11/05/2021

Em pauta: A violência policial em Jacarezinho



Por Nicoly Schuster


Em junho de 2020, foi concedida pelo Supremo Tribunal Federal medida cautelar - já referendada pelo plenário - para suspender as ações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro e determinar que fossem realizadas apenas em casos excepcionais e acompanhadas pelo Ministério Público. A decisão foi proferida pelo ministro Edson Fachin, relator, na ADPF 635 - apelidada de “ADPF das favelas” - proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O ministro considerou a restrição às operações como necessárias para permitir ações de auxílio à população, para garantir a prestação de serviços públicos sanitários e para não colocar as pessoas em risco. A decisão fora proferida logo após o assassinato de um adolescente de 14 anos, João Pedro Mattos, que foi morto dentro de sua casa, alvejada por mais de 70 tiros, durante uma operação. 

É triste a constatação de que a violência policial no Rio não é uma novidade. Consoante a isso, na decisão que concedeu a liminar acima mencionada, o ministro Edson Fachin relembrou que o Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Favela de Nova Brasília, em 2017, pelos 26 mortos em duas operações policiais (uma em 1994 e outra em 1995). Ainda, nesse seguimento, um estudo feito pela Rede de Observatórios da Segurança Pública revelou que, dos 1.814 mortos pela policia em 2019 no Rio de Janeiro, 86% eram negros e 54,7% eram pardos. Isso aponta que a truculência policial está direcionada não só para as comunidades carentes mas para a população negra e parda. 

Em total desrespeito a determinação do Supremo Tribunal Federal, a Polícia Civil do Rio de Janeiro realizou uma operação na favela do Jacarezinho, na manhã desta quinta-feira (6/5), a qual resultou em 2 pessoas feridas por balas perdidas e outros 28 mortos, incluindo um policial civil. Fotos mostram que a polícia retirou os corpos do local de forma inadequada, enrolados em lençóis, o que dificulta a perícia, e, consequentemente, a fiscalização da operação.


 


As comunidades do Rio de Janeiro vivem o que se pode chamar de exceção anômala, uma vez que, apesar de viverem sob um estado de direito, estão submetidas a um tratamento indigno, pior do que o despendido aos inimigos de guerra. Isso, pois, são tratados pelo Estado como não-pessoas, e a partir daí não lhes é assegurado direito ao contraditório, nem ao devido processo legal e nem a dignidade da pessoa humana. Na operação de Jacarezinho, relatam os moradores que nem mesmo existiam mandados autorizando as buscas e apreensões em suas residências, mas mesmo assim os policiais levaram os seus celulares. 

O professor Roosevelt Arraes, em sua tese, afirma que nessas situações anômalas os indivíduos são tratados como ameaças potenciais e permanentes, o que justifica seu monitoramento e a sua eliminação preventiva:     


Nestas situações, não se altera somente a relação entre o Estado e o indivíduo, mas a própria condição de todos os demais indivíduos sob a proteção do Estado, posto que passam a ostentar uma situação geral dúbia, na qual cada um é uma ameaça em potencial, a ser neutralizada preventivamente. Daí a justificação para ações invasivas à intimidade como os monitoramentos de dados e informações, a vigilância permanente, entre outras estratégias que pretendem neutralizar um “inimigo” que sempre permanece oculto e que potencialmente pode surgir de qualquer lugar. A não-pessoa é não-inimigo, e, por estar submetida a esta forma anômala de exercício do poder, torna-se o não-amigo, que é potencialmente perigoso e, portanto, deve ser submetido à máxima situação de obediência, sem que exista a garantia de alguma proteção.¹ 


As pessoas estão, assim, irremediavelmente submetidas à força coercitiva estatal - e a todo seu aparato bélico - que de forma desproporcional busca aniquilá-las. Por serem alocados na categoria de não-pessoas, portanto, devem apenas obedecer e não lhes é assegurada nenhuma proteção. Tal cenário culmina num ciclo interminável de violência e destruição, acirrando os conflitos entre a população e a polícia, causando inúmeras mortes em ambos os lados. 

Isso acaba por prejudicar, inclusive, a vida das pessoas que não estão envolvidas com atividades criminosas, mas que residem nas favelas, uma vez que a alta densidade populacional faz com que aumentem as chances de balas perdidas atingirem os moradores, mesmo dentro de suas casas. Esse cenário provoca a sensação de incerteza e desconfiança, uma vez que o mesmo Estado que deveria lhes proteger é responsável por criar situações que colocam suas vidas em risco.

Isso acontece devido a vulnerabilidade dos que vivem nas comunidades, já que não podem legalmente se opor ao poder estatal. Ainda, o direito não pode as socorrer no momento das operações, e, depois que elas ocorrem, todo o sistema jurídico converge para dificultar a responsabilização criminal dos autores das mortes. Nesse ponto, recorde-se do projeto de lei do Presidente Jair Bolsonaro enviado ao Congresso no ano de 2019, o qual pretendia incluir no Código Penal uma excludente de ilicitude para os homicídios cometidos por autoridades policiais nas chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem (GLO)”.   

Em ofício a Antônio Aras, Procurador-Geral da República, o ministro Fachin afirmou que recebeu vídeos da referida operação no e-mail oficial do seu gabinete e que em um deles havia indícios de “execução arbitrária”. O ministro finalizou o documento dizendo: 


Certo de que Vossa Excelência, como representante máximo de uma das mais prestigiadas instituições de nossa Constituição cidadã, adotará as providências devidas, solicito que mantenha este Relator informado das medidas tomadas e, eventualmente, da responsabilização dos envolvidos nos fatos constantes do vídeo.


Essa situação, acaba por isolar as pessoas negras e faveladas da sociedade, já que não possuem a consideração e o respeito das instituições públicas e da lei. As razões disso são as desigualdades sociais e o descaso histórico com as comunidades periféricas, o que é mais evidente e prejudicial à sociedade em momentos graves, como o ocasionado pela pandemia do coronavírus. Nesse sentido, o ativismo judicial parece ser a última ferramenta apta a restabelecer a garantia de uma dignidade mínima a essas pessoas vulneráveis, já que as políticas públicas - as quais, inclusive, contam com o apoio de parte da população - não se prestam a isso.


REFERÊNCIAS 


¹ ARRAES, Roosevelt. Consenso e conflito na liberal democracia: John Rawls e Carl Schmitt. 232 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2019. p. 171.


BBC. 'Aventura jurídica' e 'licença para matar': o que dizem juristas sobre excludente de ilicitude em projeto de Bolsonaro. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50522542>. Acesso em 7 mai. 2021. 


ELPAIS. Operação policial mata 25 pessoas no Jacarezinho, em segunda maior chacina da história do Rio. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-06/operacao-policial-mata-25-pessoas-no-jacarezinho-em-segunda-maior-chacina-da-historia-do-rio.html#?sma=newsletter_brasil_diaria20210507> Acesso em 7 mai. 2021.


BRASIL DE FATO. Operação policial mata 25 pessoas no Jacarezinho, em segunda maior chacina da história do Rio. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/12/07/rio-de-janeiro-ja-registrou-22-criancas-baleadas-e-oito-mortas-em-2020>. Acesso em 7 mai. 2021.  


STF NOTÍCIAS. STF confirma restrição a operações policiais em comunidades do RJ durante pandemia. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448994&ori=1>. Acesso em 7 mai. 2021.

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