Por Rafaella Pacheco.*
“O Estado é laico, mas nós somos cristãos” (BOLSONARO, 2020)
Na semana passada, nas atribuições do exercício de seu poder enquanto Chefe do Executivo, nosso presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) sancionou, com vetos, o Projeto de Lei 1581/2020, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PL/AM), que, dentre outras questões como pagamento de precatórios federais e descontos obtidos pela União no combate ao Covid-19, versava também sobre a anistia de dívidas tributárias de templos de qualquer culto. Sendo que, dentre os vetos realizados pelo presidente no referido PL, trataremos em específico ao direcionado ao artigo 8º – que corresponde à emenda proposta pelo deputado federal David Soares (DEM/SP).
"Art. 8º O art. 4º da Lei nº 7.689, de 15 de dezembro de 1988, passa a vigorar com a seguinte redação:
'Art. 4º São contribuintes as pessoas jurídicas estabelecidas no País e as que lhe são equiparadas pela legislação tributária, ressalvadas as vedadas na alínea 'b' do inciso VI do caput do art. 150 da Constituição Federal, na forma restritiva prevista no § 4º do mesmo artigo.
Parágrafo único. Conforme previsto nos arts. 106 e 110 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), passam a ser consideradas nulas as autuações feitas em descumprimento do previsto no caput deste artigo, em desrespeito ao disposto na alínea "b" do inciso VI do caput do art. 150 da Constituição Federal, na forma restritiva prevista no § 4º do mesmo artigo.' (NR)"[1]
O referido dispositivo constitucional mencionado na PL veda a União, e os demais entes federados, de instituir impostos sobre templos de qualquer culto, sendo que, tal vedação recai apenas sobre “o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”[2]. E, de forma mais clara, a alteração proposta por Soares do artigo 4º, da Lei nº 7.689/88, previa a isenção dos templos religiosos da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) por meio da sua exclusão da condição de contribuinte na referida lei; e, ainda, propunha em seu parágrafo único a anulação das multas por não pagamento da contribuição aplicadas pela Receita Federal a tais entidades.
A justificativa apresentada pelo presidente foi a mesma que postou em sua conta no Twitter. Nelas expressou sua aprovação, nada velada, aos seus apoiadores da bancada evangélica do Congresso Nacional, porém, nutriu como argumento de seu veto o temor contra um possível impeachment caso sancionasse o dispositivo.
Apesar de entender meritória e concordar com a propositura legislativa, ao afastar a incidência da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre os templos de qualquer culto, bem como prever a nulidade das autuações realizadas de forma retroativa, estendendo a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, 'b', da Constituição da República, por meio do caráter interpretativo da norma proposta, percebe-se que não foram atendidas as regras orçamentárias para a concessão de benefício tributário, em violação ao art. 113 do ADCT, art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 2000 (LRF) e art. 116 da Lei nº 13.898. de 2019 (LDO), podendo a sanção incorrer em crime de responsabilidade deste Presidente. Outrossim, o veto não impede a manutenção de diálogos, esforços e a apresentação de instrumentos normativos que serão em breve propostos pelo Poder Executivo com o intuito de viabilizar a justa demanda.[3]
No Twitter, o presidente finalizou o assunto com um apelo pela derrubada de seu veto, uma vez que, nas condições de deputados e senadores suas opiniões, palavras e votos são invioláveis civil e penalmente de acordo a Constituição. Deixando de lado as questões principiológicas inerentes à Administração Pública contidas neste pronunciamento que reiteram a importância de pesquisadores e historiadores sempre irem além dos documentos oficiais para a compreensão da conjuntura política instituída, propomos aqui, uma breve reflexão acerca desta relação política-matrimonial da Igreja com o Estado.
Sim, sabemos que a expressão “templos de qualquer culto” é ampla com o objetivo de contemplar toda a diversidade religiosa existente em nosso território nacional. Mas, precisamos ressaltar que, de acordo os dados apresentados neste ano pelo Datafolha[4], 81% da população brasileira é adepta do cristianismo, sendo que 50% corresponde aos católicos e 31% aos evangélicos. Outro fato, que não é de se admirar, é que o deputado federal Soares – proponente do artigo 8º da PL supracitada – é um dos 195 parlamentares que compõe a Frente Parlamentar Evangélica do nosso Congresso Nacional, e, ainda, é filho do pastor R. R. Soares que fundou a Igreja Internacional da Graça de Deus – instituição religiosa, apontada pela Folha de São Paulo[5], como uma das principais devedoras do Estado.
O governo ultraconservador de Bolsonaro se elegeu com grande apoio das igrejas evangélicas e, não à toa, possui em seu corpo ministerial os pastores Damares Alves, André Mendonça e Milton Ribeiro. E, em julho deste ano, prometeu, após um culto evangélico realizado no salão da Câmara dos Deputados, que uma de suas nomeações a juiz da Suprema Corte será “terrivelmente evangélico”[6].
Mas afinal, além da supressão da diversidade histórico-cultural e demais manifestações de crenças, e da afronta à laicidade de nosso Estado, objetivamente declarada em nossa Constituição (e frequentemente desconsiderada por representantes e apoiadores deste governo), qual o outro problema em aliar preceitos cristãos às diretrizes políticas do nosso país?
