A FUNÇÃO PROMOCIONAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL (II)
“Se alguém, cumprindo os seus próprios deveres, faz mais do que poderia ser constrangido a fazer segundo a lei, a sua conduta é meritória; se cumpre na estrita medida ao conforme a lei, ele não faz senão aquilo que é devido; se, enfim, cumpre menos do quanto é pedido pela lei, ele atua culposamente (demeritum). O efeito jurídico de uma culpa é a punição; o de uma ação meritória é a recompensa (prêmio); a conformidade da conduta ao que se deve fazer não gera qualquer efeito jurídico.” (Kant- Metafísica dos Costumes).
Na semana passada publiquei um post com a 1ª parte de minhas reflexões sobre esse tema. Em síntese, entendo que o senso comum de moralidade humana torna mais fácil prejudicar os outros do que beneficiá-los. Intuitivamente, cremos que somos muito mais responsáveis pelo mal que causamos por nossos atos do que pelos males cotidianos derivados de nossas omissões. Por isso, todos os deveres morais e obrigações nos impelem a não ofender a incolumidade de terceiros, sem que existam deveres positivos que estimulem os indivíduos ao altruísmo. Tudo isso explica a enorme aversão que temos diante de perdas, sem que haja uma inversa atração pelos ganhos sociais de comportamentos beneméritos, que possam irradiar esperança e solidariedade. Assim, afirmei que já é tempo de alargarmos os horizontes e investirmos em uma “função promocional” da responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais. Para além de compensar, punir e prevenir danos, a responsabilidade civil deve criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de pessoas naturais e jurídicas. Mas como podemos concretizar tal função promocional no Brasil?
Pode-se definir o ‘encorajamento’, com Norberto Bobbio, como aquela forma de persuasão em que Y tentará influenciar X a fazer, assegurando uma consequência agradável caso X faça. Enquanto o momento inicial de uma medida de desencorajamento é uma ameaça, o da medida de encorajamento é uma promessa que obrigatoriamente será mantida pelo promitente juridicamente autorizado. A técnica de encorajamento é conexa com a predisposição e a atuação das sanções positivas, com função promocional (ou propulsiva), de estímulo a atos inovadores. Ao contrário da sanção negativa, a sanção positiva não é devida. O prêmio pelo mérito não se encontra no nível estrutural da norma, mas psicológico daquele que agirá em busca da recompensa. Certamente, as sanções positivas surgirão eventualmente no ordenamento, isto por duas razões: (a) o sistema não possui recursos para premiar todo e qualquer comportamento meritório; (b) o direito não pode ser visto como um mínimo ético, mas um máximo ético. Destarte, a associação da recompensa a uma pena produz nas ações individuais resultados bem mais eficazes que aqueles obtidos isoladamente com a pena. Neste sentido, colhe-se a função de incentivar o adimplemento e não o de reagir ao inadimplemento. A título ilustrativo, tenha-se a hipótese do bônus previsto no contrato de seguro de responsabilidade civil pela circulação de veículos. Trata-se de um prêmio, uma recompensa a um comportamento.
O direito não se presta a um papel conservador e inerte de mera proteção de interesses mediante a repressão de atos proibidos – tal como na esfera do direito penal – mas preferencialmente o de promover o encontro entre as normas e as necessárias transformações sociais. Na senda da eficácia promocional de direitos fundamentais, é possível fazer do direito privado um local em que algumas normas sirvam não apenas para tutelar, como também para provocar efeitos benéficos aos valores da solidariedade e da igualdade material. No plano funcional, as sanções positivas atuam de maneira a provocar nos indivíduos o exercício de sua autonomia para alterar sua forma de comportamento. Se uma sanção pretende maximizar comportamentos conformes e minimizar comportamentos disformes, deverá se servir do instrumento de socialização, que com técnicas variadas investe o indivíduo na condição de membro participante de uma sociedade e de sua cultura. A socialização – que obviamente se aplica à pessoa jurídica - cria uma disposição para a observância das regras que comandam o grupo. Quando o processo de socialização não funciona para algum indivíduo, em um segundo momento se estabelecerá a técnica de controle social. Quando este processo quer encorajar não apenas comportamentos conforme o direito, mas em ‘superconformidade’, recorrerá às sanções positivas, pela via de prêmios e incentivos.
Nessa toada, creio que uma legítima situação de incidência da função promocional é o parágrafo único do art. 944 do Código Civil: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”. Para a doutrina majoritária, a referida norma só poderá ser utilizada na teoria subjetiva da responsabilidade civil, seja pela própria redação do dispositivo, como também pelo próprio apelo à orientação sistemática pela qual no nexo de imputação objetiva será expurgada qualquer discussão sobre a culpa. Quer dizer, quando determinada atividade econômica, pela sua própria natureza, independentemente de quem a promova, oferece riscos que a experiência repute como excessivos, anormais, provocando danos patrimoniais ou existenciais em escala superior a outros setores do mercado, a orientação dada ao empreendimento pelos seus dirigentes será irrelevante para a avaliação das consequências dos danos, relevando apenas a aferição do nexo de causalidade entre o dano injusto e o exercício da atividade.
