15/08/2019

Em pauta: Violência de gênero na universidade







1.     Gênero e relações de poder
Nas últimas décadas, o debate quanto à violência de gênero tem sido pauta de pesquisa e reflexão teórica no meio acadêmico, assim como os avanços em nossa legislação e atuação de políticas públicas para o seu enfrentamento, ambos necessários quando se objetiva uma sociedade mais justa e menos desigual. A discussão sobre gênero é inesgotável visto que nossa sociedade se funda predominante em constructos binários, como o bem e o mal, o rico e o pobre, dia e a noite, o público e o privado, e o feminino e o masculino, sendo este último um norteador estruturante.
A professora e historiadora norte-americana Joan Scott[1] em sua definição de gênero divide-o em duas partes: a primeira, coloca-o como inerente às relações sociais fundado nas distinções entre os sexos; e, a segunda, confere ao gênero a forma inicial de se atribuir significado às relações de poder.  Para Scott, é possível fragmentar estas partes em mais quatro elementos: o gênero enquanto agente simbólico cultural de representações múltiplas que frequentemente são apresentadas como contraditórias; como conceitos normativos que evidenciam as interpretações simbólicas expressos pela religião, educação, ciência, política ou mesmo no ordenamento jurídico; possuindo a sua construção no parentesco, na economia e na organização política (ou seja, em instituições); e, por fim, seu aspecto identitário subjetivo.

O gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana. Quando os(as) historiadores(as) procuram encontrar as maneiras como o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais, eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da sociedade e das formas particulares, situadas em contextos específicos, como a política constrói o gênero e o gênero constrói a política.[2]

            Portanto, estudar as relações de gênero implica em estudar a sociedade tanto em termos simbólicos culturais, quanto suas dimensões sociais, jurídicas, políticas e econômicas que ratificam tais representações, em sua maioria binárias, distintas e desiguais. A depender de seu gênero, numa sociedade patriarcal, machista e alienante que mitifica vínculos de sujeição e dominação entre homens e mulheres, sua vida será desenhada por atribuições e expectativas que diferem se feminino ou masculino. Tais diferenças estão inseridas nas divisões de trabalho, em cargos e salários, formas de tratamento e como um corpo ocupa os lugares, em como será visto, respeitado, interpretado, objetificado e/ou violado.

Então, em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que o gênero é performativo é dizer que ele é um certo tipo de representação; (...) o gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de um enquadramento estritamente binário); a reprodução de gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder (...).[3]

            Podemos notar uma consonância nas representações de gênero e o exercício das relações poder, pois ambos compõem as relações humanas em sociedade e, em contextos de violência e violações de direitos, tais distinções de gênero, e sua esfera simbólica de dominação e sujeição, contornam as relações de poder, atuando de forma visceral na supressão de direitos e contribuindo para a desigualdades entre os sexos. E, neste ponto, a psicanalista e pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP, Maria Lucia Homem, enfatiza que, enquanto sujeitos responsáveis pela teia social em que vivemos, precisamos defender o direito de sermos ativos no lugar que ocupamos. Para Homem, é fundamental que se contenha o movimento histórico injusto e prioritariamente opressivo que destina ao feminino um lugar de “repositório do ódio, da castração, do mal, do menos, do não-fálico e do menos valor”[4].

2.     Violência de gênero nas universidades

Infelizmente os espaços em que nós, mulheres, nos sentimos seguras, são poucos. Isso, além de evidenciar a falta de segurança — refletida nos altos índices de feminicídio em nosso país —, demonstra que nossas vozes ainda são silenciadas — fato possível de ser visto na pequena representação feminina em cargos parlamentares e em cargos de chefia de empresas, por exemplo. Os dados podem ser verificados no relatório das Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil[5], um informativo realizado pelo IBGE em 2018.


E, dentro deste cenário desigual, que diminui e/ou desconsidera o papel e a contribuição da mulher no mercado de trabalho, na política e como ator social digno respeito e igual consideração, temos a violência em si, que está presente em todos os espaços — doméstico, educacional, social e político. E, a violência, se dá tanto de forma violenta e agressiva, como em manifestações sutis e normatizadas pela sociedade, que possuem em seu conteúdo premissas que repetem e ratificam a subjugação da mulher.

As instituições acadêmicas de ensino superior infelizmente não estão ilesas da violência de gênero, tratando-se de um assunto importante a ser debatido, e sua prática ser combatida, muitas vezes é negligenciado ou ocultado pelas instituições e pelos próprios discentes. Para isso, podemos reportar à pesquisa realizada pelo Instituto Avon[6] em parceria com o Data Popular, de 2015, que procurou identificar o comportamento dos jovens universitários em relação ao tema violência contra a mulher no ambiente universitário.

A pesquisa entrevistou 1823 estudantes universitários de todo o Brasil, sendo que 60% eram mulheres, e 40% homens. Tais estudantes, em sua maioria entre 16 a 35 anos, predominantemente de classe econômica média e alta, sendo 76% de instituições privadas e 24% de instituições públicas. O Instituto Avon listou seis formas de violências na pesquisa, demonstrando que, além da violência física[7] e sexual[8], as mulheres estão sujeitas também à coerção[9], ao assédio sexual[10], a desqualificação intelectual[11] e a agressão moral/psicológica[12].


