Alan José de OliveiraTeixeira[1]
É comum a tentativa de se justapor
lutas em momentos de crise com o fim de deslegitimá-las. Enfrentamos hoje uma
ameaça (in)visível que já matou quase 400.000 pessoas no mundo[2].
Enfrentamos hoje (ontem, e enfrentaremos amanhã) a violência policial e a
discriminação racial que, assim como o vírus, já dizimou centenas de milhares
mundialmente. Assim como o nano inimigo atual, o racismo se reinventa[3]
e está longe de desaparecer. Para iniciar este texto, proponho-lhes uma
reflexão sobre o (um) contexto.
Imagine-se em meio a uma
pandemia. As autoridades sanitárias recomendam o distanciamento social para
evitar a propagação de um novo vírus. Um dos sintomas da doença é a falta de
ar. Sabe-se que ela ataca os pulmões, causando uma infecção. O infectado que
apresente tal sintoma, portanto, não consegue respirar apropriadamente. A
depender da gravidade, é necessário que seja submetido ao uso de respiradores.
É possível que o hospedeiro desenvolva uma síndrome respiratória aguda, que
pode o levar a óbito.
Da mesma forma, tente se
imaginar de bruços, no meio da rua. Os carros vêm e vão normalmente, próximo de
onde você está agora, imobilizado. Você não consegue se mover. Não consegue
respirar. Não se trata de uma paralisia do sono. É real. O que o impede de
respirar, agora já no oitavo minuto insuportável de opressão, é o joelho de um
policial, que prensa sua nuca contra o chão. Please, man, I can’t breathe
(“Por favor, cara, eu não consigo respirar”), você suplica. Mas é tarde. Em
meio à pandemia, o que extraiu sua vida não foi o vírus, mas a sistêmica,
racista e histórica violência policial estadunidense.
Foi assim com George Floyd,
negro, morto por um policial branco em Minneápolis (EUA) durante abordagem. Não
foi o único. Eric Garner, Michael Brown, Walter Scott, Freddie Gray, Sandra
Bland, Philando Castile, Botham Jean, Atatiana Jefferson, Breonna Taylor, todas
vítimas da brutalidade policial contra os negros nos Estados Unidos ao longo
dos últimos anos[4].
Perceba o dilema da população
negra, que há séculos sofre com estigmação e violência seletiva: morre-se pelo
vírus ou pela violência estatal. De uma forma ou de outra, não nos deixam
respirar. A morte vem da asfixia ou de um ataque respiratório. Contra quem lutar?
O inimigo (in)visível ou o inimigo antigo e declarado? Não me parece uma
escolha justa...
Protestos nos Estados Unidos e no Mundo
A morte de George Floyd,
ocorrida no dia 25 de maio de 2020, foi a gota d’água que desencadeou uma série
de manifestações contra o racismo nos Estados Unidos e no mundo. Naquele país, aproximadamente 600
cidades tiveram protestos nos 50 estados[5].
A repercussão se deu no dia
seguinte, quando o vídeo feito por uma testemunha viralizou na internet – por
seu conteúdo que causa indignação em qualquer ser com resquícios de humanidade[6].
As manifestações têm apoio principalmente
da organização global e movimento Black Lives Matter (“vidas negras
importam”)[7],
que surgiu em 2013 em resposta ao assassinato de Trayvon Martin, jovem negro
assassinado pelo vigilante George Zimmerman, na Flórida (EUA), em 2012[8].
Neste sábado (06), milhares de
manifestantes antirracismo e contrários à brutalidade policial foram às ruas de
cidades em países como Reino Unido, Alemanha, Austrália, Coreia do Sul e Japão[9].
Os protestos já duram semanas. Nos EUA, toques de recolher tentam, em vão,
conter as manifestações. Cerca de 10 mil pessoas foram presas[10].
