12/11/2020

Em pauta: Qual o limite da ampla defesa? Uma análise do caso Mariana Ferrer

 

Por Beatriz Duma.

No dia 3 de novembro de 2020 o The Intercept Brasil tornou público um vídeo junto a uma matéria acerca do caso da acusação de estupro de Mariana Ferrer contra André de Camargo Aranha[i]. No vídeo, há trechos de uma das audiências do processo, na qual a vítima do suposto estupro é intensamente ofendida e atacada pelo advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho. O conteúdo das falas de Gastão não será repetido nesse texto, como forma de respeitar Mariana Ferrer e diminuir a circulação de falas tão danosas.

Além da atitude severamente inadequada e desrespeitosa do advogado do réu, é importante salientar também como houve negligência do juiz Rudson Marcos pois, mesmo presente no momento em que Gastão atacava a vítima, o juiz se manteve omisso e não advertiu o advogado. A audiência em questão pode ser assistida na íntegra através do canal no YouTube do Estadão[ii].

Após a publicação da matéria e vídeo houve uma grande comoção nacional nas redes sociais e também ocorreram protestos em grandes cidades brasileiras. Dentre as várias questões que foram levantadas, o horror sentido por muitas pessoas ao ver as falas do advogado do réu e a omissão do juiz trouxeram um interessante debate sobre os limites da ampla defesa em um processo penal democrático. É sobre esse tema que nos debruçaremos neste texto.

A ampla defesa é um princípio constitucional do ordenamento jurídico brasileiro e possui status de cláusula pétrea, pois é um dos direitos fundamentais enunciados no artigo 5° da carta constitucional, no inciso LV[iii]. Isso significa que no decorrer de um processo, seja ele judicial ou administrativo, é necessário assegurar para as partes em litígio, em especial ao réu, todos os meios necessário para que ele possa se defender de forma plena e ampla.

Esse princípio, assegurado desde a formulação original da Constituição, é um dos mais importantes direitos que todo e qualquer cidadão deve poder usufruir quando for parte em um processo. Por essa razão, não há nada de imoral ou ilegal em uma pessoa acusada de um crime ter acesso a uma defesa de qualidade, seja ela feita por advogado ou defensor público. Por esse motivo considero que as ofensas direcionadas ao advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, pelo simples fato de ter aceitado defender um acusado de estupro, não são razoáveis. Mesmo a pior das pessoas, quando acusada de um crime, deve ter o direito de se defender, pois este é um direito fundamental.

Contudo, o que chocou o Brasil no vídeo da audiência não foi o fato de que André de Camargo Aranha estava sendo defendido por um advogado, mas sim que este advogado estava atacando verbalmente a vítima do crime alegado. Gastão mostrou fotos que Ferrer havia postado em redes sociais, tecendo comentários pessoais de cunho ofensivo, com o objetivo de insultar a vítima. Há um momento que a própria Ferrer clama para que o juiz intervenha nas falas do advogado e pede que seja respeitada. Portanto, a questão que fica é: será que o direito constitucional à ampla defesa abarca as ofensas proferidas a Mariana Ferrer pelo advogado do réu? Será que vale tudo para a defesa de seu cliente, inclusive agredir verbalmente a parte contrária?

Antes de responder essa questão, menciono o que o professor e advogado criminalista Humberto B. Fabretti comentou sobre o caso em uma live no seu perfil pessoal no Instagram[iv]. Fabretti afirma que muitas vezes vítimas de estupro que prosseguem com uma denúncia formal contra seus agressores se arrependem de terem denunciado, pois sofreram mais violência durante o processo. Esse fenômeno é denominado de vitimização secundária ou revitimização, como observa o professor, pois o próprio sistema de justiça criminal não funciona de uma maneira que acolha a vítima, mas sim repete e perpetua a violência contra essa.

