22/08/2016

Relações de consumo na visão do Superior Tribunal de Justiça (Parte 2)

Relações de consumo na visão do Superior Tribunal de Justiça (Parte 2)
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2016

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1. Introdução
Na coluna anterior, apresentamos aos leitores daDireito Civil Atual a primeira parte de nosso estudo sobre as relações de consumo e seus conceitos fundamentais vistos à luz da jurisprudência mais atual do Superior Tribunal de Justiça, corte da cidadania, a qual eu tenho a honra de integrar há exatos 10 anos.
Nesta coluna, vamos estudar o problema dos abusos praticados no mercado de consumo. Assim como na primeira parte, a jurisprudência do STJ dará o norte das ideias aqui lançadas, mas sempre se considerando a respeitável opinião doutrinária. Esse é, diga-se de passagem, um dos aspectos que, ao meu sentir, deve ser prestigiado pela magistratura: o diálogo entre doutrina e jurisprudência é muito relevante para o aperfeiçoamento da jurisdição e para os estudos acadêmicos. Tal preocupação é evidente em todo o trabalho da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e esta coluna é um espaço muito privilegiado para esse fim.  
2. Abusos praticados no mercado de consumo e natureza dos direitos tutelados
Os direitos difusos e coletivos tiveram assento na Constituição de 1988 (art. 129, inc. III), mas foi o Código de Defesa do Consumidor que, posteriormente, se ocupou em defini-los, acrescendo a figura dos direitos individuais homogêneos (art. 81).
Dessa forma, ao cuidar da defesa do consumidor em juízo, o CDC prevê, em seu art. 81, parágrafo único e inc. III, a possibilidade de defesa coletiva em juízo dos interesses ou direitos individuais homogêneos, isto é, aqueles decorrentes de origem comum. Leia-se a redação do dispositivo:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
(...)
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
O legislador quis valorizar a gênese comum existente entre os direitos individuais homogêneos (pedidos com origem no mesmo fato de responsabilidade do fornecedor), inspirando-se na class action do direito norte-americano para dar ao consumidor uma prestação jurisdicional acessível, célere, uniforme e eficiente.
Mesmo que venham a ser divisíveis, disponíveis e pertencentes a titulares determinados ou determináveis, se tais interesses e direitos individuais homogêneos coletivamente considerados trouxerem repercussão social, autorizar-se-á o Ministério Público a tutelá-los coletivamente, sem prejuízo da iniciativa individual de cada lesado.
Tanto é que o art. 82 do CDC afirma figurar o Ministério Público entre os legitimados concorrentes para tal defesa coletiva dos interesses e direitos dos consumidores, legitimação esta que é estendida à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal; às entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo código; e às associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo código consumerista.
A legitimação concorrente significa que não apenas o Ministério Público como também os demais legitimados podem atuar na defesa coletiva dos interesses e direitos dos consumidores, independentemente de anuência recíproca, de sorte a incentivar a prestação positiva de defesa do consumidor pela administração pública.
Sob esse prisma, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 1.281.023/GO[1] interposto por seguradora acionada em ação civil pública pelo Ministério Público estadual por estar supostamente recolocando veículos sinistrados no mercado.
O Ministério Público goiano promoveu a ação civil pública contra a seguradora, sob a alegação de que esta repassava a oficinas veículos sinistrados com "perda total", os quais seriam postos em circulação e vendidos a valor 30% superior ao que valeriam. Tal ilícito se daria sem que a seguradora informasse a existência do sinistro ao consumidor e ao órgão estadual de trânsito. Aduziu o Ministério Público que, uma vez revendidos, a seguradora se recusava a fazer, para o novo adquirente, o seguro desses veículos sinistrados, quando, somente então, o consumidor descobria que havia adquirido um veículo objeto de "perda total".
