1.
Gênero e relações de poder
Nas últimas décadas, o debate quanto à
violência de gênero tem sido pauta de pesquisa e reflexão teórica no meio
acadêmico, assim como os avanços em nossa legislação e atuação de políticas
públicas para o seu enfrentamento, ambos necessários quando se objetiva uma
sociedade mais justa e menos desigual. A discussão sobre gênero é inesgotável
visto que nossa sociedade se funda predominante em constructos binários, como o
bem e o mal, o rico e o pobre, dia e a noite, o público e o privado, e o
feminino e o masculino, sendo este último um norteador estruturante.
A professora e historiadora norte-americana
Joan Scott[1]
em sua definição de gênero divide-o em duas partes: a primeira, coloca-o como inerente
às relações sociais fundado nas distinções entre os sexos; e, a segunda, confere
ao gênero a forma inicial de se atribuir significado às relações de poder. Para Scott, é possível fragmentar estas
partes em mais quatro elementos: o gênero enquanto agente simbólico cultural
de representações múltiplas que frequentemente são apresentadas como contraditórias;
como conceitos normativos que evidenciam as interpretações simbólicas
expressos pela religião, educação, ciência, política ou mesmo no ordenamento
jurídico; possuindo a sua construção no parentesco, na economia e
na organização política (ou seja, em instituições); e, por fim, seu
aspecto identitário subjetivo.
O gênero é, portanto, um
meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre
diversas formas de interação humana. Quando os(as) historiadores(as) procuram
encontrar as maneiras como o conceito de gênero legitima e constrói as relações
sociais, eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da
sociedade e das formas particulares, situadas em contextos específicos, como a
política constrói o gênero e o gênero constrói a política.[2]
Portanto,
estudar as relações de gênero implica em estudar a sociedade tanto em termos
simbólicos culturais, quanto suas dimensões sociais, jurídicas, políticas e
econômicas que ratificam tais representações, em sua maioria binárias,
distintas e desiguais. A depender de seu gênero, numa sociedade patriarcal,
machista e alienante que mitifica vínculos de sujeição e dominação entre homens
e mulheres, sua vida será desenhada por atribuições e expectativas que diferem
se feminino ou masculino. Tais diferenças estão inseridas nas divisões de
trabalho, em cargos e salários, formas de tratamento e como um corpo ocupa os lugares,
em como será visto, respeitado, interpretado, objetificado e/ou violado.
Então, em primeiro lugar e
acima de tudo, dizer que o gênero é performativo é dizer que ele é um certo
tipo de representação; (...) o gênero é induzido por normas obrigatórias que
exigem que nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de um
enquadramento estritamente binário); a reprodução de gênero é, portanto, sempre
uma negociação com o poder (...).[3]
Podemos
notar uma consonância nas representações de gênero e o exercício das relações
poder, pois ambos compõem as relações humanas em sociedade e, em contextos de
violência e violações de direitos, tais distinções de gênero, e sua esfera
simbólica de dominação e sujeição, contornam as relações de poder, atuando de
forma visceral na supressão de direitos e contribuindo para a desigualdades
entre os sexos. E, neste ponto, a psicanalista e pesquisadora do Núcleo
Diversitas FFLCH/USP, Maria Lucia Homem, enfatiza que, enquanto sujeitos
responsáveis pela teia social em que vivemos, precisamos defender o direito de
sermos ativos no lugar que ocupamos. Para Homem, é fundamental que se contenha
o movimento histórico injusto e prioritariamente opressivo que destina ao feminino
um lugar de “repositório do ódio, da castração, do mal, do menos, do não-fálico
e do menos valor”[4].
2. Violência
de gênero nas universidades
Infelizmente os espaços em que
nós, mulheres, nos sentimos seguras, são poucos. Isso, além de evidenciar a
falta de segurança — refletida nos altos índices de feminicídio em nosso país
—, demonstra que nossas vozes ainda são silenciadas — fato possível de ser
visto na pequena representação feminina em cargos parlamentares e em cargos de
chefia de empresas, por exemplo. Os dados podem ser verificados no relatório
das Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil[5],
um informativo realizado pelo IBGE em 2018.
