09/04/2013

PATERNALISMO E AUTONOMIA – UMA FALSA DICOTOMIA?


Texto aprovado no VIII Congresso Mundial de Bioética - Gijón - Espanha - 2013
PATERNALISMO E AUTONOMIA – UMA FALSA DICOTOMIA?


Dra. Andreza Cristina Baggio
Dra. Fernanda Schaefer Rivabem
Curitiba – Paraná – Brazil




ABSTRACT

A prática médica sofre, atualmente, as mais diferentes pressões (em especial em virtude das novas tecnologias), mas, talvez a maior delas, seja a necessidade de abandonar completamente os ideais paternalistas, a fim de se garantir respeito à autonomia do paciente e consequente respeito à sua dignidade. Esta comunicação tem por objetivo demonstrar como a relação médico-paciente evoluiu ao ponto de hoje ser necessário pensar a humanização da prática médica e a informação médica como um direito fundamental do paciente. A partir de uma pesquisa multidisciplinar, elegeu-se como ponto harmonizador o princípio da confiança, princípio de natureza ética e jurídica que não só equilibra paternalismo e autonomia, como, principalmente transforma essa relação em uma relação dialogada e de cooperação mútua, capaz de garantir o desenvolvimento de uma relação equilibrada.

Key words: paternalismo; autonomia; dignidade; confiança; informação.


iNTRODUÇÃO

A velocidade em que as informações giram o mundo e as constantes e espantosas inovações (bio)tecnológicas têm influenciado sobremaneira a prática médica e, especialmente, o próprio direito à saúde, criando inevitáveis tensões entre direitos fundamentais, produzindo expectativas nem sempre legítimas e colocando em risco até mesmo a noção de dignidade da pessoa humana.

Dentre as questões que se apresentam, importante é discutir o verdadeiro alcance da autonomia do paciente e do dever do médico à informação. Discussão que parece constantemente colocar em lados opostos médicos e pacientes e que costumeiramente procura criar uma dicotomia entre o clássico paternalismo e o incipiente reconhecimento da autonomia do paciente.

O que este ensaio pretende demonstrar é que contrapor paternalismo e autonomia é criar uma falsa e indevida dicotomia que acaba tornando uma relação que já é naturalmente conflitiva em uma relação essencialmente conflitiva, o que pode colocar em risco saúde e recuperação do paciente.

De fato, a relação médico-paciente é, a priori, assimétrica: o médico detém o conhecimento e os meios técnicos, enquanto o enfermo se lhe apresenta com ausência de saúde, colocando bens indisponíveis como vida e integridade física e psíquica à mercê de sua atuação. Essa assimetria natural, no entanto, não se deve caracterizar pelo desequilíbrio, mas sim, por consideração e respeito mútuos, sustentáculos do diálogo que entre eles deve existir e da confiança necessária ao desenvolvimento desta relação.

Contudo, as exigências da sociedade contemporânea não permitem a criação de vínculos afetivos com pessoas que são consideradas clientes, bem como essa proximidade não é aconselhada pelos diversos códigos de ética médica. Essa distância afetiva acabou não só despersonalizando a relação médico-paciente como, também, fez por muitos anos prevalecer o ideal paternalista como informador absoluto desse vínculo. Por isso, importante discutir o verdadeiro alcance da autonomia e se ainda existe lugar para o paternalismo.

1.    Relação médico-paciente

A evolução da Medicina e do próprio direito à saúde afetaram sobremaneira a relação médico-paciente. Na Modernidade (séculos XV a XIX), a recuperação dos ensinamentos hipocráticos e galenos em sua pureza paternalista e as condições de desenvolvimento humano (social e econômico) precárias, acabaram levando à grande crise dessa relação, que se tornou ainda mais verticalizada. Essa visão trouxe, por consequência, a sub-valoração e degradação do paciente, transformando-o em mero objeto da atuação médica (desumanização da Medicina) que se realizava em uma interação meramente técnica e instrumental limitada apenas ao orgânico e que permitiu o prevalecimento de um interesse maior na enfermidade do que no enfermo e a exacerbação do paternalismo médico.

