07/11/2020

Em pauta: Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Por Giovanna Maciel. 

O Brasil foi novamente condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas, e aí?!

Embora a condenação tenha sido publicada apenas recentemente, em 26 de outubro, a decisão é de 15 de julho deste ano, tratando de uma explosão em uma fábrica clandestina de fogos de artifício na Bahia, em 1998, acarretando a morte de 64 pessoas, sendo 22 menores. Para a Corte, o Estado brasileiro sabia das atividades irregulares e, ainda assim, não fiscalizava. Além disso, foram apontados trabalho infantil e condições degradantes[i].

Na Sentença – que possui caráter vinculante –, a Corte IDH chamou o Brasil à sua responsabilidade de processar e punir os que perpetraram crimes contra aquelas vítimas:


A corte já se manifestou, fazendo referência à devida diligência em processos penais, no sentido de que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e buscar a determinação da verdade e a persecução, captura, julgamento e eventual punição de todos os responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos. Igualmente, que a impunidade deve ser erradicada mediante a determinação das responsabilidades tanto gerais do Estado, como individuais — penais e de outra natureza — de seus agentes ou de particulares, e que, para cumprir essa obrigação, o Estado deve remover todos os obstáculos, de facto e de jure, que mantenham a impunidade.[ii] 

É importante destacar que os motivos que levaram esse caso à Corte foram os mesmos da primeira condenação brasileira, em 2006 (Caso Ximenes Lopes vs Brasil): a impunidade dos agentes violadores de direitos humanos e desamparo às vítimas.

Mas, afinal, o que é a Corte IDH e como os casos chegam até ela? Ela foi criada em 1969 pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), sendo devidamente instalada apenas em 1978 através de um tratado denominado de “Acordo de Sede”. Ademais, possui cláusula facultativa de jurisdição obrigatória (Cláusula Raul Fernantes), ou seja, o Estado pode ou não aderir à jurisdição contenciosa da Corte, mas, uma vez que assinou ou aderiu ao tratado, ela deixa de ser facultativa, passando a ser obrigatória.

Dentre os requisitos gerais para o acesso à Corte IDH, estão o esgotamento dos recursos internos do Estado e a não litispendência em outro sistema de proteção internacional. Conforme o artigo 44 da CADH, cumpridos esses requisitos, a pessoa (ou grupo de pessoas) levará a denúncia até a Comissão Interamericana de Diretos Humanos (CIDH) que fará dois relatórios (arts. 46 e 48 da CADH): o primeiro, sigiloso, buscando resolver a lide de forma consensual; caso o Estado ainda assim descumprir, emite-se um novo relatório, de maneira pública, visando o poder de envergonhar aquele país frente aos demais (power of shaming)[iii].

Passado esse procedimento (obrigatório) na CIDH, só então o processo, junto aos relatórios, é encaminhado à Corte IDH, que poderá fazer nova análise dos requisitos de admissibilidade (arts. 61 a 63 da CADH). É nessa fase que o Estado apresenta sua defesa (suas exceções preliminares) e deverá alegar, se for o caso, o descumprimento do artigo 44 da CIDH. Se acolhidas as exceções preliminares, haverá o fim do processo. Contudo, em havendo recusa total ou parcial das exceções, o caso será decidido em julgamento.

Essa competência contenciosa da Corte produz sentenças definitivas e inapeláveis decorrentes das petições alegando violações de direitos humanos (art. 67 da CADH). Também, é importante mencionar que ela não julga pessoas e sim Estados (ratione personae) que tenham falhado no dever em evitar danos, respeitar e promover esses direitos, então, embora não possua um exercício penal de responsabilização individual, ela cobra que o Estado a exerça.

Além dessa recente condenação (Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil), outros casos brasileiros já foram submetidos à Corte, como o já mencionado Caso Ximenes Lopes (2006), Nogueira de Carvalho (2006), Encher e outros (2009), Sétimo Garibaldi (2009), Guerrilha do Araguaia (2010), Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016), Favela Nova Brasília (2017), Povo Indígena Xucuru (2018) e Herzog e outros (2018)[iv].

Embora o país tenha sido inocentado, parcial ou integralmente em alguns processos, o cenário de reincidência é preocupante, principalmente por representar as deficiências crônicas na realização de persecução penal contra violadores dos direitos humanos, relevando que o sistema judicial criminal brasileiro ainda não compreendeu e incorporou corretamente o significado dos direitos fundamentais no Brasil e, tampouco, o Estado é capaz de fiscalizar e apresentar respostas eficazes no combate à impunidade.
 
Todas as vezes que um Estado é condenado por violações a direitos humanos em um tribunal internacional, o que se espera é que a missiva seja, ao menos, profilática. No caso brasileiro, no entanto, essa expectativa tem sido frustrada ao longo dos anos, dadas as reiteradas ações do Estado que o têm levado à responsabilidade internacional no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos.[v]



[i] CORTE Interamericana condena Brasil por explosão de fábrica que matou 64 pessoas. Conjur. 27 out. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-27/corte-interamericana-condena-brasil-explosao-matou-64-pessoas>.

[ii] OEA, Organização dos Estados Americanos. Corte IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil. Julgamento: 15 jul. 2020. Publicação: 26 out. 2020. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 407, § 220.

[iii] BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>.

[iv] LEGALE, Siddharta; ARAÚJO, Luís Cláudio Martins (Org.). Direitos humanos da prática interamericana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[v] MAZZUOLI, Valério de Oliveira; FARIA, Marcelle Rodrigues da Costa e; OLIVEIRA, Kledson Dionysio de. O Brasil é novamente condenado pela Corte Interamericana. Conjur. 01 nov. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-01/opiniao-brasil-novamente-condenado-corte-interamericana?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter>.


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