11/04/2020

Em pauta: Restrição de direitos em tempo de corona vírus



A notória crise decorrente da pandemia do novo coronavírus (o SARS-CoV-2, causador da doença Covid-19) acentua um, por vezes criticado, aspecto do Estado: o poder de restringir e limitar os direitos dos seus cidadãos. Isso porque - assim como em períodos de guerra - é necessário que, em resposta a uma situação extrema, sejam tomadas medidas igualmente extremas. Por vezes, tais medidas extremas implicam em uma relativização que permite a supressão de direitos e garantias fundamentais, há muito incorporadas nas Constituições liberais-democráticas e que representam as conquistas civilizatórias no campo das liberdades individuais e coletivas.
Em um Estado Democrático de Direito, as medidas de limitação a direitos fundamentais precisam ser justificadas mediante juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade. Isto, porque, por vezes, podem existir diversos direitos em jogo, prevalecendo uma situação de conflitos entre princípios que não podem ser resolvidos apenas a partir de uma aplicação literal e mecânica da lei. Dentro deste contexto, faz-se necessário a utilização de parâmetros para definir e justificar quais direitos vão ser restringidos, quais vão ser assegurados e de que modo ocorrerão essas restrições. 
No contexto da pandemia, disparadamente, os direitos fundamentais que mais se veem mitigados, em países nos quais existe um elevado patamar de contágio, são as liberdades de ir e vir e o direito de reunião. Como o vírus se espalha de forma rápida, a forma mais eficaz de garantir a saúde da população é o isolamento social. Por isso, muitas nações têm fortemente limitado a livre circulação e a aglomeração de pessoas. Alguns países europeus, como a Alemanha e Reino Unido, tem adotado providências severas que restringem os direitos de locomoção e reunião, determinando a proibição de reuniões com mais de duas pessoas. Foi estipulada, inclusive, a aplicação de multa em caso de descumprimento, sendo que os governos alemão e britânico autorizaram o uso de força policial para dissolver as aglomerações. 
No Brasil, as restrições mais intensas se dão no âmbito estadual ou municipal por meio de decretos baixados pelos governadores e prefeitos, que ao analisarem como evoluiu a situação da doença tomam medidas de acordo com a necessidade peculiar de cada região. Por exemplo, nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, foi proibida a abertura de shoppings, academias, restaurantes, comercio e bares de rua. Em cidades litorâneas como as da Baixada Santista, o Rio de Janeiro e Florianópolis os moradores foram proibidos de frequentar as praias. Ainda, no estado do Pará, de Minas Gerais e Rondônia e na prefeitura de Presidente Prudente/SP e de Porto Alegre houve a polemica proibição da realização de cultos religiosos.
No estado de São Paulo, epicentro do surto da covid-19 no Brasil, a determinação do governador foi a suspensão ao funcionamento do comércio, permitindo apenas o funcionamento, com restrições, de estabelecimentos alimentícios. Serviços essenciais nas áreas da saúde, segurança, abastecimento, limpeza e bancos ainda funcionam. João Doria se pronunciou na última sexta feira dizendo que se a população não cumprir as medidas de isolamento, tomará medidas ainda mais restritivas, inclusive impondo multa e até prisão para aqueles que as descumprirem.
É sabido que os direitos fundamentais não são absolutos, o que permite a sua relativização quando se está diante de situações que colocam em conflito dois ou mais deles. Mas, é possível que direitos fundamentais tão significativos como a liberdade de culto, de reunião ou de locomoção sejam restringidos como meio de garantir a saúde pública? Percebe-se que a decisão implica em analisar liberdades que colidem, sendo necessária uma ponderação para se chegar a uma efetiva resposta. 
Foi Robert Alexy - a partir de sua teoria argumentativa – quem desenvolveu um modelo de ponderação que permite, por meio de uma análise racional, decidir qual dentre dois direitos conflituosos deve prevalecer. O método consiste em três etapas sucessivas, aplicáveis a casos concretos, de modo que ao final do procedimento é possível saber se a restrição a preceito fundamental que se propôs é ou não é proporcional.
De acordo com José Sérgio da Silva Cristóvam, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina

A proporcionalidade é uma máxima, um parâmetro valorativo que permite aferir a idoneidade de uma dada medida legislativa ou administrativa. Pelos critérios da proporcionalidade pode-se avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição àquela empreendida pelo Poder Público. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)