No século XX o desenvolvimento biotecnológico agravou essa situação, fazendo com que a Medicina se tornasse extremamente especializada e racionalista (cega e surda[1]), ou seja, ainda mais científica e menos humana (Medicina Tecnocêntrica), permitindo que a adoração à técnica, à tecnologia e a ambientes tecnicamente perfeitos prevalecessem sobre o respeito ao ser humano. O desenvolvimento social e tecnológico das ciências médicas embora tenha retirado a aura de sacralidade que pairava sobre o profissional médico, retardou o reconhecimento da autonomia do enfermo em tomar decisões.

Com a chegada do século XXI ganhou força a preocupação em humanizar e democratizar a relação médico-paciente. Movimento que quebra o ideal organicista valorizando a dignidade da pessoa humana, e levando a Medicina a repensar o vínculo eminentemente paternalista de submissão do paciente a todas as decisões do facultativo, para se realizar em uma relação interpessoal que reconhece a autonomia do enfermo e é protegida não apenas por normas éticas, mas também, pelo Direito. Coloca-se, dessa forma, ênfase não somente no orgânico, mas também, nas demais dimensões da pessoa humana que implicam respeito à sua individualidade e o seu reconhecimento como parte de um grupo social. Afirma Elio Sgreccia (2002, p. 197) que

O doente (ou alguém por ele) que tomou consciência de seu estado de saúde e de seus limites, que reconhece não ser competente no campo da doença que o ameaça e diminui a sua autonomia, tendo em vista recuperar ou prevenir prejuízo à sua autonomia, toma a iniciativa de se dirigir a outra pessoa, o médico, que, por sua preparação e experiência da profissão é capaz de ajudá-lo. O doente permanece sendo ator principal da administração da saúde. O médico que aceita ajudá-lo é também ele ator, mas no sentido de quem colabora com o sujeito principal ou para um determinado fim [nos limites éticos e jurídicos] [sem grifo no original].

Sabe-se que “la medicina es una ciencia; la profesión médica es el ejercicio de un arte baseado en ella” (Hans JONAS, 1997, p. 99). Arte que se concretiza não em compreender um problema clínico em uma parte do corpo, mas sim, em entendê-lo num ser humano considerado em sua integralidade bio-psíquica-social. Assim, ainda que o objeto da atuação médica seja o corpo humano (e, por consequência, a saúde), não pode o profissional fazer abstração da totalidade do paciente, em especial, no que se refere à sua liberdade de escolha (autodeterminação). Deve o facultativo saber, ainda que intuitivamente, que ao entrar em contato com o corpo doente, está automaticamente tomando contato com questões íntimas (e até secretas), aproximando-se, dessa forma, de uma pessoa com necessidades especiais e diversas, considerando, pois, que não é possível o adequado exercício da Medicina se não for de maneira personalizada.

Como toda arte, a Medicina também possui objetivos, que se realizam em três grandes níveis de complexidade: a complexidade das enfermidades; a complexidade dos seres humanos e a complexidade das interações possíveis entre enfermos e enfermidades. Por isso, José Fermín Pietro Aguirre (2001, p. 1) afirma que a relação médico-paciente se desenvolve em três momentos distintos que se aprofundam à medida que a relação se desenvolve e que exigem linguagem diferenciada. São eles,

1-      Llamada del paciente. El médico contesta volcándose en su ayuda con una distancia afectiva mínima. [...]. El lenguaje no verbal[2] será el protagonista, debiendo transmitir una acogida calurosa y una disposición incondicional de ayuda [...].
2-      Alejamiento u objetivación. El enfermo se convierte en un objeto de estudio y la distancia afectiva se amplia de forma considerable. Es el período de la anamnesis, las exploraciones y pruebas diagnósticas, fase de la relación médico-paciente en que el la neutralidad afectiva es necesaria, aunque dura para el enfermo. En esta fase el médico buscará, mediante lenguaje verbal, obtener la mayor información posible [...]. El lenguaje verbal proporcionará al médicos datos imprescindibles para el diagnóstico y tratamiento y, al mismo tiempo mediante lenguaje no verbal se continuará transmitiendo interés especialmente.
3-      Personalización. Una vez establecido el plan terapéutico a seguir el enfermo se convierte en persona que sufre y con el hay que establecer una interrelación humana. Durante esta etapa tiene lugar el tratamiento biológico y psicoterápico del paciente. [...]. En la tercera fase se desarrollará la labor retórica del médico. La comunicación informativa-persuasiva y psicoterápica del médico dirigida al enfermo y sus familiares constituyen los aspectos retóricos de la práxis médica.

