07/06/2020

Opinião – Black Lives Matter, as duas pandemias e a luta que nunca acaba: sobre o que é importante


 Alan José de OliveiraTeixeira[1]

É comum a tentativa de se justapor lutas em momentos de crise com o fim de deslegitimá-las. Enfrentamos hoje uma ameaça (in)visível que já matou quase 400.000 pessoas no mundo[2]. Enfrentamos hoje (ontem, e enfrentaremos amanhã) a violência policial e a discriminação racial que, assim como o vírus, já dizimou centenas de milhares mundialmente. Assim como o nano inimigo atual, o racismo se reinventa[3] e está longe de desaparecer. Para iniciar este texto, proponho-lhes uma reflexão sobre o (um) contexto.
Imagine-se em meio a uma pandemia. As autoridades sanitárias recomendam o distanciamento social para evitar a propagação de um novo vírus. Um dos sintomas da doença é a falta de ar. Sabe-se que ela ataca os pulmões, causando uma infecção. O infectado que apresente tal sintoma, portanto, não consegue respirar apropriadamente. A depender da gravidade, é necessário que seja submetido ao uso de respiradores. É possível que o hospedeiro desenvolva uma síndrome respiratória aguda, que pode o levar a óbito.
Da mesma forma, tente se imaginar de bruços, no meio da rua. Os carros vêm e vão normalmente, próximo de onde você está agora, imobilizado. Você não consegue se mover. Não consegue respirar. Não se trata de uma paralisia do sono. É real. O que o impede de respirar, agora já no oitavo minuto insuportável de opressão, é o joelho de um policial, que prensa sua nuca contra o chão. Please, man, I can’t breathe (“Por favor, cara, eu não consigo respirar”), você suplica. Mas é tarde. Em meio à pandemia, o que extraiu sua vida não foi o vírus, mas a sistêmica, racista e histórica violência policial estadunidense.
Foi assim com George Floyd, negro, morto por um policial branco em Minneápolis (EUA) durante abordagem. Não foi o único. Eric Garner, Michael Brown, Walter Scott, Freddie Gray, Sandra Bland, Philando Castile, Botham Jean, Atatiana Jefferson, Breonna Taylor, todas vítimas da brutalidade policial contra os negros nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos[4].
Perceba o dilema da população negra, que há séculos sofre com estigmação e violência seletiva: morre-se pelo vírus ou pela violência estatal. De uma forma ou de outra, não nos deixam respirar. A morte vem da asfixia ou de um ataque respiratório. Contra quem lutar? O inimigo (in)visível ou o inimigo antigo e declarado? Não me parece uma escolha justa...


Protestos nos Estados Unidos e no Mundo

A morte de George Floyd, ocorrida no dia 25 de maio de 2020, foi a gota d’água que desencadeou uma série de manifestações contra o racismo nos Estados Unidos e no mundo.             Naquele país, aproximadamente 600 cidades tiveram protestos nos 50 estados[5].
A repercussão se deu no dia seguinte, quando o vídeo feito por uma testemunha viralizou na internet – por seu conteúdo que causa indignação em qualquer ser com resquícios de humanidade[6].
As manifestações têm apoio principalmente da organização global e movimento Black Lives Matter (“vidas negras importam”)[7], que surgiu em 2013 em resposta ao assassinato de Trayvon Martin, jovem negro assassinado pelo vigilante George Zimmerman, na Flórida (EUA), em 2012[8].
Neste sábado (06), milhares de manifestantes antirracismo e contrários à brutalidade policial foram às ruas de cidades em países como Reino Unido, Alemanha, Austrália, Coreia do Sul e Japão[9]. Os protestos já duram semanas. Nos EUA, toques de recolher tentam, em vão, conter as manifestações. Cerca de 10 mil pessoas foram presas[10]. A mídia e as redes sociais denunciam os abusos da polícia estadunidense nas manifestações. Fica claro que as técnicas de estrangulamento – que ensinadas aos policiais nas academias – se transformaram em uma política de extermínio negro nos últimos anos (os nomes acima não nos permitem errar).
Apesar de cada país ter uma metodologia de classificação racial, vale lembrar que nos EUA os negros são 12% da população, ao passo que no Brasil somos 55%[11]. Em que pese as expressões numéricas, ambas as populações são minorias, pois o termo minoria tem mais a ver com “[...] certas feições estruturais básicas nas inter-relações maioria-minoria como a relação de poder, de acordo com a qual se verifica uma superioridade da “maioria” frente a uma minoria inferior quanto ao poder”[12]. A marginalização econômica também é comum[13].
As mobilizações repercutiram no Brasil, um dos países com escravidão negra mais recente. Aqui, na última segunda-feira (01), manifestantes saíram às ruas da cidade de Curitiba contra o racismo, a violência policial e as políticas do atual governo.
De toda sorte, muito embora a luta por igualdade racial e contra a violência estatal seja universal, o Brasil tem problemas locais de violência e opressão policial há décadas. As operações policiais nas favelas brasileiras já levaram a vida de muitas crianças e adultos inocentes.