A primeira etapa da ponderação cuida de analisar a adequação, que significa examinar se a medida (que restringe um direito) tomada é realmente adequada para resolver o conflito, ou seja, se a medida escolhida é capaz de atingir a finalidade pretendida. Caso ela seja de fato adequada, passa-se ao estudo da necessidade/exigibilidade, consistindo em investigar se a medida tomada é necessária, ou seja, se, dentre todas as que poderiam ser escolhidas, não há nenhuma outra medida menos gravosa para a consecução desse fim. Se a medida for, de fato, necessária, prossegue-se para a verificação da proporcionalidade em sentido estrito, que corresponde a observar se a prevalência do direito que se quer ver garantido compensará a restrição do direito que será suprimido.
O objetivo da aplicação da ponderação é descobrir se é justa a restrição de um princípio, por meio da avaliação do caso concreto com base nas máximas proporcionais. A esse respeito Cristóvam afirma que:   

O Judiciário, quando da análise de uma medida restritiva de direitos dos cidadãos, sob o prisma da proporcionalidade em sentido estrito, deve exercer um juízo de ponderação entre o direito efetivado pela medida e aquele por ela restringido, a fim de averiguar acerca da justiça da medida eleita. Deve o juiz valorar, segundo as circunstâncias e peculiaridades do caso concreto, se a medida obteve um resultado satisfatório e se o direito limitado deveria sucumbir frente ao efetivado, em uma relação de precedência condicionada. (CRISTOVAM, 2005, p. 168)

Ou seja, em última análise, para que se cumpra o requisito da proporcionalidade estrita, o benefício alcançado com a garantia de um direito deve ser maior do que a perda obtida com a redução do direito restringido. Proporcional, portanto, é aquela restrição a direito na qual os motivos que fundamentam a adoção da medida possuem peso suficiente para justificar a restrição ao direito atingido. (CRISTÓVAM, 2005, p. 167)
Se aplicarmos, o método da ponderação de Alexy ao conflito entre direito à saúde e à liberdade de reunião, poderemos chegar a algumas conclusões: a) da análise da adequação, é possível concluir que restringir a aglomeração de pessoas é uma medida capaz de deter, ou ao menos desacelerar, a propagação do vírus; b) ao verificar a necessidade, entende-se que a restrição é a maneira mais eficaz, dentre outras providências que podem ser tomadas, para garantir a saúde da população, de acordo com as recomendações da comunidade científica e da Organização Mundial da Saúde e; c) ao examinar a proporcionalidade em sentido estrito, percebe-se que a garantia do direito à saúde compensa a restrição dos demais direitos, tendo em vista que, assegurar o direito à saúde em detrimento do direito de reunião ou da liberdade religiosa traz muito mais ganhos do que se o contrário fosse.  
É nesse sentido que tem sido as decisões dos juízes e tribunais brasileiros, a exemplo de Jefferson Zanini, Magistrado da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Florianópolis, que lançou mão da teoria de Alexy ao proferir uma sentença. Foi ajuizada uma ação civil pública por uma associação de médicos, na qual foi requerida liminarmente a proibição do funcionamento de uma igreja evangélica. O juiz deferiu parcialmente a tutela de urgência sob o seguinte fundamento:

Ora, no confronto entre o direito fundamental à vida, compreendida como derivativo da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), e os também direitos fundamentais à liberdade de reunião (CF, art. 5º, XVI) e de crença religiosa (CF, art. 5º, VI), mostra-se salutar, nesse excepcional momento que caminha a humanidade, ser dada prevalência ao primeiro. Essa medida atende ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito, pois os ganhos advindos com a preservação da saúde pública superam as eventuais perdas derivadas da restrição à realização de cultos religiosos, mormente diante da transitoriedade da medida restritiva.

            Percebe-se que a decisão fez uma correta análise de proporcionalidade, ao evidenciar que, em meio a pandemia, o direito à saúde e à vida deve prevalecer sobre a liberdade religiosa e de reunião, pois os benefícios decorrentes de ser assegurada a saúde da população são maiores que os prejuízos acarretados pela restrição de eventos religiosos. A isso corresponde o papel que o Poder Judiciário possui de “[...] guardar a Constituição, zelar pelo Estado democrático de direito e garantir a eficácia dos direitos fundamentais.” (CRISTÓVAM, 2005, p. 161).
Como já enfatizado em diversos pronunciamentos do Ministério da Saúde, caso medidas não sejam tomadas, todo o sistema público de saúde pode entrar em colapso, gerando, assim, uma forte crise capaz de colocar em risco a estabilidade do Estado como um todo. Assim, considerando a pandemia gerada pela Covid-19, pode-se inferir que alguns direitos fundamentais, como a liberdade de culto, o direito de reunião e a liberdade de locomoção, devem temporariamente ser limitados para assegurar não só a saúde, mas também a vida das pessoas. 
Em um Estado democrático de direito, o campo de atuação dos chefes do executivo encontra-se limitado pela lei, de modo que, mesmo em situações de crise de grandes proporções como a ocasionada pela Covid-19, o caos não se torne uma brecha para autoritarismos. Isso significa que as restrições devem se dar dentro dos moldes do estado de direito uma vez que essa ordem ainda impera. Portanto, deve ser assegurado a todos os indivíduos uma condição mínima de subsistência e, mais do que nunca, os governantes devem apelar para a razão quando pensam em soluções para atravessar esse momento crítico. 
Entretanto, para que exista um mínimo de lógica e equilíbrio nas medidas de restrição a direitos não basta que a atuação do governo se dê dentro dos ditames da lei, ainda mais quando se percebe uma divergência de posicionamentos tão significativa para a sociedade. O Poder Judiciário tem importante papel nesse cenário e já vem intervindo nas questões envolvendo medidas de combate ao novo coronavírus, como por exemplo, determinando a abertura ou fechamento de comércios e templos religiosos.
A necessidade de providências é urgente e mais do que isso, é preciso que as medidas sejam pensadas para serem proporcionais, de modo que direitos não sejam restringidos de maneira desarrazoada, e efetivas, para que de fato sejam capazes de assegurar o mais importante nesse momento, a saber, a vida e a saúde de todos os cidadãos. 


