Howard
S. Becker, no último capítulo de seu livro Truques
da Escrita, publicado em 1986, diz ao leitor: "Tente!". Mas, tentar o quê? Escrever. Sem medo de ser julgado.
E, depois de escrito, reescrever. Para o autor esse é o grande truque: revisar,
organizar, tentar.
O
livro, de linguagem acessível e de fácil aplicabilidade prática, tem sua origem
num seminário de redação que o cientista social norte-americano, professor
Becker, ministrou aos estudantes de pós-graduação em Sociologia na Northwestern
University. A metodologia utilizada nas aulas foi descrita em seu primeiro
capítulo "Introdução à redação"
para estudantes de pós-graduação. Ao ministrá-las o autor percebeu que
medos e inseguranças eram sentimentos coletivos na vida acadêmica. E que, por
falta de diálogos sobre tais aflições, alguns vícios e problemas na produção
textual se perpetuam até hoje. Não conseguir organizar as ideias no papel, e
ser motivo de deboche por ter escrito algo considerado errado, são os medos
motores para tais dificuldades na escrita dos alunos de Becker.
Persona e autoridade é o segundo
capítulo do livro, nele o cientista social apresentou fragmentos da carta de
sua aluna, Rosanna Hertz, que proporcionou reflexões interessantes sobre o que
ela, e todos os escritores iniciantes da academia, consideram como uma “escrita
com classe”. O professor condenou tal escrita, carregada de floreios, considerando
que esta tática textual apenas distrai a real intenção do escrito. Os
acadêmicos iniciantes insistem em querer usar de palavras difíceis e tentam
escrever rebuscado, como os autores que admiram, mas Becker defende a clareza e
a objetividade na escrita. E, para isso, é preciso partir de si mesmo, de
pensamentos e ideias próprias para então organizá-las e reescrevê-las.
Tal observação do
professor Becker assemelha-se à passagem em que Rainer Maria Rilke, no célebre Cartas ao Jovem Poeta, aconselhou o aspirante
e aflito poeta Franz Xaver Kappus em seus poemas. Kappus pediu a ajuda de Rilke
para saber se o que escrevia era bom. E, de maneira generosa e sincera, Rilke
respondeu que antes de tudo o rapaz deveria olhar para dentro, para si,
investigando o que o motivava a escrever. Rilke também sugeriu que Kappus não
se baseasse nos temas clássicos, que inicialmente deveria escrever algo pessoal
e íntimo, buscando verdade em suas palavras, pois era a partir delas que as
possibilidades seriam criadas. Rilke se referia a uma produção poética e não a
textos acadêmicos e científicos, mas a mesma confiança que Rilke tentara passar
para seu correspondente podemos perceber nas palavras de Becker, quando ele
pede para escrevermos o que nos vem à cabeça, sem recorrer a nada de início.
Esse seria o ponto zero, o que você gostaria de dizer esboçado no papel na
ordem do pensamento, uma ordem que precisa ser organizada e em seguida reescrita.
O professor Becker salientou,
ainda, que o posicionamento do escritor no texto define sua personae, e é ela que trará autoridade
ao seu texto. Para isso, é preciso encontrar uma maneira clara e objetiva que
permita ao leitor acompanhar e compreender seu direcionamento textual. O
capítulo que segue é A Única Maneira
Certa, no qual o autor percebeu que a relutância de seus alunos em
reescreverem seus textos vem de tradições acadêmicas que não estimulam que sejam
retrabalhados os trabalhos já avaliados. Desta forma, o aluno se propõe a
melhorar seu desempenho nos trabalhos seguintes, não buscando melhorar o que já
foi feito. Em Editando de ouvido, sugestões
de uma boa escrita foram apresentadas, como a premissa do "menos é
mais", a necessidade em se ponderar o uso de metáforas e nos alertou que
repetições podem gerar tédio ao leitor.
O
quinto capítulo refere-se ao que o próprio autor definiu como pretensioso, em Aprendendo a escrever como profissional afirmou
que ninguém nasce sabendo escrever e relatou sua trajetória, de trinta e poucos
anos, em que desenvolveu sua escrita e a sensibilidade em identificar vícios e
irrelevâncias nas produções textuais. Riscos
é o capítulo mais pessoal e dramático do livro, que consiste no desabafo de
Pamela Richards registrada em uma carta para Howard. A doutora, professora e
antropóloga relatou em sua correspondência ao professor os riscos que enfrentou,
e enfrenta, em escrever e em mostrar seu rascunho para alguém. O relato partiu
de dois sonhos que levaram Pamela a se perceber como uma farsa. Esses
sentimentos foram regidos por sua insegurança em não ser realmente boa ou
genial em sua produção acadêmica. E, neste momento, o autor do livro é claro em
seu objetivo: convencer por completo o leitor de que escrever não é um problema
apenas de iniciantes. Todo escritor em qualquer estágio profissional e
acadêmico passa pelos mesmos temores. É uma insegurança coletiva que
dificilmente é compartilhada de maneira produtiva, e que normalmente é ocultada
com intuito de manter-se implacável e admirável aos olhos de seus colegas. Em Soltando o texto, Becker falou sobre a
competitividade e os prazos, responsáveis pela grande pressão na produção da
vida acadêmica. E, dando sequência aos medos, em Apavorados com a bibliografia o professor esclareceu que a
bibliografia tem um importante papel colaborativo na produção de conhecimento,
mas que seu uso não pode distorcer o argumento de seu texto, para isso deve ser
utilizada de modo consciente.
O
capítulo nove foi escrito em 1986, e neste período o uso de computadores no
âmbito acadêmico estava em seu início, e Becker sabiamente optou por deixá-lo
na reedição de 2007 como um registro das transformações daquele período. Sua
escolha proporcionou a nós a ilustração de um cenário importante de assimilação
e descoberta de novas possibilidades. O capítulo levou o título Desgaste e processadores de texto, e
nele o autor relatou as dificuldades físicas da reescrita antes do computador e
os benefícios que a era digital poderia proporcionar nos processos de revisão e
organização dos textos.
Truques da Escrita gera identificação
imediata em escritores aflitos e inseguros. Utilizou-se de descrições honestas
e humoradas de situações que o autor, colegas, alunos e qualquer escritor
iniciante, ou não, já passaram ou irão passar. Becker, em duzentas e cinquenta
e seis páginas, pretendeu mostrar a importância em se revisar e reescrever um
texto, esperando confortar e dar esperança aos escritores angustiados, para que
entendam que seu medo é coletivo, e que para ser vencido é preciso começar. "Escreva", disse Becker, qualquer
coisa, de um bilhete a uma carta. Pois a escrita é feita de hábito e trata-se
de uma atividade organizacional. Para o autor, quanto mais clareza e
ordenamento racional das ideias mais facilitadora será sua leitura, pois um texto
não compreendido não é eficaz.
Referências
BECKER, Howard Saul. Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e
artigos. Tradução: Denise Bottmann; revisão técnica Karina Kuschnir. 1 ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 2015. 256 p., 14x21cm (Coleção Antropologia Social).
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta.
Tradução: Paulo Rónai e Cecília Meireles. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013.
É confortante saber que as incertezas que enfrentamos ao produzir textos são compartilhadas. Parabéns pelo excelente texto Rafa!
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