 Em relação a agressão moral/psicológica, 24% das estudantes já foram inseridas em rankings, enquanto 14% tiveram suas imagens (em vídeo ou em fotos) sendo repassadas, sendo que em ambas as situações a autorização delas não foi solicitada. 71% dos homens e mulheres que participaram da pesquisa conhecem casos de assédio moral/psicológico ocorridos nas universidades, sendo que 52% das mulheres afirmaram ter sofrido tal violência, enquanto 24% dos homens admitiram terem realizado.


Muitos homens desconhecem que estão praticando uma violência, pois tais ações são normatizadas em seu meio, outros tantos por vezes são pressionados a tomar tais posturas violentas para se manterem pertencentes ao grupo, e há aqueles que ainda culpam a mulher pelos abusos e violências sofridas.
A pesquisa ainda revelou que 56% das entrevistadas já sofreram assédio sexual, enquanto 26% dos homens, confessaram já tê-lo cometido. Em referência a violência sexual em si: 28% já foram violadas; 11% sofreram tentativa de abuso sob efeito de álcool; e 13% dos homens admitiram já terem praticado violência sexual. A coerção dada por práticas forçosas de ingestão de álcool, sofrida por 12% das mulheres, também ocorre em leilões, desfiles, entre outras degradações, em que 11% das entrevistadas já foram coagidas a participar. Já a violência física constou 10% de mulheres agredidas, enquanto 4% dos homens confessaram terem cometido tal ato.


Os dados apresentados acima, pelo Instituto Avon, são alarmantes. A academia tem sido mais um dos espaços geradores de medo para as mulheres. 42% das estudantes afirmaram se sentirem inseguras no ambiente universitário, enquanto 36% deixaram de realizar atividades na universidade que poderiam resultar em situações de violência. Das entrevistadas, 63% não reagiram às violências sofridas, por conta do medo.

3.     We Should All Be Feminists

Ao contrário da hegemonia feminina em praticamente todos os números relativos ao acesso ao ensino superior e à sua conclusão, o número de docentes do sexo masculino ainda é, em média, 10 pontos percentuais mais elevado do que o feminino.[13]

Não apenas as estudantes sofrem com a violência de gênero nas universidades, mas as professoras também estão dentro das estatísticas. Quando o assunto é mercado de trabalho, a mulher ainda encontra obstáculos para a sua inserção — tanto no que tange as jornadas duplas de dedicação, bem como a própria validação enquanto profissional, muito mais custosa às mulheres.

Na primeira aula de escrita para uma turma de pós-graduação, fiquei apreensiva. Não com o conteúdo do curso, já estava bem preparada e gosto da matéria. Estava preocupada com o que vestir. Eu queria ser levada a sério. Sabia que, por ser mulher, eu automaticamente teria que “demonstrar” minha capacidade. E estava com medo de parecer feminina demais, e não ser levada a sério. Queria passar batom e usar uma saia bem feminina, mas desisti da ideia. Escolhi um terninho careta, bem masculino e feio. A verdade é que, quando se trata de aparência, nosso paradigma é masculino. Muitos acreditam que quanto menos feminina for a aparência da mulher, mais chances ela terá de ser ouvida.[14]

Chimamanda Ngozi Adichie, em sua obra Sejamos Todos Feministas, cita uma fala da ganhadora do Nobel da Paz Wangari Maathai, que dizia que “quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.”. Um fato que evidencia nossa realidade desigual entre os gêneros em um mundo cuja a população feminina equivale a 52% da população mundial. E, a escritora nigeriana pontuou em sua fala que se despende muito tempo na formação das meninas ensinando-as a se preocupar com o que os meninos pensam delas, mas o mesmo não ocorre na formação dos meninos.
Para Adichie, um mundo mais justo corresponde a um mundo em que homens e mulheres são mais felizes e mais autênticos consigo mesmos, e para que isso ocorra a mudança se dá na criação de nossos filhos e filhas. Tal criação não deve ser nociva — nem por uma masculinidade impositiva, nem por uma sujeição feminina reiterada —, mas uma criação que preze pela igualdade de direitos, respeito e consideração.





[1] SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat, Maria Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989
[2] SCOTT, 1989, p. 23.
[3] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. p. 39.
[4] HOMEM, Maria Lucia. Impasses atuais do feminismo. São Paulo: Casa do Saber, 2018. Disponível em: <https://youtu.be/_S1hyyaZm50>. Acesso em: 02.ago.2019.
[5] ESTATÍSTICAS de gênero: uma análise dos resultados do censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.

[6] INSTITUTO AVON. Violência contra a mulher no ambiente universitário. São Paulo: Instituto Avon/Data Popular, 2015.
[7] Ser agredida fisicamente. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[8] Estupro / Tentativa de abuso enquanto sob efeito de álcool / Ser tocada sem consentimento / Ser forçada a beijar veterano. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)

[9] Ingestão forçada de bebida alcoólica e / ou drogas / Ser drogada sem conhecimento / Ser forçada a participar em atividades degradantes (como leilões e desfiles). (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[10] Comentários com apelos sexuais indesejados / Cantada ofensiva / Abordagem agressiva. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[11] Desqualificação ou piadas ofensivas, ambos por ser mulher. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[12] Humilhação por professores e alunos / Ofensa / Xingada por rejeitar investida / Músicas ofensivas cantadas por torcidas acadêmicas / Imagens repassadas sem autorização / Rankings (beleza, sexuais e outros) sem autorização. (INSTITUTO AVON, 2015, p. 4)
[13] BARRETO, Andreia. A Mulher no Ensino Superior: distribuição e representatividade. Cadernos do GEA, n. 6, jul./dez. 2014.
[14] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 40-41.

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