São fases multidimensionais que nem sempre se desenvolvem de maneira harmoniosa ou que se possa facilmente perceber a mudança de uma para a outra, mas que, obrigatoriamente, devem promover completa interação entre médico e paciente, permitindo que estabeleçam um diálogo pautado pela confiança e pelo respeito (e a identificação da linguagem utilizada pelo médico traz importantes pistas de como o relacionamento se desenvolve).

Pode-se, então, afirmar que a relação médico-paciente se realiza em três grandes dimensões intimamente e obrigatoriamente interligadas: socioeconômica; técnico-científica e intersubjetiva de ajuda. Portanto, para além do inegável valor social que à profissão médica se confere, é preciso tratá-la como uma relação sempre interpessoal e jurídica e que, por isso, não se submete apenas a códigos de ética, mas sim a leis que contém regras e princípios que informam a prática médica.

A visão humanista dos atos médicos faz com que a relação médico-paciente passe a ser regida por diversos princípios éticos e jurídicos que tendem a ser um ponto de equilíbrio face às forças de mercado. Entre esses princípios, destaca-se, por sua relevância e importância para o presente trabalho o da confiança, princípio que visa preservar equilibrada a relação médico-paciente.


2.    Princípio da confiança: o elo necessário entre paternalismo e autonomia

Em 1927 declarou o médico Joseph Collins (2008, p. 607-609) que “the longer I practice medicine the more I am convinced that every physician should cultivate lying as a fine art. [...]. No one can stand the whole truth about himself; why should we think he can tolerate it about his health, and even though he could, who knows the truth?[3]

Analisando-se a relação médico-paciente nos dias atuais, pode-se afirmar que a assertiva infelizmente ainda se verifica na prática médica e que a gratidão e a confiabilidade se perdem como expressão do relacionamento entre médico e paciente, transformando-se em um vínculo perverso que afirma: ninguém é confiável.

Assim, o dever de veracidade, antes um princípio informador da relação médico-paciente, passa a ser mitigado pela banalização e valorização da mentira, “as pessoas estão exageradamente familiarizadas com ela a ponto de poucas quererem saber e viver com a verdade” (Angela Maria Pires CANIATO, 2007, p. 96), uma vez que essa pode ser muito dura e provocar sofrimento. Esconder ou distorcer a verdade do paciente passou a ser não apenas um exercício de poder, mas uma ideologia eticamente aceita (até mesmo pelos Códigos de Ética Médica) e marcadamente paternalista, pronta a ocultar a realidade da doença que afeta o doente, ignorando o seu desejo (e direito) de ser sobre ela informado; ou pronta para falsear a real finalidade de um tratamento.

Desloca-se, dessa forma, o foco da discussão: ao invés de se focar na pergunta sobre quais seriam as excepcionais justificativas para mentir; coloca-se ênfase na busca de se saber se os médicos devem ou não contar a verdade. Ora, uma mentira é uma mentira, não interessa por quem ou como é contada e, portanto, é conduta que deve ser condenada, não contando os médicos com especial autorização para ocultar ou falsear a realidade (baseados em sua visão subjetiva desta), ainda mais quando se trata de conduta tendente a obtenção do consentimento para tratamento ou coleta de dados clínicos.

Muito se fala sobre o direito à verdade, mas na realidade, o que se pretende é a possibilidade de exercer objetivamente o direito à informação, não se restringindo, portanto, à verdade subjetivamente considerada[4]. A relação médico-paciente não pode ser marcada por omissões propositais, mas sim, pela possibilidade do próprio doente escolher o que deve ou não lhe ser revelado e para quem pode ser revelado. Afinal, como poderia o paciente livremente decidir se não conhece toda a verdade sobre seu estado de saúde ou sobre a destinação a ser dada a seus dados clínicos? No entanto, para que a escolha seja realmente livre, é preciso se ter em mente noções de confiança, até porque, em tempos de sociedade hipercomplexa, a confiança deve permear todas as relações interpessoais.

