No mês de agosto de 2020, o atual Ministro da Economia Paulo Guedes sinalizou que pretende criar uma tributação para a compra de livros, revistas, periódicos etc. no valor de 12%. Conforme descreve o portal Uol Economia “a ideia do governo é criar uma nova Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS), substituindo PIS e COFINS”[i]. A justificativa do Ministro foi de que os livros são produtos consumidos apenas pela elite, e portanto a taxação não geraria grande impacto econômico na classe que os consome. Não surpreende que uma visão tão retrógrada sobre o consumo de livros venha de um ministro que, em transmissões ao vivo em redes sociais, acabou revelando que em sua estante pessoal não existem muitos exemplares desse item que ele mesmo classificou como um privilégio das elites.
Vários setores da sociedade se manifestaram de forma contrária a essa medida, como o movimento “Defenda O Livro” e a União Brasileira de Escritores (UBE), que publicou um manifesto criticando de maneira direta não somente a tributação proposta, como também a justificativa dada pelo Ministro da Economia de que a leitura é um privilégio de poucos.
Sob o ponto de vista constitucional, que impera sobre as vontades de qualquer governante, de acordo com o artigo 150, inciso VI, alínea “d” é proibido a qualquer ente federado instituir impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”[ii]. Essa parte do texto constitucional foi proposta pelo autor brasileiro Jorge Amado durante a Assembleia Constituinte de 1946, a Emenda 2.850 que foi ratificada e ampliada na Constituição de 1988[iii]. Desde a vigência desta, essa alínea não foi alterada ou retirada, portanto ela tem eficácia plena. Dessa maneira, independentemente de qualquer argumentação oferecida pelo Ministro Paulo Guedes, a tributação de livros está claramente em desacordo com o texto constitucional, e não deve ser implementada.
Superando essa primeira explicação da inconstitucionalidade da taxação sobre livros, pretendo ampliar a discussão sobre esse assunto a partir de um texto de Antonio Cândido, renomado estudioso e crítico de literatura brasileiro. “O Direito À Literatura”[iv] foi um texto escrito em 1988, época da redemocratização brasileira e da elaboração da nossa atual Constituição. Nesse contexto, Cândido constrói um raciocínio de como a literatura é um direito humano, inclusive para as classes menos favorecidas.
O autor compreende que a base dos direitos humanos é “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo”[v]. Nesse ponto existem alguns bens, como casa, comida, educação e saúde, que todos concordam que são bens essenciais a todos os indivíduos, independentemente do valor de sua renda ou posição social. Contudo, quando se discute o acesso à literatura, o autor afirma que uma boa parte das pessoas não considera a literatura como um bem tão essencial à vida quanto os que foram citados anteriormente.
Cândido menciona um conceito criado por Louis-Joseph Lebret, renomado sociólogo francês e fundador do movimento Economia e Humanismo, sobre a distinção entre “bens compressíveis” e “bens incompressíveis”. Esses últimos, os incompressíveis, são bens que não podem ser negados a ninguém, ou seja, são essenciais a todos. Nessa perspectiva podemos enquadrar os direitos humanos como um movimento que visa assegurar a todos os seus bens incompressíveis. Antonio Cândido amplia o rol desses bens quando argumenta que “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física, em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual”[vi], sendo essa integridade não restrita a uma visão religiosa, como também humanística.
Para justificar a comparação do direito à literatura como um bem tão essencial a todos quanto os demais direitos, Cândido demonstra como a literatura está presente em todas as camadas sociais, dos mais pobres aos mais abastados, porém aos primeiros é relegada a cultura dita popular, enquanto que aos últimos reserva-se a cultura erudita. O contato com a literatura seria, de acordo com o autor, traço essencial para a formação da personalidade do indivíduo e o desenvolvimento de sua humanidade. “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”[vii] Afirma o crítico, e reforça que “Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”[viii].
Apesar das elites reconhecerem como essencial o contato com a literatura erudita para a formação de seu pensamento, Cândido aponta como elas falham em reconhecer que uma pessoa que more em uma favela possa também ler Dostoiévski e ouvir Beethoven. Um exemplo contemporâneo desse mesmo comportamento foi uma situação que ocorreu com Audino Vilão – nome artístico de Marcelo Marques, jovem de 19 anos e estudante de história, que em seu canal no Youtube traduz as ideias de grandes filósofos para a “gíria da quebrada”, como o mesmo descreve. Audino contou em uma live com Leandro Karnal como um de seus críticos afirmou que “a favela não tem demanda pela filosofia. Para quê levar a filosofia na favela?”[ix]. Ele refuta veementemente essa ideia, afirmando que “filosofia não é demanda de classe social, é demanda de humanidade”.
Além disso, em seu texto, Cândido demonstra como a literatura se desenvolveu enquanto ferramenta de promoção de direitos humanos, sendo utilizada para desmascarar a restrição ou negação destes. O crítico crê que a inserção do pobre como protagonista literário a partir do Romantismo do século XVIII, e no Brasil a partir da década de 1930, foi um fator importante para o reconhecimento desse sujeito enquanto um indivíduo merecedor de direitos, inclusive o de acesso à literatura erudita.
Cândido afirma que para que esse bem incompressível deixe de ser privilégio de uma pequena elite, é necessário que haja uma distribuição equitativa de bens, pois “quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura”[x]. Relembro que, segundo uma pesquisa do Instituto Pró-livro, publicada em 2016, o brasileiro lê, em média, 2,43 livros por ano. Além disso, cerca de 30% da população nunca comprou um livro.[xi] Partindo da visão de Cândido, esse é um indicador que reflete a má distribuição de riquezas no país.
A partir da análise contundente feita por Cândido em 1988, é necessário que nós percebamos como a questão da taxação de livros, revistas e periódicos que está sendo proposta por Paulo Guedes, além de ferir expressamente o artigo 150 da Constituição, também é um profundo ataque a esse direito humano tão essencial que é a literatura. Caso essa medida seja implementada restará a muitos brasileiros uma semelhança com o ministro, a estante vazia.
“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”[xii]
[i] UNIÃO Brasileira de Escritores se manifesta contra tributação de livros. Uol Economia. 17 ago. 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/17/uniao-brasileira-de-escritores-se-manifesta-contra-tributacao-de-livros.htm>.
[ii] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
[iii] CINTRA, André; RUY, José Carlos. Livros sem impostos: uma conquista democrática, um legado comunista. Rádio Peão Brasil. 19 ago. 2020. Disponível em: <https://radiopeaobrasil.com.br/livros-sem-impostos-uma-conquista-democratica-um-legado-comunista/>
[iv] CÂNDIDO, Antonio. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011.
[v] Ibid., p. 174.
[vi] Ibid., p. 176.
[vii] Ibid., p. 182.
[viii] Ibid., p. 188.
[ix] FILOSOFIA Pop | Audino Vilão e Leandro Karnal. Canal Prazer, Karnal. YouTube. 20 ago. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SGVQHc6DZlo&t=1413s>.
[x] CÂNDIDO, 2011, p. 189.
[xi] ROSA, Joseane. Dia do leitor: desafios da leitura no Brasil. Educa Mais Brasil. 07 jan. 2020. Disponível em: <https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/dia-do-leitor-desafios-da-leitura-no-brasil>.
[xii] CÂNDIDO, 2011, p. 193.
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