Por Rafaella Pacheco.
O modelo de democracia agonística foi proposto pela cientista política
pós-marxista belga, Chantal Mouffe. Em sua obra Sobre o Político[1]
ela desenhou uma crítica à perspectiva pós-política de um mundo globalizado,
sem inimigos e consensual. Mouffe refuta a teoria política liberal que nega em
seus modelos de democracia a dimensão antagônica do político, desconsiderando
etimologicamente da palavra democracia a essência de seu prefixo dêmos, compreendido
enquanto divisão. As democracias instituídas pelo mundo consideradas por grande
parte da mídia global e de teóricos políticos em situação de colapso, para
Chantal, isso se deve ao caráter plural e conflitivo inerente a um processo
democrático que é desprezado pelos pensadores políticos liberais.
Mouffe, através da análise das elaborações teóricas de Ulrich Beck e
Anthony Giddens, identificou como problema da retórica da modernização o fato
de que, ao empreender uma negação da natureza constitutiva da fronteira nós/eles na luta política, promove-se o
silenciamento de possíveis contestações políticas do “nós”, ou do “eles”, nesta
relação, bem como, do próprio debate democrático. Desta forma, a negação do
antagonismo do político conduziria para uma possível concretização da dimensão
antagônica na política, através da eliminação do outro.
Portanto, aceitar a política como uma dimensão potencialmente
conflitiva, haja vista que é impactada pela dimensão constitutiva antagônica do
político, significa assumir que a democracia só é possível pois, em sua
essência, reside na existência de um embate antagônico que, através do dissenso
e da diversidade, molda práticas, discursos e instituições que tem por finalidade
o estabelecimento de uma ordem e organização do corpo social.
Penso que o antagonismo não pode ser eliminado, pode apenas ser pacificado temporariamente. Esta é, para mim, uma das tarefas da democracia: encontrar as instituições que permitem ao conflito expressar-se, de forma que não coloque em questão a própria existência da comunidade política e não leve à guerra civil. Meu modelo poderia se chamar modelo de deliberação agonística. Evidentemente, não elimino o elemento de deliberação, não existem só as paixões, mas há que se reconhecer que o antagonismo é ineliminável; que sempre haverá dois projetos hegemônicos que não podem se conciliar; que haverá sempre um caráter partisan na política.[2]
O caminhar para um pluralismo agonístico proposto na teoria política
mouffeana, inicia-se pela instituição do agonismo no campo político, em
contraposição ao antagonismo, através do reconhecimento do “outro” no conflito, enquanto adversário,
e não inimigo. Neste prisma, a pensadora partiu da formulação antagônica de
confrontação schmittiana entre amigo/inimigo,
para o desenvolvimento de uma proposta de confrontação agonística entre
adversários. Enquanto o inimigo é passível de ser eliminado, a proposta
adversarial mouffeana assimila o “outro”
como passível de ser respeitado numa estrutura conflitiva entre forças
políticas.
Portanto, compreendida a necessidade da fronteira nós/eles para a dimensão democrática, a estrutura política
agonística entende que, na defesa da categoria de “adversário”, torna-se possível o estabelecimento de um espaço
simbólico que garanta a legitimidade do “eles”
ocuparem um lugar na luta política. Neste ponto, o pensamento ético de Baruch
de Espinosa acerca das afecções do corpo como viabilizadoras de produção um
conhecimento calcado na consciência de si através da identificação do outro,
torna-se fundamental à pesquisa. Pois, em Mouffe, reconhecer a existência do
adversário como legítima implica no reconhecimento de si também como legítimo
na dinâmica agonística, assumindo o direito de ambos em defender seus
respectivos pontos de vistas.
Além da categoria adversarial que sinaliza as primeiras
possibilidades de inserção da dimensão afetiva enquanto mediadora de um embate
político agonístico, Chantal trabalha a categoria hegemonia, também
crucial para a compreensão acerca do papel das paixões na produção de identificações
coletivas.
Hegemonía es, simplemente, un tipo de relación política; una forma, si se quiere, de la política; pero no una localización precisable en el campo de una topografía de lo social. En una formación social determinada puede haber una variedad de puntos nodales hegemónicos. Evidentemente algunos de ellos pueden estar altamente sobredeterminados; pueden constituir puntos de condensación de una variedad de relaciones sociales y, en tal medida, ser el centro de irradiación de uma multiplicidad de efectos totalizantes[...].[3]
As articulações hegemônicas se dão precisamente por um viés
conflitivo, que é constitutivamente atravessado por antagonismos. E, por isso é
tão estreito o diálogo entre as categorias hegemonia e político,
de tal modo que, a análise de tais articulações e conceituações permite a
compreensão de sua crítica às propostas de mundo unipolar.
Nesta seara, a autora elaborou uma crítica às propostas cosmopolitas
habermasiana e a ultraesquerdista de Hardt e Negri, destacando que a
preocupação da primeira estaria mais sobre uma legitimação dos direitos humanos
que a garantia de um exercício democrático em si; e, a segunda, acreditaria na
eliminação do antagonismo na dimensão política, que para Mouffe é impraticável
pois negar tal elemento é negar a própria democracia. A solução cabível, para
tais problemas volta-se a uma proposta de confronto agonístico, dado pelo
reconhecimento de um nós/eles em
escala hegemônica, pluralizando as hegemonias, aceitando a característica
antagônica indissociável a elas e às práticas decisórias democráticas.
Na defesa da criação de um mundo multipolar, Mouffe, pontuou a
importância em se “encontrar formas de
“pluralizar” a hegemonia”[4].
E como visto, na definição apresentada por ela e Ernest Laclau desta categoria,
sinaliza-se para um potencial agregador desta relação política entre
hegemonias que viabiliza a convergência simbólica de valores comuns.
Daqui, o caminhar em direção a um pluralismo agonístico, que reconhece
elementos fundamentais à constituição de práticas democráticas – o dissenso e a
diversidade – por meio de uma confrontação adversarial no campo político, seja
nacional ou internacionalmente, encontra, para Mouffe, na mobilização das paixões
um meio possível para sua concretização.
Poderíamos dizer que o objetivo da política democrática é transformar um “antagonismo” em “agonismo”. Isto tem conseqüências importantes para o modo como encaramos política. Contrariamente ao modelo de “democracia deliberativa”, o modelo de “pluralismo agonístico” que estou defendendo assevera que a tarefa primária da política democrática não é eliminar as paixões nem relegá-las à esfera privada para tornar possível o consenso racional, mas para mobilizar aquelas paixões em direção à promoção do desígnio democrático.[5]
Entendendo o antagonismo como um conflito que não possui, nem pode vir
a ter, uma solução racional, a cientista política se volta para o potencial
transformador das paixões, enquanto produtoras e circuladoras de afetos comuns,
na tentativa de instituir uma possibilidade de discussão agonística. Neste
ponto da teoria mouffeana, debruçar-se sobre a formação e potencialidades dessa
dinâmica de subjetividades para o favorecimento do confronto entre identidades
políticas coletivas, pode auxiliar no desenvolvimento de uma possível
psicopolítica agonística.
[2] MOUFFE, Chantal. Entrevista. Curitiba: Revista da Faculdade de Direito - UFPR, n.51, 2010. p. 242.
[3] LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: Hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987, p. 237.
[5] MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Trad. Kelly Prudêncio. Florianópolis: Revista Política & Sociedade, UFSC, nº 03, outubro de 2003. p. 16.
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