E, dentro deste cenário desigual,
que diminui e/ou desconsidera o papel e a contribuição da mulher no mercado de
trabalho, na política e como ator social digno respeito e igual consideração,
temos a violência em si, que está presente em todos os espaços — doméstico,
educacional, social e político. E, a violência, se dá tanto de forma violenta e
agressiva, como em manifestações sutis e normatizadas pela sociedade, que
possuem em seu conteúdo premissas que repetem e ratificam a subjugação da
mulher.
As instituições acadêmicas de
ensino superior infelizmente não estão ilesas da violência de gênero,
tratando-se de um assunto importante a ser debatido, e sua prática ser
combatida, muitas vezes é negligenciado ou ocultado pelas instituições e pelos
próprios discentes. Para isso, podemos reportar à pesquisa realizada pelo
Instituto Avon[6]
em parceria com o Data Popular, de 2015, que procurou identificar o
comportamento dos jovens universitários em relação ao tema violência contra
a mulher no ambiente universitário.
A pesquisa entrevistou 1823
estudantes universitários de todo o Brasil, sendo que 60% eram mulheres, e 40%
homens. Tais estudantes, em sua maioria entre 16 a 35 anos, predominantemente
de classe econômica média e alta, sendo 76% de instituições privadas e 24% de
instituições públicas. O Instituto Avon listou seis formas de violências na
pesquisa, demonstrando que, além da violência física[7]
e sexual[8],
as mulheres estão sujeitas também à coerção[9],
ao assédio sexual[10],
a desqualificação intelectual[11]
e a agressão moral/psicológica[12].
Em relação a agressão moral/psicológica,
24% das estudantes já foram inseridas em rankings, enquanto 14% tiveram suas
imagens (em vídeo ou em fotos) sendo repassadas, sendo que em ambas as
situações a autorização delas não foi solicitada. 71% dos homens e mulheres que
participaram da pesquisa conhecem casos de assédio moral/psicológico ocorridos
nas universidades, sendo que 52% das mulheres afirmaram ter sofrido tal
violência, enquanto 24% dos homens admitiram terem realizado.
Muitos homens desconhecem que
estão praticando uma violência, pois tais ações são normatizadas em seu meio,
outros tantos por vezes são pressionados a tomar tais posturas violentas para
se manterem pertencentes ao grupo, e há aqueles que ainda culpam a mulher pelos
abusos e violências sofridas.
A pesquisa ainda revelou que 56% das
entrevistadas já sofreram assédio sexual, enquanto 26% dos homens,
confessaram já tê-lo cometido. Em referência a violência sexual em si:
28% já foram violadas; 11% sofreram tentativa de abuso sob efeito de álcool; e
13% dos homens admitiram já terem praticado violência sexual. A coerção
dada por práticas forçosas de ingestão de álcool, sofrida por 12% das mulheres,
também ocorre em leilões, desfiles, entre outras degradações, em que 11% das
entrevistadas já foram coagidas a participar. Já a violência física constou
10% de mulheres agredidas, enquanto 4% dos homens confessaram terem cometido
tal ato.
Os dados apresentados acima, pelo
Instituto Avon, são alarmantes. A academia tem sido mais um dos espaços
geradores de medo para as mulheres. 42% das estudantes afirmaram se sentirem
inseguras no ambiente universitário, enquanto 36% deixaram de realizar
atividades na universidade que poderiam resultar em situações de violência. Das
entrevistadas, 63% não reagiram às violências sofridas, por conta do medo.