Brasil – João Pedro, Miguel Otávio e outras tantas vidas negras ceifadas: racismo, classismo e violência policial

Marcos Vinicius, Jenifer, Kauan, Kauê, Ágatha, Kethellen. Esses são nomes de algumas das vítimas da violência policial em favelas do Rio de Janeiro[14]. Todas negras. Crianças. Inocentes. No último 17 de maio, João Pedro (14), negro, foi morto em casa durante operação policial em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Estava brincando. Em casa. Com os primos. É importante dizer que as vítimas eram negras. É esse contraste entre negros e brancos que pode ajudar você, leitor, a entender a nossa luta. Isso porque essa diferença é preexistente a este texto. Existe nas vítimas predominantes da violência policial, na ausência de negros em posições estratégicas na nossa sociedade, na maioria carcerária.
A violência, porém, é estrutural. Não é exclusividade do Estado e seus agentes. Também reside em um classismo sem razão, na desumanidade de muitos patrões. Proponho outro exercício de alteridade.
Estamos em isolamento social, por conta das medidas de quarenta. Sem creche e escolas até segunda ordem. Você precisa acompanhar sua mãe até o local de trabalho, na casa da primeira-dama da cidade. Lá, a mãe trabalha como doméstica. Em determinado momento, a patroa pede para que sua mãe passeie com os cachorros. Depois de um tempo, você sente falta da sua mãe, afinal de contas está em uma casa de desconhecidos. Você tem cinco anos. A patroa está fazendo as unhas, irritada. Na grosseria, coloca você em um elevador, e aperta o botão de um dos andares mais altos, para se livrar logo. Você não sabe como funciona o elevador. Talvez ela quisesse que você, de alguma forma, desaparecesse. Miguel Otávio morreu após cair do 9º andar do Prédio, em Recife (PE)[15]. Não ouso tentar descrever a dor da mãe. O episódio diz muito sobre a nossa sociedade.

A luta que nunca acaba

Em 2020 ainda existem aqueles que acreditam que séculos de escravidão negra não surtiram nenhum efeito na construção da sociedade que temos hoje. Triste. Mas nada de novo no front. Parece que a luta nunca acaba. E nunca acaba mesmo. Vai e volta. Apesar das adversidades, fiquemos firmes. Firmeza com as autoridades em respeito à Constituição. Firmeza na luta contra a violência estatal e o racismo.
O que importa na atual conjuntura? Vivemos duas pandemias. A do racismo é mais antiga. Vem sofrendo mutações e ficando mais forte, se adaptando. Precisamos de uma vacina urgente. Eu entendo a pandemia do novo coronavírus e estou disposto a enfrentá-la. Faço-lhe um convite: enfrentemos as duas pandemias! Juntos temos mais chance.


[1] Egresso do curso de Direito do UNICURITIBA. Mestrando em Direito.

[2] GOOGLE NEWS. Coronavírus (Covid-19). Disponível em: <https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&mid=/m/01hd3f&gl=BR&ceid=BR:pt-419>. Acesso em 06 jun. 2020.

[3] LIMA, Marcus Eugênio Oliveira; VALA, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 9, n. 3, p. 401-411, Dec.  2004.

[4] BBC NEWS. Caso George Floyd: 11 mortes que provocaram protestos contra a brutalidade policial nos EUA. 28 mai. 2020. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52832621>. Acesso em 06 jun. 2020. Eric Garner foi morto por um vigilante.

[5] MACEDO, Letícia. Morte de Floyd foi ‘gota d’água que transbordou o copo’, diz brasileiro que participa de protestos nos EUA. G1. 06 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/morte-de-floyd-foi-gota-dagua-que-transbordou-o-copo-diz-brasileiro-que-participa-de-protestos-nos-eua.ghtml>. Acesso em 06 jun. 2020.

[6] Vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=BHQVk6g5pdw>.

[7] A missão do Black Lives Matter é “[...] erradicar a supremacia branca e construir poder local para intervir na violência infligida às comunidades negras pelo estado e pelos vigilantes. Ao combater e combater atos de violência, criando espaço para a imaginação e a inovação dos negros e centralizando a alegria dos negros, estamos obtendo melhorias imediatas em nossas vidas”. Tradução livre. BLACK LIVES MATTER. About. Disponível em: <https://blacklivesmatter.com/about/>.

[8] BBC NEWS. Entenda o caso do adolescente negro assassinado na Flórida. 23 mar. 2012. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/03/120323_entenda_trayvon_florida_cc>. Acesso em 06 jun. 2012.

[9] REUTERS. Protestos espalhados pelo mundo apoiam o movimento ‘Black Lives Matter’. 06 jun. 2020. Disponível em <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/protestos-espalhados-pelo-mundo-apoiam-movimento-black-lives-matter.ghtml>. Acesso em 06 jun. 2020.

[10] G1. Manifestantes desafiam toque de recolher nos EUA; prisões passam de 10 mil. 04 jun. 2020. Disponível: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/04/manifestantes-desafiam-toque-de-recolher-nos-eua-prisoes-passam-de-10-mil.ghtml>. Acesso em 06 jun. 2020.

[11] UOL NOTÍCIAS. Protestos por George Floyd: em seis áreas, a desigualdade racial no Brasil e nos EUA. 04 jun. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/04/em-seis-areas-a-desigualdade-racial-no-brasil-e-nos-eua.htm>. Acesso em 06 jun. 2020.

[12] CHAVES, L. G. Minorias e seu Estudo no Brasil. Revista Ciências Sociais. vol. 2, n. 1, 1971. p. 150.

[13] G1. Afro-americanos sofrem marginalização econômica nos Estados Unidos há anos. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/afro-americanos-sofrem-marginalizacao-economica-nos-estados-unidos-ha-geracoes.ghtml>. Acesso em 06 jun. 2020.

[14] FOLHA DE SÃO PAULO. Menino de 14 anos é morto em casa durante ação da PF no Rio. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/menino-de-14-anos-e-morto-em-casa-durante-acao-da-pf-no-rio.shtml>. Acesso em 07 jun. 2020.


[15] G1. Caso Miguel: como foi a morte do menino que caiu do 9º andar de prédio no Recife. 05 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-como-foi-a-morte-do-menino-que-caiu-do-9o-andar-de-predio-no-recife.ghtml>. Acesso em 07 jun. 2020.

Nenhum comentário:

Postar um comentário