Desta forma, em sede de teoria objetiva, priva-se de qualquer efeito jurídico as ações meritórias. Quer dizer, o fato do condutor da atividade – ciente de seu risco anormal – propor-se a realizar investimentos em segurança perante os seus funcionários ou terceiros em nada repercutirá positivamente em caso de produção de uma lesão resultante do exercício desta atividade. Daí nasce a questão lógica: se inexiste qualquer estímulo para provocar um comportamento direcionado ao cuidado e à diligência extraordinários, qual será a ênfase de um agente econômico em despender recursos que poderiam ser direcionados a várias outras finalidades, quando ciente de que isto nada valerá na eventualidade de um julgamento desfavorável em uma lide de responsabilidade civil? Esta indagação se torna ainda mais veemente quando o empreendedor percebe que os seus concorrentes apenas praticam esforços ordinários em termos de cautela, canalizando os recursos excedentes para outras vantagens perante os consumidores.
Ou seja, propomos a existência de três ‘standards’ de diligência em sede de exercício de atividades potencialmente danosas: (a) ausência de diligência; (b) diligência ordinária; (c) diligência extraordinária. No primeiro caso – ausência de diligência –, aplica-se a pena civil, de natureza preventiva/aflitiva, desencorajando-se a prática de atos desconformes ao direito, à medida em que a atividade produza danos quantitativamente numerosos e/ou qualitativamente graves. Se o parágrafo único do art. 944 admite a redução da quantia reparatória em função da culpa, forçando-se o lesado a suportar parcialmente o dano, por que não admitir o aumento do montante, pela via da pena civil, se o lesante tiver agido com culpa grave? Acresça-se a isto a impossibilidade de se repassar a um segurador o valor da condenação referente à sanção positiva, mas tão somente quanto à verba reparatória. No segundo caso, ou seja, o de diligência ordinária, aferindo-se que os parâmetros de vigilância do empreendedor se encontram na normalidade de seu setor econômico, o resultado será neutro no aspecto punitivo, resumindo-se a sanção por danos injustos à medida de sua reparação, tanto na esfera patrimonial como extrapatrimonial. Finalmente, na terceira hipótese, a excepcional diligência do causador dos danos resultará não apenas na certeza quanto à exclusão de uma sanção punitiva (a privação de uma desvantagem), como em alguma reação positiva do ordenamento a uma boa ação.
Creio que essa é uma forma desejável de estímulo a todo e qualquer agente econômico que, não obstante o risco inerente à sua atividade, atue no sentido de não medir esforços para mitigar a possibilidade de causação de danos a terceiros. O prêmio não consistirá em uma contrapartida de ordem econômica que permita ao ofensor fazer frente à reparação integral dos ofendidos na eventualidade da configuração de danos (apesar dos elevados esforços de precaução), mesmo que a importância alcance cifras expressivas conforme o número de vítimas. Afinal, o empreendedor diligente já efetuou o seguro de suas atividades com relação ao aspecto reparatório. Cogitamos, em verdade, da criação de uma espécie de cadastro positivo de louváveis agentes econômicos em todos os setores da atividade econômica – com incentivo em obtenção de financiamentos públicos, redução de juros – capaz de gerar uma percepção positiva da sociedade em termos de imagem, com reflexos patrimoniais e morais para as empresas. Indubitavelmente, trata-se de um bem imaterial de enorme valor em sociedades que objetivam implantar mecanismos meritocráticos aos valores do capitalismo democrático. Ressalte-se o efeito pedagógico de se evitar o ingresso em determinado setor do mercado de potenciais concorrentes sem o potencial de fazer frente às exigências de uma competitividade pautada na eficiência em detrimento do compadrio e paternalismo, tão evidentes nas sociedades oligárquicas.
Seja aqui, como em qualquer outra nação capitalista, o mercado é completamente suscetível aos estímulos derivados do ordenamento. Não precisamos recorrer a ‘law and economics’ para percebermos que o emprego difuso de técnicas de encorajamento, através de recompensas em termos de redução de custos, motiva o empreendedor a coordenar os seus meios aos fins eleitos pelo sistema jurídico. Ao invés de um castigo, um prêmio. Aliás, assim já se conduz o Estado no direito tributário para alcançar as finalidades desejadas. Quando os incentivos estão mal alinhados é apropriado para o sistema jurídico tentar consertar esse problema, realinhando-os. Abordagens baseadas em incentivos se mostram eficientes e eficazes, sem desrespeitar a liberdade de escolha dos agentes econômicos. Trata-se de um sistema que recompensa ao invés de punir e, para alcançar este propósito, não se furta a oferecer os melhores incentivos. Os arquitetos de escolhas públicas querem guiar as pessoas em direções que irão melhorar as suas vidas. Estão dando uma cutucada. Cutucadas não são ordens, mas orientações, tais como aquelas que pais virtuosos transmitem aos filhos.
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