Como explica Niklas Luhmann (1996, p. 14), a atual sociedade vê-se diante de uma extrema complexidade, e nessa perspectiva fica evidente que as relações humanas já vêm habitualmente carregadas de certa carga de desconfiança. Para o autor (1996, p. 14),

A questão da complexidade define o problema fundamental a partir do qual a confiança pode ser analisada funcionalmente e comparada com outros mecanismos sociais, funcionalmente equivalentes. Onde há confiança há aumento de possibilidade para a experiência e a ação; há possibilidade do aumento da complexidade do sistema social; e também há um aumento do número de possibilidades que podem reconciliar-se com sua estrutura, porque a confiança constrói uma forma mais efetiva de redução da complexidade.

No mesmo sentido, Ricardo Luiz Lorenzetti (2005, p. 38) afirma que a sociedade, atualmente, vive a era da prestação de serviços e produtos por meio dos chamados ‘sistemas expertos’. Estes sistemas se formam quando os prestadores de serviços apresentam-se como detentores da técnica e experiência profissional, de modo que só resta aos seus clientes confiar na tal experiência que se diz existente. Este é também o entendimento de Anthony Giddens (1991, p. 101-105), para quem a sociedade vive a era dos sistemas especializados, que “dispõem de modos de conhecimento técnico que têm validade independente dos praticantes e dos clientes que fazem uso deles” e “penetram em todos os aspectos da vida social nas condições de modernidade”. Para o autor, os sistemas especializados “não se limitam às áreas tecnológicas, mas estendem-se às relações sociais e às intimidades do eu”. Estes sistemas especializados dependem essencialmente da confiança, definida por ele como “crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)”.

E proteger a confiança, é também respeitar a dignidade da pessoa humana, sendo este um valor intrínseco ao direito à vida. De fato, para o ser humano, sentir-se digno é ser respeitado, valorizado, lembrado em suas expectativas, reforçado em suas qualidades. O sentimento de dignidade para o homem é aquele de força e coragem que impulsiona o viver. Quem busca a realização de seus sonhos e o cumprimento de suas metas de bem estar, a constituição de uma vida de satisfação psíquica, emocional e econômica, necessita sentir o reconhecimento de seus esforços e o salutar desenvolvimento de suas atividades em consonância com a sua inserção no meio social onde vive, expressando-se neste contexto a proteção à sua dignidade.

A dignidade da pessoa humana está relacionada com a defesa dos direitos humanos fundamentais, sob a noção de que dignidade é o atributo do ser. É a natureza do ser humano que gera a necessidade de respeito às suas necessidades básicas, independentemente de sua origem, condição social, econômica, etc. No tocante à relação médico-paciente, portanto, o direito deste à informação acerca de seu real estado de saúde, ou mesmo em optar pela omissão dessas informações estão intimamente relacionados com a tutela da sua dignidade e a confiança que deposita em seu médico.

Este direito à informação decorre da vulnerabilidade do paciente, que retrata a situação de submissão, de sujeição à prática médica que o torna absolutamente dependente da técnica do profissional de saúde. O médico detém o conhecimento técnico, e tal fato o torna responsável perante o paciente quanto à utilização deste conhecimento. Assim, a informação, na relação médico-paciente, deve ser tratada como um direito fundamental, pois garante a escolha digna quanto aos procedimentos, técnicas, métodos de cura, e mesmo o direito a não ser informado.

É de se dizer, ainda que, a informação, enquanto direito fundamental de qualquer ser humano, decorre da boa-fé objetiva, e propicia o equilíbrio nas relações interpessoais, tutela interesses de solidariedade e proteção à dignidade humana, e valoriza a confiança depositada pelo doente na técnica médica. Aliás, a informação deve ser tratada na relação entre médico e paciente como um dever secundário, ou um dever de conduta, sendo possível, inclusive, a responsabilização do profissional de saúde pela ausência de adequada informação.

No que diz respeito às relações entre médicos e pacientes, quanto maior a confiança por este depositada naquele, maior deverá será o grau de certeza quanto ao respeito ao direito à informação, já que, como dito acima, não dispõe o paciente vulnerável de dados  precisos acerca de sua situação de saúde, senão aqueles em poder do seu médico. Lembre-se, portanto, que a confiança é valor que merece tutela, principalmente porque dela nascem expectativas legítimas. A violação das expectativas nascidas de comportamentos geradores de confiança gera responsabilidades.