3. We
Should All Be Feminists
Ao contrário
da hegemonia feminina em praticamente todos os números relativos ao acesso ao
ensino superior e à sua conclusão, o número de docentes do sexo masculino ainda
é, em média, 10 pontos percentuais mais elevado do que o feminino.[13]
Não apenas as estudantes sofrem
com a violência de gênero nas universidades, mas as professoras também estão
dentro das estatísticas. Quando o assunto é mercado de trabalho, a mulher ainda
encontra obstáculos para a sua inserção — tanto no que tange as jornadas duplas
de dedicação, bem como a própria validação enquanto profissional, muito mais
custosa às mulheres.
Na primeira aula de escrita para uma turma de
pós-graduação, fiquei apreensiva. Não com o conteúdo do curso, já estava bem preparada
e gosto da matéria. Estava preocupada com o que vestir. Eu queria ser levada a
sério. Sabia que, por ser mulher, eu automaticamente teria que “demonstrar”
minha capacidade. E estava com medo de parecer feminina demais, e não ser
levada a sério. Queria passar batom e usar uma saia bem feminina, mas desisti
da ideia. Escolhi um terninho careta, bem masculino e feio. A verdade é que,
quando se trata de aparência, nosso paradigma é masculino. Muitos acreditam que
quanto menos feminina for a aparência da mulher, mais chances ela terá de ser
ouvida.[14]
Chimamanda Ngozi Adichie, em sua
obra Sejamos Todos Feministas, cita
uma fala da ganhadora do Nobel da Paz Wangari Maathai, que dizia que “quanto mais perto do topo chegamos, menos
mulheres encontramos.”. Um fato que evidencia nossa realidade desigual
entre os gêneros em um mundo cuja a população feminina equivale a 52% da
população mundial. E, a escritora nigeriana pontuou em sua fala que se despende
muito tempo na formação das meninas ensinando-as a se preocupar com o que os
meninos pensam delas, mas o mesmo não ocorre na formação dos meninos.
Para Adichie, um mundo mais justo
corresponde a um mundo em que homens e mulheres são mais felizes e mais autênticos consigo mesmos, e para que isso
ocorra a mudança se dá na criação de nossos filhos e filhas. Tal criação não
deve ser nociva — nem por uma masculinidade impositiva, nem por uma sujeição
feminina reiterada —, mas uma criação que preze pela igualdade de direitos,
respeito e consideração.
[1]
SCOTT, Joan. Gênero:
uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino
Dabat, Maria Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989
[2]
SCOTT, 1989, p. 23.
[3]
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e política das ruas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018. p. 39.
[4]
HOMEM, Maria Lucia. Impasses atuais do feminismo. São Paulo: Casa do Saber,
2018. Disponível em: <https://youtu.be/_S1hyyaZm50>.
Acesso em: 02.ago.2019.
[5] ESTATÍSTICAS de gênero: uma análise
dos resultados do censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.
[6]
INSTITUTO AVON. Violência contra a mulher no ambiente universitário. São Paulo:
Instituto Avon/Data Popular, 2015.
[7]
Ser agredida fisicamente. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[8]
Estupro / Tentativa de abuso enquanto sob efeito de álcool / Ser tocada sem
consentimento / Ser forçada a beijar veterano. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[9]
Ingestão forçada de bebida alcoólica e / ou drogas / Ser drogada sem
conhecimento / Ser forçada a participar em atividades degradantes (como leilões
e desfiles). (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[10]
Comentários com apelos sexuais indesejados / Cantada ofensiva / Abordagem
agressiva. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[11]
Desqualificação ou piadas ofensivas, ambos por ser mulher. (INSTITUTO AVON,
2015, p. 4)
[12]
Humilhação por professores e
alunos / Ofensa / Xingada por rejeitar investida / Músicas ofensivas cantadas
por torcidas acadêmicas / Imagens repassadas sem autorização / Rankings
(beleza, sexuais e outros) sem autorização. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[13]
BARRETO, Andreia. A Mulher no Ensino
Superior: distribuição e representatividade. Cadernos do GEA, n. 6,
jul./dez. 2014.
[14]
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos Todos Feministas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015. p. 40-41.
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