nulidade da medida de quarentena, o efeito pode ser um maior
número de infectados e mortos pelo novo Coronavirus, além da sobrecarga do
Sistema de Saúde das localidades afetadas. Ressalto, para esclarecer, que caso
houvessem leis estaduais regulamentando a quarentena, que foi permitida por lei
federal, esses decretos estariam dentro da legalidade.
O problema, no entanto, não é apenas esse. Como a Lei 13.979/2020
permite a quarentena apenas com autorização do Ministério da Saúde, o chefe do
Executivo em nível federal, Presidente Jair Bolsonaro, caso queira intervir
nesse Ministério, pode acabar com as quarentenas que já estão acontecendo, as
desautorizando. Por essa razão, mesmo se os decretos fossem válidos, as
quarentenas poderiam ser suspensas, já que dependem de uma validação do Governo
Federal.
Essa centralização de poder nas mãos da União, reforçada
pela Medida Provisória 926 de 20/março/2020[4], fere a autonomia dos
estados em cuidar da saúde de sua população frente à pandemia, porque os
incapacita de tomar medidas, como a quarentena, caso haja discordância de
opinião do Governo Federal.
Sobre a referida MP, o ministro do STF Marco Aurélio reafirmou
que os estados e municípios tem poder para tomar medidas de proteção à saúde,
já que é competência comum dos entes da federação. Contudo, não declarou nula a
MP, que possui o caráter centralizador já mencionado. Ainda sim, faz-se
necessária a lei local e não apenas um Decreto.
Para evitar o “caos social”, o secretário executivo do
Ministério da Saúde, João Gabardo Reis, em coletiva de imprensa no dia 26/03,
disse que a população deve seguir as normas previstas no seu município, sejam
elas medidas restritivas, no caso de quarentena, ou o isolamento social
aconselhado pelas autoridades locais. Vale lembrar que compete aos Municípios a
edição de normas acerca dos interesses locais - art. 30, I, da Constituição.
Vemos, nesse cenário atual, como o Direito não está
preparado para lidar com essa situação, na qual a população, os especialistas e
os órgãos nacionais e internacionais defendem a adoção de medidas como a
quarentena. Entretanto, para que os decretos estaduais estivessem em
conformidade com o Direito, seria necessário esperar a conclusão do processo de
criar, debater, votar e aprovar uma lei estadual. Esse processo legislativo demora mais
do que o tempo que temos para tomar medidas, de forma que possam diminuir a
transmissão comunitária do vírus, que ameaça todo o corpo social.
O que se conclui, portanto, é que, quando superada essa terrível pandemia, será preciso
repensar nosso pacto federativo. Neste caso particular, a divergência de
opinião entre a esfera federal, que centraliza muito poder, e as esferas
estaduais e municipais, pode gerar muitas mortes e o colapso do sistema de
saúde nas localidades mais afetadas.
*Beatriz Duma de Oliveira é aluna do 3° período de Direito, apresentadora do Talks Channel e integrante do grupo de pesquisa "Criminologia - Cultura, Violência e Desigualdade" e voluntária no projeto "Formação Constitucional nas Escolas" - além de integrante da equipe de 2020 do Blog Unicuritiba Fala Direito.
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