Assim, os frágeis argumentos de que o paciente não é capaz de compreender e refletir logicamente sobre as informações que lhe são dadas, não apenas pela complexidade do que se revela, mas por sua própria situação; que a comunicação direta ao paciente poderia prejudicar seu tratamento ou recuperação, ou destruir sua esperança; ou até mesmo causar uma ansiedade extrema; que quem fornece os dados não tem real dimensão de sua importância para a ciência ou para a saúde pública; não encontram respaldo no princípio maior do respeito à dignidade da pessoa humana, por serem proposições meramente consequencialistas[5], que mascaram o respeito à autonomia e desconsideram a incerteza sobre as próprias suposições utilizadas para sustentá-los, por isso, “lies mays increase rather than relieve suffering.”[6]

A privação da informação ao paciente (seja por omissões, insuficiência de informações ou dados truncados) retira-lhe a capacidade reflexiva sobre a sua própria condição; subtrai-lhe o poder de autodeterminação, deixando-lhe ainda mais vulnerável a manipulações e, até mesmo, ao mercado; diminui-lhe, significativamente, a capacidade de discernimento e julgamento, inserindo-lhe num círculo de apatia e conformismo que lhe deixa à mercê das decisões familiares, médicas e quiçá mercadológicas. Assim, a mentira ainda que com intuitos altruístas não deve ser admitida. Deve-se sim, valorizar o princípio da confiança como o elo, o ponto de equilíbrio entre o paternalismo e a autonomia do paciente.

O dever de veracidade é um direito do paciente e, por suas características especiais, exige exercício dirigente e cauteloso do facultativo, de acordo com os limites impostos pelo próprio doente, visando proporciona-lhe a apresentação adequada do seu diagnóstico e prognóstico; permitindo livre e construtivo diálogo entre médico e enfermo na busca de esclarecimentos e aconselhamento; consolidando o direito à autodeterminação informativa e o respeito aos sentimentos do próximo na efetivação de uma Medicina mais humanizada.
  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os novos conhecimentos sobre o corpo humano e as potencialidades anunciadas pela Biotecnologia afetam diretamente bens considerados indisponíveis e juridicamente protegidos. A capacidade preditiva sobre a saúde do ser humano e a possibilidade de intervir sobre sua matéria biológica, modificando-a, vem promovendo o constante debate entre paternalismo e autonomia, debate que insiste em trazer consigo dicotomias que deveriam há muito terem sido superadas pela prática médica.

É incontestável que a Medicina se desempenha sobre um objeto especial, que possui um fim em si mesmo: o organismo humano. “La ‘materia prima’ es aquí ya la última e completa, el paciente, y el médico tiene que identificarse con su objetivo propio. Ésta es en cada caso la ‘salud’ [...]. El cuerpo es lo objetivo, pero se trata de sujeto” (Hans JONAS, 1997, p. 99). Mas, justamente por ser indissociável do corpo humano o sujeito ao qual pertence, deve o paciente ser observado de acordo com a visão humanista, ou seja, como pessoa especialmente vulnerável (não como mero cliente – visão mercantilista da Medicina[7]). Trata-se, dessa forma, em reconhecer que é relação que implica, necessariamente, uma interação comunicativa (diálogo), que permite a aproximação, o conhecimento e o respeito ao outro, uma vez que se realiza nos escopos: informativo, terapêutico e decisório.

No novo contexto da Medicina, em que regras mercadológicas exercem fortes pressões e que as mais diversas tecnologias dão impulso a novas expectativas, a intermediação promovida pela Bioética aproximou médicos e pacientes e hoje “o respeito à integridade, à liberdade, à confidencialidade e à dignidade da pessoa humana são inalienáveis e fazem parte do cotidiano dos que trabalham em medicina” (Sérgio I. Ferreira COSTA; Leo PESSINI, 2004, p. 189), considerando-se, dessa forma, a pessoa como um fim em si mesma. Por isso, a relação médico-paciente para além de superar qualquer dicotomia entre paternalismo e autonomia, deve ser pautada pelo princípio da confiança, este sim, considerado meio harmonizador da relação médico-paciente.