Prosseguindo para a análise da conduta do advogado de defesa, o Código de Ética e Disciplina da OAB no artigo 44 determina que “deve o advogado tratar o público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo com respeito [...]”, e no artigo 45 “Impõe-se ao advogado lhaneza, emprego de linguagem escorreita e polida, esmero e disciplina na execução dos serviços”[v]. Conforme é evidente no vídeo vazado da audiência, o advogado Gastão não teve respeito pela vítima em seus atos, tampouco empregou linguagem polida, tanto que já foi instaurado um processo disciplinar na OAB/SC para apurar as acusações. Caso haja uma condenação por desvio ético, o advogado poderá ter a carteira da Ordem cassada, conforme informa o portal de notícias Terra[vi].

Portanto, é correto afirmar que, apesar da ampla defesa ser um direito constitucionalmente assegurado, excessos de conduta que não visam a defesa da parte, mas sim o ataque à outra não são admitidos no ordenamento jurídico brasileiro, vide os códigos de ética que permeiam a atividade jurisdicional.

Quanto à omissão do Juiz Marcos, que não interveio quando houve excesso por parte do advogado do réu, o art 3° do Código de Ética da Magistratura determina que:

 

A atividade judicial deve desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa humana, objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas.[vii]

 

É possível concluir que, ao ser tratada com tanta truculência e desrespeito, houve violação à dignidade humana de Mariana Ferrer no decorrer do processo. Como essa violação poderia e deveria ter sido impedida pelo juiz, o magistrado sofrerá um processo disciplinar frente ao Conselho Nacional de Justiça, que irá averiguar a conduta do juiz e determinar, caso condenado, as sanções cabíveis[viii].

Apesar da conduta inadequada do advogado da defesa e do juiz, especialistas na área creem que dificilmente a sentença absolvendo Aranha será anulada[ix]. Existem formas de recorrer da sentença, e a defesa de Mariana Ferrer afirmou que tomará esse caminho.

Por fim, concluo esta análise recapitulando que o direito a ampla defesa, apesar de abrangente, não admite excessos e abusos. Dessa forma, é inadmissível que qualquer audiência feita no Poder Judiciário tenha qualquer semelhança ao que mostrou o vídeo publicado pelo The Intercept Brasil.



[i] ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem. The Intercept Brasil. 03 nov. 2020. Disponível em:<https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/>.
[ii] VEJA a íntegra da audiência de Marian Ferrer em julgamento sobre estupro. Canal Estadão Youtube. 4 nov. 2020 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P0s9cEAPysY>.
[iii] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
[iv] Estupro culposo? Perfil @humbertofabretti. Instagram. 3 nov. 2020. Disponível em: <https://www.instagram.com/tv/CHJlqWRHnNY/?utm_source=ig_web_copy_link>.
[v] OAB. Ordem dos Advogados do Brasil. Código de Ética e Disciplina da OAB. Disponível em: <https://www.oab.org.br/visualizador/19/codigo-de-etica-e-disciplina>.
[vi] BISPO, Fábio. OAB-SC analisa caso de advogado que atacou Mari Ferrer. Terra. 08 nov. 2020. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/oab-sc-analisa-caso-de-advogado-que-atacou-mari-ferrer,86e3a05cdca8cffc0d4fdd8ed4682d59kuecuda8.html>.
[vii] CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Código de Ética da Magistratura. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/codigo-de-etica-da-magistratura/>.
[viii] CONSELHO Nacional de Justiça abre processo contra juiz Rudson Marcos: “Sessão de Tortura”. Hora do Povo. 04 nov. 2020. Disponível em: <https://horadopovo.com.br/conselho-nacional-de-justica-abre-processo-contra-juiz-rudson-marcos-sessao-de-tortura/>.
[ix]
CASO Mari Ferrer: Juristas criticam advogado, mas anular sentença é difícil. IstoÉ. 05 nov. 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/juristas-criticam-advogado-de-acusado-de-estupro-mas-anular-sentenca-e-dificil/>.

 

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