05/11/2020

Em pauta: Sobre a liberdade de imprensa

 

Por Nicoly Schuster

“[...] como Kalven disse, uma sociedade livre é
 aquela em que não podemos difamar o governo,
pois tal delito não existe [...]” [John Rawls, 2000]

             A liberdade jornalística é imprescindível a democracia, que precisa dessa divulgação dos fatos sob diferentes pontos de vista, pois é preciso permitir que diferentes opiniões sejam externalizadas. Por meio dela, é garantido que a população tenha acesso à informação, especialmente no que diz respeito às autoridades políticas e aos acontecimentos relacionados ao poder público. Por isso, a Carta Maior e a jurisprudência pátria asseguram que a imprensa não seja amordaçada. 

Assim dispõe a Constituição Federal de 1988: 

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Conforme se vê, o constituinte pretendeu assegurar a proteção das liberdades de comunicação e manifestação de pensamento, para que não se repita o ocorrido durante a ditadura militar, momento no qual esses direitos sofreram graves limitações. Por isso, na retomada democrática das instituições do país, fora estabelecida pelo texto constitucional a vedação à censura.

Após a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130, a jurisprudência da Suprema Corte passou a delinear o rumo das questões judiciais envolvendo conflitos entre a liberdade de imprensa e o direito individual de pessoa objeto de matéria jornalística. Ficou sedimentado o entendimento de que quando tais demandas são levadas ao poder judiciário, deve haver uma prevalência da tutela reparatória em detrimento da inibitória, caso a informação em questão seja de interesse público.

A tutela reparatória consiste em permitir que a matéria seja veiculada para que, posteriormente, eventuais danos possam ser reparados. Enquanto isso, a tutela inibitória compreende impedir a exibição da matéria, antes mesmo dela ser publicada, para evitar que o dano aconteça. Explica-se a prevalência da tutela reparatória pelo fato de que impedir uma informação de ser veiculada seria um ato de censura, o que é vedado pela Constituição Federal.

No julgamento da ADPF 130, o ministro relator Carlos Ayres Britto destacou o caráter simbiótico entre democracia e liberdade de comunicação. Além disso, exprimiu que uma imprensa apenas meio livre não é imprensa, mas sim mera imitação de imprensa. Dessa maneira, o ministro relator elucidou que:

[...] a imprensa possibilita, por modo crítico incomparável, a revelação e o controle de praticamente todas as coisas respeitantes à vida do Estado e da sociedade. Coisas que, por força dessa invencível parceria com o tempo, a ciência e a tecnologia, se projetam em patamar verdadeiramente global. Com o mérito adicional de se constituir, ela, imprensa, num necessário contraponto à leitura oficial dos fatos e suas circunstâncias, eventos, condutas e tudo o mais que lhes sirva de real motivação. [...] E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de comportamento antijurídico.[i] (grifos do original)

Nesse seguimento, assevera o ministro Alexandre de Moraes em obra doutrinária. Segundo ele, as pessoas públicas, tais como os agentes políticos, se colocaram, eles mesmos, sob os holofotes da opinião popular[ii]. De acordo com o ministro:

O campo de interseção entre fatos de interesse público e vulneração de condutas íntimas e pessoais é muito grande, quando se trata de personalidades públicas. Nessas hipóteses, a interpretação constitucional ao direito de informação deve ser alargada, enquanto a correspondente interpretação em relação à vida privada e intimidade deve ser restringida, uma vez que por opção pessoal as assim chamadas pessoas públicas (políticos, atletas profissionais, artistas etc.) colocaram-se em posição de maior destaque e interesse social.[iii]

Moraes ainda destaca, em sua obra, que a liberdade de informação deve estar comprometida com a verdade e, para merecer proteção jurídica, deve dizer respeito a fatos de interesse social, de modo que essa liberdade, como todas as outras, não é absoluta[iv]. Isso fica claro, pois, existe até mesmo a possibilidade de responsabilização do veículo de comunicação em razão de inveracidade, imprecisão ou erro na informação transmitida.

O ministro Menezes Direito, em voto vista na ação constitucional já mencionada, sintetizou com maestria o que se pretende esclarecer:

O que se tem concretamente é uma permanente tensão constitucional entre os direitos da personalidade e a liberdade de informação e de expressão, em que se encontra situada a liberdade de imprensa. É claro, [...], que quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição, deve-se defender a liberdade. O preço do silêncio para a saúde institucional dos povos é muito mais alto do que o preço da livre circulação das ideias. A democracia, para subsistir, depende de informação e não apenas do voto; [...].[v]

  Entretanto, ao olhar para o atual cenário brasileiro, percebe-se o contraste da realidade com esse entendimento há muito já consolidado do Supremo Tribunal Federal. Isso pois, recentemente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) entrou na justiça e conseguiu uma liminar, mantida em segunda instância[vi], para impedir a Rede Globo de apresentar matéria investigativa a respeito de um esquema de “rachadinha” que envolveria o seu gabinete quando era deputado estadual[vii].