REFERÊNCIAS

AGUIRRE, J.F.P. Palabra, palabrería y verdad en el discurso del médico. Revista de Retórica y Teoría de la Comunicación, Espanha, ano 1, n. 2, jul. 2001. [s.p.].

BEAUCHAMP, T.L.; CHILDRESS, J.F. Principles of bioethics. 6ª ed. Londres, Reino Unido: Oxford University Press, 2009.
CANIATO, A.M.P. A banalização da mentira na sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica. Revista Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 19, n. 3, 2007. p. 96-107. 

COLLINS, J. Should doctors tell the truth? In: KUHSE, H.; SINGER, P. Bioethics an anthology. 2ª. ed. Reino Unido: Blackwell Publishing, 2008. p. 605-610.

GIDDENS, Anthony. As consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 101-105.

JONAS, H. Técnica, medicina y ética. Sobre la prática del principio de responsabilidad. Barcelona, Espanha: Paidós, 1997.

KUHSE, H.; SINGER, P. Bioethics an anthology. 2 ª. ed. Reino Unido: Blackwell Publishing, 2008.

LORENZETTI, R.L. Teoria da decisão judicial. Fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

_____________. La oferta como apariencia Y la aceptación basada en la confianza. Contratos de Servicios a Los Consumidores, 1ª Edição, Santa Fe: Rubinzal Culzoni, 2005, p. 38.

LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 14.

PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. (Orgs.). Fundamentos da bioética. São Paulo: Paulus, 1996.

SIQUEIRA, J.E. A arte perdida de cuidar. Revista Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2002, 10(2), p. 89-106.







[1] “Cega, porque limitando-se a compreender a doença apenas como pobres variáveis anatômicas e/ou bioquímicas não enxerga o ser humano como ele verdadeiramente o é. Surda, porque o paciente não sendo colhido como sujeito é impedido de manifestar-se como pessoa.” (José Eduardo de SIQUEIRA, 2002, p. 96).
[2] A comunicação não verbal, explica o autor, atua em diferentes frentes: comunicando atitudes e estados emocionais, por meio da expressão corporal; apoiando e completando a comunicação verbal; controlando a interação; obtendo o ‘feedback’.
[3] E, ainda, complementou esse raciocínio extremamente paternalista, afirmando (2008, p. 608): “it is frequently to a patient’s great advantage to know the truth in part, for it offers him the reason for making a radical change in his mode of life, sometimes a burdensome change.” Tradução livre: “frequentemente é uma grande vantagem para o paciente conhecer parcialmente a verdade, pois isso lhe oferece uma razão para fazer uma mudança radical no seu modo de vida, às vezes, uma mudança penosa.”
[4] Nesse sentido, ensinam Helga Kuhse e Peter Singer (2006, p. 603) que [...] to have a right to the truth is unmeaning. We should rather say, a man has a right to his own truthfulness (veracitas), that is, to subjective truth in his own person. For to have a right objectively to truth would mean that, as in meum and tuum generally, it depends on his will whether a given statement shall be true or false, which would produce a singular logic.”
[5] Ensina Ricardo Luis Lorenzetti (2009, p. 305) que o paradigma consequencialista “sustenta a aplicação ilimitada dos direitos individuais (paradigma protetivo), somada a uma profunda desconexão entre o público e o privado, gera uma tensão elevada, que torna impossível a vida em comum. Seu princípio estruturante é a análise das consequências públicas das ações privadas. [...] acentua os deveres, ou seja, os limites. [...] parte sempre das ações privadas e estuda o efeito da sua soma – ou seja, os efeitos públicos das ações privadas. O jurista que adota essa visão está disposto a utilizar critérios econômicos e sociológicos, mas para fundamentar a coexistência social”.
[6] Tom L. BEAUCHAMP; James F. CHILDRESS, 2009, p. 291.
[7] Léo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine (1996, p. 163) arguem que “quanto menos o médico dá de si e de seu tempo, mais medicamentos prescreve e mais exames de laboratórios pede. É a medicina farmacologizada e instrumentalizada”, prática que predomina em muitos países, atualmente impulsionada pelas forças de mercado e pelo poder dos grandes laboratórios farmacêuticos e que leva a uma nova forma de desumanização da Medicina.

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