REFERÊNCIAS
AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS DO PARANÁ. Entenda as medidas adotadas pelo governo do Estado para combater o coronavírus. Disponível em: <http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=106210&tit=Entenda-as-medidas-adotadas-pelo-Governo-do-Estado-para-combater-o-coronavirus> Acesso em: 11 abril 2020.

CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais: uma abordagem a partir da teoria de Robert Alexy. 245 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2005. 

FOLHA DE LONDRINA. Porto Alegre fecha igrejas que desrespeitaram proibição de culto. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/geral/porto-alegre-fecha-igrejas-que-desrespeitaram-proibicao-de-culto-2983341e.html> Acesso em: 11 abril 2020.

FOLHA UOL. Ao menos 18 Estados mantem fechados shoppings, comercio de rua e academias. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/ao-menos-18-estados-mantem-fechados-shoppings-comercio-de-rua-e-academias.shtml> Acesso em: 11 abril 2020.

FOLHA UOL. Reino Unido proíbe reunião de mais de 2 pessoas e impõe multas a quem sair às ruas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/contra-coronavirus-reino-unido-proibe-reuniao-de-mais-de-2-pessoas-e-fecha-lojas.shtml>. Acesso em: 27 março 2020.  

GAZETA MACHADENSE. Novas medidas são adotadas para evitar a proliferação do coronavirus no estado e no município. Disponível em: <http://gazetamachadense.com.br/2020/03/21/novas-medidas-sao-adotadas-para-evitar-a-proliferacao-do-coronavirus-no-estado-e-no-municipio/> Acesso em: 31 março 2020.  

G1. Alemanha proíbe encontros com mais de duas pessoas, contra o coronavírus. Disponível em:   <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/22/alemanha-proibe-encontros-com-mais-de-duas-pessoas-contra-o-coronavirus.ghtml> Acesso em:  27 março 2020.  

G1. Após recomendação da Promotoria, Prefeitura anuncia decreto que proíbe reuniões de pessoas em cultos religiosos em Presidente Prudente. Disponível em:  


G1. Governo do PA proíbe eventos religiosos e saída intermunicipal da região metropolitana na Semana Santa. Disponível em: <https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/04/06/governo-do-pa-proibe-eventos-religiosos-e-saida-intermunicipal-da-regiao-metropolitana-na-semana-santa.ghtml> Acesso em: Acesso em: 28 março 2020.  

G1 NOTICIAS: Para conter coronavírus, Florianópolis proíbe acesso às praias e entrada de ônibus na ilha. Disponível em:  <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/03/19/para-conter-coronavirus-florianopolis-proibe-acesso-a-praias-e-entrada-de-onibus-na-ilha.ghtml> Acesso em: 11 abril 2020.

SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Governador pede que população reforce medidas e anuncia que 7 dos 14 casos confirmados de coronavírus estão recuperados. Disponível em: <http://www.rondonia.ro.gov.br/governador-pede-que-populacao-reforce-medidas-e-anuncia-que-7-dos-14-casos-confirmados-de-coronavirus-estao-recuperados/> : Acesso em: 31 março 2020.     

NOTÍCIAS UOL. Doria fala em multa e prisão se isolamento em SP não atingir 60% na segunda. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/09/doria-fala-em-tomar-medidas-mais-rigidas-se-isolamento-nao-for-respeitado.htm> Acesso em: 10 abril 2020.

NOTICIAS UOL. Cidades da Baixada Santista proíbem acesso às praias e fecham shoppings. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/19/cidades-da-baixada-santista-proibem-acesso-a-praia-e-fecham-shoppings.htm> Acesso em: 11 abril 2020.







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