22/07/2019

Me indica um livro: No seu pescoço – Chimamanda Ngozi Adichie








            Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nascida em Enugu, na Nigéria, e escreveu romances como Hibisco Roxo (2003), Americanah (2013) e o premiado Meio Sol Amarelo (2006), este último, uma tocante narrativa sobre a Guerra do Biafra. Dentre suas obras, cabe destacar um ensaio adaptado de uma conferência TED, de nome Todos devemos ser feministas, que além de fundamental a todos que anseiam por uma sociedade justa e feliz, traz uma marca presente a literatura de Adichie, o feminismo. Sua escrita permite ao leitor acessar contextos diversos através de envolventes delineações de gestos, memórias e vivências, que tornam a identificação, ou mesmo a empatia, com as personagens e a narrativa em si, inevitáveis.
Adichie traz em suas obras uma reflexão constante sobre o exercício da alteridade em relações que trabalham questões migratórias, de gênero, de identidade e de raça em ambientações sensíveis e precisas que as contextualizam. A alteridade é basilar, não apenas à autora nigeriana que a utiliza como um meio de embate e identificação em suas obras, mas também à Antropologia, sendo trabalhada logo de início nas aulas da disciplina propedêutica, do curso de Direito do UNICURITIBA. Com o texto de François Laplantine[1], minha querida professora, Karla Pinhel Ribeiro, iniciou a turma ao estudo do ser humano em sua diversidade. O professor de etnologia francês, em seu texto, pontuou que a descoberta da alteridade foi elementar à revolução epistemológica da abordagem antropológica. Nas palavras do antropólogo:

Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a ideia de que existe um “centro do mundo”, e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutação de si. (...) A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade, correlativamente deixar de rejeitar o presumido “selvagem” fora de nós mesmos. Confrontados à multiplicidade, a priori enigmática, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalização do social.[2]

Logo, como podemos perceber através da afirmação de Laplantine, a alteridade corresponde a uma relação com o outro, que amplia nosso conhecimento sobre o que nos era desconhecido e sobre nós mesmos. Ou seja, o exercício da alteridade nos promove autoconhecimento enquanto humanidade. E, é neste ponto que a obras ficcionais de Adichie nos toca de forma tão marcante. Ela promove imersões antropológicas à cultura africana que molda suas personagens e, estas, nos são apresentadas em suas relações, perspectivas e vivências. As narrativas possuem uma forte identidade marcada por um olhar particular, o de uma autora mulher nigeriana negra, que nos revela realidades tão distintas e sentimentos tão afins.
A leitura que recomendamos é a obra No seu pescoço[3], que contém doze contos de Adichie e, como a própria apresentação do exemplar descreve, trata-se de uma obra que “explora a colisão entre duas culturas e as consequências deste encontro para a alma humana”. A autora ao retratar situações de instabilidades políticas e conflitos armados, trabalhando os atritos e inquietações que cercam temas como migração e gênero, em ambientes domésticos, acadêmicos e sociais, promove reflexões importantes sobre a alteridade e sobre a mulher. Seus contos nos fazem ponderar sobre quem somos nós diante do outro, diante das situações que se apresentam, e diante de nós próprios.
É uma obra que pode ser lida na ordem que prouver ao leitor, pois cada conto apresenta personagens e situações distintas que, como já mencionado, trazem a alteridade como fio condutor através do olhar feminino sobre as relações e situações narradas. Com linguagem acessível, a leitura torna-se rápida, mas ao final de cada conto exige-nos um respiro para reflexões existenciais, sociais e culturais.
O primeiro conto do livro, A cela um, apresenta-nos a história de um jovem rapaz, Nnamabia. É um conto impactante que retrata o contato de Nnamabia com a violência, desde pequenas contravenções da infância à violência do Estado dentro do sistema carcerário. E, o ponto forte da narrativa reside no fato dele ser contado pela perspectiva da irmã de Nnamabia.
O conto seguinte, trabalhado em terceira pessoa, de título Réplica, apresenta a vida de Nkem uma mulher nigeriana casada com Obiora, descrito como um homem nigeriano rico. Ela mora nos Estados Unidos com seus filhos, enquanto seu marido morava nos dois países, Nigéria e Estados Unidos, devido aos negócios. O conto traz os anseios e aflições de Nkem em sua adaptação a um novo país, as imposições culturais implícitas em ser uma mulher nigeriana casada e a construção de sua identidade. O penúltimo conto do livro traça um paralelo com Réplica, de nome Os casamenteiros, traz a história de Chinaza Agatha Okafor, narrada em primeira pessoa. Ela, também nigeriana, casa-se com Ofodile Emeka Udenwa, que prefere ser chamado por seu nome americano, Dave. Nesta história o eixo central reside na assimilação e indignação de Chinaza deste novo contexto cultural que lhe é imposto e ao mesmo tempo idolatrado por seu marido.
Uma experiência privada, é o terceiro conto da obra (provavelmente o meu conto favorito de Adichie), relata o encontro de Chika, uma jovem igbo de família cristã estudante de medicina, e “a mulher”, uma feirante mulçumana que vende cebolas. Ambas se refugiam em uma pequena loja abandona utilizada por elas como abrigo improvisado durante um conflito armado, na cidade de Kano. É uma narrativa extremamente sensível em que, o encontro entre duas pessoas tão diametralmente opostas em crença, cor e classe, numa situação de medo e instabilidade encontram-se espelhadas, em anseios e sentimentos.
O conto Jumping Monkey Hill, é especial aos aspirantes a escritores, e principalmente às feministas, pois o ambiente da narrativa se dá nos arredores da Cidade do Cabo, em que ocorre um Workshop para Escritores Africanos. A personagem principal é a escritora Ujunwa Ogundu, de Lagos, Nigéria, e o conto relata o encontro destes escritores, trata de violência de gênero e o processo criativo de Ujunwa.
O conto que leva o título do livro é inebriante, de início No seu pescoço coloca o leitor como personagem principal da história, refere-se a personagem como “você”, e em duas páginas a identificação torna-se inevitavelmente angustiante. Se você, mulher, já foi estereotipada, ou diminuída, ou violada por causa da sua cor, ou por ser mulher, se você vê a realidade desigual que a cerca, se já se sentiu invisível, se sua angústia envolveu o seu pescoço quase deixando-a sem ar, então este é um conto de Adichie que você não pode deixar de ler.
Estes são alguns dos contos que mais me impactaram nestas férias, mas os doze contos de Adichie merecem a sua atenção e reflexão. E, leitoras e leitores, espero que o contato com obras como a de Adchie promova o exercício precioso da alteridade que nos faz questionar o lugar que ocupamos no mundo, e o próprio meio que nos cerca.
Uma boa leitura a todxs!


[1] LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.
[2] LAPLANTINE, 1998, p. 22-23.
[3] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. No seu pescoço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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