A mídia e as redes sociais denunciam os abusos da polícia estadunidense nas
manifestações. Fica claro que as técnicas de estrangulamento – que ensinadas
aos policiais nas academias – se transformaram em uma política de extermínio
negro nos últimos anos (os nomes acima não nos permitem errar).
Apesar de cada país ter uma
metodologia de classificação racial, vale lembrar que nos EUA os negros são 12%
da população, ao passo que no Brasil somos 55%[11].
Em que pese as expressões numéricas, ambas as populações são minorias, pois o
termo minoria tem mais a ver com “[...] certas feições estruturais básicas
nas inter-relações maioria-minoria como a relação de poder, de acordo com a
qual se verifica uma superioridade da “maioria” frente a uma minoria inferior
quanto ao poder”[12].
A marginalização econômica também é comum[13].
As mobilizações repercutiram no
Brasil, um dos países com escravidão negra mais recente. Aqui, na última
segunda-feira (01), manifestantes saíram às ruas da cidade de Curitiba contra o
racismo, a violência policial e as políticas do atual governo.
De toda sorte, muito embora a
luta por igualdade racial e contra a violência estatal seja universal, o Brasil
tem problemas locais de violência e opressão policial há décadas. As operações
policiais nas favelas brasileiras já levaram a vida de muitas crianças e
adultos inocentes.
Brasil – João Pedro, Miguel Otávio e outras tantas vidas
negras ceifadas: racismo, classismo e violência policial
Marcos Vinicius, Jenifer, Kauan,
Kauê, Ágatha, Kethellen. Esses são nomes de algumas das vítimas da violência
policial em favelas do Rio de Janeiro[14].
Todas negras. Crianças. Inocentes. No último 17 de maio, João Pedro (14),
negro, foi morto em casa durante operação policial em São Gonçalo, Região
Metropolitana do Rio. Estava brincando. Em casa. Com os primos. É importante
dizer que as vítimas eram negras. É esse contraste entre negros e brancos que
pode ajudar você, leitor, a entender a nossa luta. Isso porque essa diferença é
preexistente a este texto. Existe nas vítimas predominantes da violência
policial, na ausência de negros em posições estratégicas na nossa sociedade, na
maioria carcerária.
A violência, porém, é
estrutural. Não é exclusividade do Estado e seus agentes. Também reside em um
classismo sem razão, na desumanidade de muitos patrões. Proponho outro
exercício de alteridade.
Estamos em isolamento social,
por conta das medidas de quarenta. Sem creche e escolas até segunda ordem. Você
precisa acompanhar sua mãe até o local de trabalho, na casa da primeira-dama da
cidade. Lá, a mãe trabalha como doméstica. Em determinado momento, a patroa
pede para que sua mãe passeie com os cachorros. Depois de um tempo, você sente
falta da sua mãe, afinal de contas está em uma casa de desconhecidos. Você tem
cinco anos. A patroa está fazendo as unhas, irritada. Na grosseria, coloca você
em um elevador, e aperta o botão de um dos andares mais altos, para se livrar logo.
Você não sabe como funciona o elevador. Talvez ela quisesse que você, de alguma
forma, desaparecesse. Miguel Otávio morreu após cair do 9º andar do Prédio, em
Recife (PE)[15].
Não ouso tentar descrever a dor da mãe. O episódio diz muito sobre a nossa
sociedade.
A luta que nunca acaba
Em 2020 ainda existem aqueles
que acreditam que séculos de escravidão negra não surtiram nenhum efeito na
construção da sociedade que temos hoje. Triste. Mas nada de novo no front.
Parece que a luta nunca acaba. E nunca acaba mesmo. Vai e volta. Apesar das
adversidades, fiquemos firmes. Firmeza com as autoridades em respeito à
Constituição. Firmeza na luta contra a violência estatal e o racismo.
O que importa na atual
conjuntura? Vivemos duas pandemias. A do racismo é mais antiga. Vem sofrendo
mutações e ficando mais forte, se adaptando. Precisamos de uma vacina urgente.
