Por Beatriz Duma.
No dia 3 de novembro de 2020 o The Intercept Brasil tornou público um
vídeo junto a uma matéria acerca do caso da acusação de estupro de Mariana
Ferrer contra André de Camargo Aranha[i].
No vídeo, há trechos de uma das audiências do processo, na qual a vítima do
suposto estupro é intensamente ofendida e atacada pelo advogado do réu, Cláudio
Gastão da Rosa Filho. O conteúdo das falas de Gastão não será repetido nesse
texto, como forma de respeitar Mariana Ferrer e diminuir a circulação de falas
tão danosas.
Além da atitude severamente inadequada e desrespeitosa do advogado do réu,
é importante salientar também como houve negligência do juiz Rudson Marcos
pois, mesmo presente no momento em que Gastão atacava a vítima, o juiz se
manteve omisso e não advertiu o advogado. A audiência em questão pode ser assistida
na íntegra através do canal no YouTube do Estadão[ii].
Após a publicação da matéria e vídeo houve uma grande comoção nacional nas
redes sociais e também ocorreram protestos em grandes cidades brasileiras.
Dentre as várias questões que foram levantadas, o horror sentido por muitas
pessoas ao ver as falas do advogado do réu e a omissão do juiz trouxeram um
interessante debate sobre os limites da ampla defesa em um processo penal
democrático. É sobre esse tema que nos debruçaremos neste texto.
A ampla defesa é um princípio constitucional do ordenamento jurídico
brasileiro e possui status de cláusula pétrea, pois é um dos direitos
fundamentais enunciados no artigo 5° da carta constitucional, no inciso LV[iii].
Isso significa que no decorrer de um processo, seja ele judicial ou
administrativo, é necessário assegurar para as partes em litígio, em especial
ao réu, todos os meios necessário para que ele possa se defender de forma plena
e ampla.
Esse princípio, assegurado desde a formulação original da Constituição, é
um dos mais importantes direitos que todo e qualquer cidadão deve poder
usufruir quando for parte em um processo. Por essa razão, não há nada de imoral
ou ilegal em uma pessoa acusada de um crime ter acesso a uma defesa de
qualidade, seja ela feita por advogado ou defensor público. Por esse motivo
considero que as ofensas direcionadas ao advogado do réu, Cláudio Gastão da
Rosa Filho, pelo simples fato de ter aceitado defender um acusado de estupro,
não são razoáveis. Mesmo a pior das pessoas, quando acusada de um crime, deve
ter o direito de se defender, pois este é um direito fundamental.
Contudo, o que chocou o Brasil no vídeo da audiência não foi o fato de que
André de Camargo Aranha estava sendo defendido por um advogado, mas sim que
este advogado estava atacando verbalmente a vítima do crime alegado. Gastão
mostrou fotos que Ferrer havia postado em redes sociais, tecendo comentários
pessoais de cunho ofensivo, com o objetivo de insultar a vítima. Há um momento
que a própria Ferrer clama para que o juiz intervenha nas falas do advogado e pede
que seja respeitada. Portanto, a questão que fica é: será que o direito
constitucional à ampla defesa abarca as ofensas proferidas a Mariana Ferrer
pelo advogado do réu? Será que vale tudo para a defesa de seu cliente,
inclusive agredir verbalmente a parte contrária?
Antes de responder essa questão, menciono o que o professor e advogado
criminalista Humberto B. Fabretti comentou sobre o caso em uma live no seu
perfil pessoal no Instagram[iv].
Fabretti afirma que muitas vezes vítimas de estupro que prosseguem com uma
denúncia formal contra seus agressores se arrependem de terem denunciado, pois
sofreram mais violência durante o processo. Esse fenômeno é denominado de
vitimização secundária ou revitimização, como observa o professor, pois o
próprio sistema de justiça criminal não funciona de uma maneira que acolha a
vítima, mas sim repete e perpetua a violência contra essa.
Prosseguindo para a análise da conduta do advogado de defesa, o Código de
Ética e Disciplina da OAB no artigo 44 determina que “deve o advogado tratar o
público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo com respeito
[...]”, e no artigo 45 “Impõe-se ao advogado lhaneza, emprego de linguagem
escorreita e polida, esmero e disciplina na execução dos serviços”[v].
Conforme é evidente no vídeo vazado da audiência, o advogado Gastão não teve
respeito pela vítima em seus atos, tampouco empregou linguagem polida, tanto
que já foi instaurado um processo disciplinar na OAB/SC para apurar as
acusações. Caso haja uma condenação por desvio ético, o advogado poderá ter a
carteira da Ordem cassada, conforme informa o portal de notícias Terra[vi].
Portanto, é correto afirmar que, apesar da ampla defesa ser um direito
constitucionalmente assegurado, excessos de conduta que não visam a defesa da
parte, mas sim o ataque à outra não são admitidos no ordenamento jurídico
brasileiro, vide os códigos de ética que permeiam a atividade jurisdicional.
Quanto à omissão do Juiz Marcos, que não interveio quando houve excesso
por parte do advogado do réu, o art 3° do Código de Ética da Magistratura determina
que:
A atividade judicial deve
desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa humana,
objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na relação entre
as pessoas.[vii]
É possível concluir que, ao ser tratada com tanta truculência e
desrespeito, houve violação à dignidade humana de Mariana Ferrer no decorrer do
processo. Como essa violação poderia e deveria ter sido impedida pelo juiz, o
magistrado sofrerá um processo disciplinar frente ao Conselho Nacional de Justiça,
que irá averiguar a conduta do juiz e determinar, caso condenado, as sanções
cabíveis[viii].
Apesar da conduta inadequada do advogado da defesa e do juiz,
especialistas na área creem que dificilmente a sentença absolvendo Aranha será
anulada[ix].
Existem formas de recorrer da sentença, e a defesa de Mariana Ferrer afirmou
que tomará esse caminho.
Por fim, concluo esta análise recapitulando que o direito a ampla defesa,
apesar de abrangente, não admite excessos e abusos. Dessa forma, é inadmissível
que qualquer audiência feita no Poder Judiciário tenha qualquer semelhança ao que
mostrou o vídeo publicado pelo The Intercept Brasil.
[iv] Estupro culposo? Perfil @humbertofabretti. Instagram. 3 nov. 2020. Disponível em: <https://www.instagram.com/tv/CHJlqWRHnNY/?utm_source=ig_web_copy_link>.
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