A sentença de primeiro grau julgou extinto o processo por considerar que o Ministério Público não poderia ingressar em nome de titulares de direitos disponíveis e patrimoniais. Mas o tribunal de origem, ao julgar o recurso de apelação, reformou a sentença e reconheceu a legitimidade do Ministério Público para promover a ação civil pública em defesa dos consumidores.
No recurso especial, a seguradora pediu o restabelecimento da sentença e alegou que os interesses seriam disponíveis, divisíveis, patrimoniais e renunciáveis, de modo que cada um que se sentisse lesado deveria ingressar em juízo isoladamente, não competindo ao Ministério Público ajuizar a ação em nome dos consumidores. Alegou, ainda, que as seguradoras não estariam enquadradas como fornecedoras, já que suas atividades precípuas não eram a venda de veículos, mas o oferecimento de contratos de seguro.
O acórdão da 2ª Turma lembrou que, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, o conceito de fornecedor é dotado de amplitude e que, portanto, as seguradoras também se enquadravam como fornecedoras. Ademais, a legislação brasileira não exige, em regra, condição especial para que a pessoa (física ou jurídica) ou o ente tenha legitimação passiva ad causam nas ações civis públicas, sendo suficiente a lesão ou a ameaça de lesão a direitos transindividuais.
Afirmou o acórdão, ainda, que os interesses e direitos descritos na inicial da ação civil pública movida pelo Ministério Público são individuais homogêneos por guardarem entre si uma origem comum, admitindo, logo, a defesa coletiva.
De fato, tais direitos eram divisíveis, pois seus titulares, adquirentes dos veículos sinistrados, podem ser identificados e determinados, bem como suas pretensões podem ser quantificadas. Tais direitos também poderiam ser tidos como disponíveis, já que seus titulares, caso quisessem, poderiam renunciá-los ou demandá-los em litisconsórcio ativo com os demais legitimados. Entretanto, da leitura da exordial e das circunstâncias identificadas pelo tribunal de origem, ressaíram nítidos a larga abrangência e o alcance social dos fatos narrados pelo Ministério Público para defender interesses individuais homogêneos.
Enfatizou o aresto da corte que referida ação civil pública proposta pelo Ministério Público possui a dimensão coletiva de não somente reparar danos já sofridos pelos consumidores (controle repressivo), como também de determinar a obrigação de não fazer e o dever de informar em face da seguradora para prevenir danos futuros a outros consumidores, como autoriza o art. 6º, inc. VI, do CDC (controle preventivo).
No caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, prevaleceu o interesse social na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos. A necessidade de correção das lesões às relações de consumo transcendeu os interesses individuais dos adquirentes de veículos sinistrados para dizer respeito ao interesse público na prevenção da reincidência da conduta lesiva praticada pela seguradora. Ademais, haveria a substituição de múltiplas demandas individuais por uma ação coletiva, de modo a obter um provimento único, mais célere e sem risco de decisões díspares.
3. Conclusão
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) é talvez uma das leis mais bem elaboradas do ordenamento jurídico nacional. Desde seu advento, o maior ganho diz respeito à concretização do acesso do consumidor à justiça, o que contribuiu para diminuir o desequilíbrio entre fornecedores (muitos dos quais são gigantes multinacionais) e consumidores (submetidos a relações de consumo quase sempre standards).
A jurisprudência do STJ, com extrema prudência, deve dar efetividade ao CDC e preservar suas conquistas. Não se pode, todavia, esquecer os limites conceituais e técnicos, que terminam por ser uma garantia do jurisdicionado contra os excessos da discricionariedade e os equívocos do abuso dos princípios. Entendo que a segurança dos vulneráveis também depende do respeito à lei. No caso, o CDC é uma lei com suficientes virtudes para resolver diversos problemas que a vida contemporânea impõe, sem que se faz necessário desviar-se de seus objetivos fundamentais.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] STJ, REsp 1.281.023/GO, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 16/10/2014, DJe 11/11/2014.

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