Eu entendo a pandemia do novo coronavírus e estou disposto a enfrentá-la.
Faço-lhe um convite: enfrentemos as duas pandemias! Juntos temos mais chance.
[1]
Egresso do curso de Direito do UNICURITIBA. Mestrando em Direito.
[2]
GOOGLE NEWS. Coronavírus (Covid-19). Disponível em:
<https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&mid=/m/01hd3f&gl=BR&ceid=BR:pt-419>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[3]
LIMA, Marcus Eugênio Oliveira; VALA, Jorge. As novas formas de expressão do
preconceito e do racismo. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 9, n. 3, p.
401-411, Dec. 2004.
[4]
BBC NEWS. Caso George Floyd: 11 mortes que provocaram protestos contra a
brutalidade policial nos EUA. 28 mai. 2020. Disponível em
<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52832621>. Acesso em 06
jun. 2020. Eric Garner foi morto por um vigilante.
[5]
MACEDO, Letícia. Morte de Floyd foi ‘gota d’água que transbordou o copo’,
diz brasileiro que participa de protestos nos EUA. G1. 06 jun. 2020.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/morte-de-floyd-foi-gota-dagua-que-transbordou-o-copo-diz-brasileiro-que-participa-de-protestos-nos-eua.ghtml>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[6]
Vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=BHQVk6g5pdw>.
[7] A
missão do Black Lives Matter é “[...] erradicar a supremacia branca e
construir poder local para intervir na violência infligida às comunidades
negras pelo estado e pelos vigilantes. Ao combater e combater atos de
violência, criando espaço para a imaginação e a inovação dos negros e
centralizando a alegria dos negros, estamos obtendo melhorias imediatas em
nossas vidas”. Tradução livre. BLACK LIVES MATTER. About. Disponível
em: <https://blacklivesmatter.com/about/>.
[8]
BBC NEWS. Entenda o caso do adolescente negro assassinado na Flórida. 23
mar. 2012. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/03/120323_entenda_trayvon_florida_cc>.
Acesso em 06 jun. 2012.
[9]
REUTERS. Protestos espalhados pelo mundo apoiam o movimento ‘Black Lives
Matter’. 06 jun. 2020. Disponível em
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/protestos-espalhados-pelo-mundo-apoiam-movimento-black-lives-matter.ghtml>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[10]
G1. Manifestantes desafiam toque de recolher nos EUA; prisões passam de
10 mil. 04 jun. 2020. Disponível:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/04/manifestantes-desafiam-toque-de-recolher-nos-eua-prisoes-passam-de-10-mil.ghtml>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[11]
UOL NOTÍCIAS. Protestos por George Floyd: em seis áreas, a desigualdade racial
no Brasil e nos EUA. 04 jun. 2020. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/04/em-seis-areas-a-desigualdade-racial-no-brasil-e-nos-eua.htm>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[12]
CHAVES, L. G. Minorias e seu Estudo no Brasil. Revista Ciências Sociais.
vol. 2, n. 1, 1971. p. 150.
[13]
G1. Afro-americanos sofrem marginalização econômica nos Estados Unidos há
anos. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/afro-americanos-sofrem-marginalizacao-economica-nos-estados-unidos-ha-geracoes.ghtml>.
Acesso em 06 jun. 2020.
[14]
FOLHA DE SÃO PAULO. Menino de 14 anos é morto em casa durante ação da PF no
Rio. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/menino-de-14-anos-e-morto-em-casa-durante-acao-da-pf-no-rio.shtml>.
Acesso em 07 jun. 2020.
[15]
G1. Caso Miguel: como foi a morte do menino que caiu do 9º andar de
prédio no Recife. 05 jun. 2020. Disponível
em:
<https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-como-foi-a-morte-do-menino-que-caiu-do-9o-andar-de-predio-no-recife.ghtml>.
Acesso em 07 jun. 2020.
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