“Porque o que defende os exploradores e o que ajuda a prolongar este regime presente de miséria, esse é que é o inimigo mortal do proletariado, quer esteja de batina ou de uniforme de polícia.” (LUXEMBURGO, 1905, p. 17)
A questão, muito bem elaborada pela pensadora marxista Rosa Luxemburgo, não reside nos preceitos originais da Cristandade em si, que foram defendidos pelos primeiros apóstolos cristãos – estes, classificados pela filósofa como ardentes comunistas[7]. O problema, reside nos discursos de ódio e alianças político-econômicas (outrora com a nobreza e depois com a burguesia) com vestes moralistas em que tais instituições religiosas articulam e legitimam, bem como, na instrumentalização da fé como ferramenta de manipulação e adestramento político de seus fiéis.
Se de fato a questão se depositasse em preceitos cristãos originais, de acordo a análise histórico-materialista de Luxemburgo sobre o desenvolvimento do cristianismo em direção à hierarquização do clero e protagonismo da Igreja em alianças de poder estatal, podemos perceber que, tais preceitos estão infinitamente distantes de governos defensores de uma sociedade capitalista que excluem e oprimem os trabalhadores, os pobres e as “minorias” sociais.
Portanto, podemos perceber a gravidade que a proposta de anistia às dívidas das Igrejas representa; do mesmo modo que projetos como Escola Sem Partido (que visava, entre outras, a restrição de atuação de professores em relação ao ensino sexual); o crescente aumento da bancada parlamentar evangélica aliada a um poder executivo, administrado por um presidente sem partido, que transita entre liberais, militares e cristãos fervorosos através de alianças e frases ora moralistas, ora polêmicas (ou ambas), não prezando por qualquer impessoalidade ideológica em pronunciamentos e tomadas de decisões.
Concluímos, desta forma, que a institucionalização política de discursos ideológicos (não cristãos, mas de outra instituição) da Igreja em nosso país se mantém por ser um discurso de alta mobilização e manipulação social, que pode, pelo artifício da retórica e alto poder de afecção, andar ao lado de discursos como a segurança do cidadão de bem pela liberação do porte e posse de armas de fogo, ou a criminalização do migrante e refugiado, ou o combate à “ideologia de gênero” e a militância política nas escolas e universidades.
O veto do presidente Bolsonaro, como já mencionado e publicamente declarado/descarado, foi mera tática de autopreservação do poder. Um ato formal para manter sua gestão sem uma possível acusação por crime de responsabilidade fiscal, bem como, um ato simbólico para manter a chama da analogia matrimonial do seu relacionamento com o ministro Guedes ainda viva. Mas, seu pronunciamento em redes sociais de apoio ao perdão das dívidas das Igrejas e incitação de parlamentares à derrubada de seu veto evidencia, mais uma vez, a banalização da política e o esvaziamento axiológico de diretos sociais e fundamentais que vivemos.
IMAGEM: Presidente Bolsonaro ao lado do Pastor R. R. Soares, em cerimônia de celebração de 40 anos da Igreja Internacional da Graça de Deus. Foto: Carolina Antunes. Fonte: Folha de São Paulo, 2020.
[1] Emendas do PL 1581/2020. Brasília: Câmara de Deputados, 2020. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_emendas;jsessionid=4A369843C4123D8FFBE7CDB92878BB85.proposicoesWebExterno2?idProposicao=2243108&subst=0>. Acesso em: 20.09.2020.
[2] BRASIL. Constituição Federal – artigo 150, IV, § 4º. 1988.
[3] Mensagem nº 517, de 11 de setembro de 2020 – veto presidencial. Brasília: Presidência da República, 2020. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2020/lei-14057-11-setembro-2020-790631-veto-161486-pl.html>. Acesso em: 20.09.2020.
[4] G1. 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. São Paulo: G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml>. Acesso em: 20.09.2020.
[5] CARVALHO, D.; URIBE, G. Bolsonaro indica que vetará perdão a dívidas de igrejas. São Paulo: Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/bolsonaro-indica-que-vetara-perdao-a-dividas-de-igrejas.shtml>. Acesso em: 20.09.2020.
[6] GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Um ministro “terrivelmente evangélico” a caminho do Supremo Tribunal Federal. Brasília: El País, 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/10/politica/1562786946_406680.html>.Acesso em: 20.09.2020.
[7] De acordo a Luxemburgo em seu texto O Socialismo e as Igrejas (1905), o cristianismo funda-se num período de grande instabilidade da Roma Antiga, insurgindo como um alento aos pobres e deserdados. “A religião crista aparecia a estes infelizes seres como um cinto de salvação, uma consolação e um encorajamento e tornou-se, logo desde o princípio, a religião dos proletários romanos. Em conformidade com a posição material dos homens pertencentes a esta classe, os primeiros cristãos fizeram a proposta da propriedade em comum – o comunismo. [...] Uma religião que defendia o povo pedia que os ricos partilhassem com os pobres as riquezas que devem pertencer a todos e não a um punhado de pessoas privilegiadas; uma religião que pregava a igualdade de todos os homens teria grande sucesso.” (LUXEMBURGO, 1905, p.4)
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