Antes que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro analisasse o recurso interposto pela emissora de TV, a Rede Globo havia ingressado com reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. Os autos foram distribuídos para o ministro Ricardo Lewandowski que negou seguimento à reclamação por não terem sido esgotadas todas as instâncias recursais inferiores, deixando de analisar o mérito do caso[viii]. 

Ao determinar a censura prévia às reportagens, tanto a juíza quanto o desembargador incorreram em prática vedada pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal, indo contra tudo que foi juridicamente construído em termos de direito à informação e liberdade jornalística.

É possível aferir o quão grande é a importância das liberdades de expressão e de imprensa para a manutenção do regime democrático, partindo de uma análise sobre como a ditadura utilizou-se de técnicas de supressão desses direitos. Naquele período, por meio da figura do censor, o governo avaliava matérias jornalísticas, músicas, filmes e novelas, para decidir o que poderia ser produzido e publicado tanto na imprensa quanto nas artes. Por isso, sendo a ausência de uma imprensa livre uma das principais características de um regime autoritário, tem-se que, caso tais liberdades sejam tolhidas a democracia não se sustenta.

Em sua obra O liberalismo Político, o filósofo John Rawls aponta a importância da liberdade de expressão para a estabilidade social, na medida em que é um meio de atenuar as tensões sociais e expor os problemas em tempo para que sejam corrigidos. Assim explica o autor: 

[...] quando a livre expressão política é garantida, problemas graves não passam despercebidos nem se tornam extremamente perigosos de repente. São publicamente apontados; e, num regime moderadamente bem governado, são levados em conta pelo menos em certo grau. (sem grifos no original)[ix]

Da mesma maneira pode ser tomada a liberdade de imprensa, que dá publicidade aos fatos mais relevantes nacional e internacionalmente, permitindo que a sociedade fique a par de situações que impactam diretamente suas vidas. Ainda, o jornalismo leva ao conhecimento da sociedade acontecimentos capazes de formar a opinião crítica, o que possibilita um voto bem informado. Assim, por meio da livre circulação de fatos e opiniões, uma imprensa livre tem o condão de assegurar, em sua plenitude, o sistema democrático.

Para o filósofo, as liberdades políticas devem ser objeto da garantia do valor equitativo, sendo essa uma forma de assegurar que sejam criadas e mantidas instituições básicas justas na sociedade[x]. Então, sendo as liberdades de comunicação e de expressão um alicerce da democracia, as instituições públicas devem garantir-lhe a proteção, para que a imprensa cumpra sua função de informar a população.

De acordo com Rawls, em uma sociedade livre não existe o crime de difamação ao governo, segundo ele: “Enquanto esse crime existir, a imprensa publica e a livre discussão não podem desempenhar seu papel de informar o eleitorado.”[xi]. Nesse sentido, não há que se falar em censura ao jornalismo que investiga práticas de corrupção e faz críticas ao governo, já que essa é a função da imprensa, por excelência, em uma sociedade livre.

Deste modo, já que no Brasil não existe o crime de difamação ao governo — pois se o contrário fosse não mais se estaria sob a égide de um estado de direito —, conclui-se que o poder judiciário não deveria impedir a imprensa de divulgar fatos de interesse da sociedade, envolvendo os atuais ou antigos ocupantes de cargos políticos. Isso seria o mesmo que permitir, ao menos tendo em vista o caso mencionado neste texto, que as autoridades políticas escapem da prestação de contas à sociedade, sob o argumento de que sua imagem está na iminência de ser ferida.

 

*(Quino, Mafalda aprende a ler. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4.)


[i] Brasil, Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 130. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. p. 28. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>.   

[ii] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33 ed. São Paulo: Altas, 2017. s/n.

[iii] Ibid., s/n.

[iv] Ibid., s/n.

[v] Brasil, Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 130. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em: 26 out. 2020. p. 91.

[vi] TERRA. Recurso da Globo é negado em caso de censura sobre Flávio. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/recurso-da-globo-e-negado-em-caso-de-censura-sobre-flavio,f50f74ed861eb13af3145c10620e9e45542w93j6.html>. Acesso em: 26 out. 2020.

[vii] NOTÍCIAS UOL. “Não tenho nada a esconder”, diz Flávio Bolsonaro após liminar contra Globo. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/05/nao-tenho-nada-a-esconder-diz-flavio-bolsonaro-apos-liminar-contra-globo.htm>. Acesso em: 26 out. 2020.

[viii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl n. 43.671. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344754516&ext=.pdf>. Acesso em: 26 out. 2020.   

[ix] RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 404.

[x] Ibid., p. 386.

[xi] Ibid., p. 399-400.

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