Por Nicoly Schuster.
A origem do que hoje se denomina estado de exceção remonta
ao período entre guerras (século XX), no qual percebeu-se que as regras do
estado de direito não eram suficientes para regulamentar situações que fogem à
normalidade e a estabilidade institucional. O precursor da criação de um
direito de exceção foi o filósofo político Carl Schmitt, que em seu livro Legalidade e Legitimidade lançou as
bases da teoria que torna possível a outorga de poderes ao chefe do poder
executivo em momentos de crise.
Após
as guerras mundiais, fez-se necessária a positivação do estado de exceção, de
modo que as Constituições ocidentais democráticas, como é a brasileira,
passaram a estabelecer um sistema
constitucional das crises. Esse sistema rege situações excepcionais nas
quais é dado ao chefe do poder executivo um conjunto de poderes que lhe permite
suprimir direitos e garantias fundamentais com o objetivo de gerir a crise
instaurada e restabelecer a ordem no país.
No Brasil, a Constituição Federal prevê como modalidades de
controle, o estado de defesa e o estado de sítio (este subdivide-se em outras
duas espécies), sendo que para a decretação de qualquer uma delas, é preciso
que o Presidente da República avalie dois requisitos: a medida deve ser
necessária e o tempo de duração deve ser breve e predeterminado. Além disso, é
necessária a aprovação ou autorização pelo Congresso Nacional, bem como a
consulta aos órgãos consultivos estabelecidos pela Constituição Federal.
A decretação do estado de sítio ou de defesa permite a
restrição de diversos direitos fundamentais, desde o direito de reunião (no
estado de defesa) até a inviolabilidade domiciliar e a liberdade de
manifestação do pensamento (no estado de sítio previsto no art. 137, I). A
doutrina majoritária, da qual faz parte Gilmar Mendes, concorda que é permitido
ao chefe do executivo inclusive a supressão do direito à vida, no caso de
decretação de estado de sítio na modalidade do art. 137, II, da Constituição
Federal.
Destaca-se que essas espécies diferem da possibilidade de intervenção
federal — que aconteceu no Rio de Janeiro durante o governo Temer — na qual
ocorre a suspensão temporária do poder estadual em determinado setor público,
com o objetivo de restabelecer a ordem. Esse tipo de ingerência é permitido
apenas nas hipóteses de grave comprometimento da ordem pública, para afastar
invasão estrangeira ou para reestruturar as finanças do Estado em questão.
Portanto, constitucionalmente, na intervenção federal, não há a possibilidade
de supressão de direitos fundamentais dos cidadãos.
A implementação de uma dessas medidas excepcionais significa
que se instaurou uma situação crítica impossível de ser solucionada de acordo
com as regras do estado democrático de direito. A respeito do conceito de
crise, o professor Roosevelt Arraes[i]
em sua tese explicou que:
Nesse sentido estrito, a crise sempre deve ser superada,
seja para restabelecer a ordem, seja para criar uma nova. Por se tratar de uma
situação de passagem, de deslocamento, ela se põe como o contrário da
estabilidade. [...] Aqui, ao menos, há a convicção de que, em algum momento,
essa crise chegará a um termo; do mesmo modo que há a certeza da permanente
exposição do combatente à morte enquanto não se chegar a esse termo. (2019, p.
188)
Deste modo, a palavra crise deve ser entendida como aquele
momento no qual se configura o ápice do conflito, caracterizando uma
indefinição acerca do que representa o próprio Estado. É por isso que,
considerando a atual conjuntura do Brasil, o país não está sob a vigência de um
estado de exceção. Primeiro, porque — levando em conta o ordenamento jurídico
brasileiro — não houve a decretação pelo Presidente da República e segundo, —
considerando o cenário político atual — apesar da constante incerteza a
respeito das instituições, o conflito ainda não atingiu seu ápice. Nessa
esteira, não se pode admitir que direitos sejam restringidos de maneira
arbitrária ou que o chefe do poder executivo tenha poderes além daqueles
estabelecidos pela Constituição para o estado de normalidade institucional.
A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, fez com que o
governo federal e alguns estados como Paraná, Espírito Santo, Minas Gerais,
Santa Catarina, Paraíba e Goiás decretassem estado
de emergência em saúde pública, definido pela Agência Senado como o
reconhecimento de situação na qual há iminente risco à saúde pública e aos
serviços públicos. As principais implicações relacionadas ao estado de
emergência refletem nas formas de contratação e nos gastos da administração
pública, que se tornam flexibilizadas para permitir uma melhor gestão de
recursos. Nessas condições, não é cogitada a restrição de direitos tal como o
permitem as modalidades do sistema constitucional das crises.
Em contraposição ao estado de exceção, está o estado
democrático de direito, no qual o Estado e suas instituições funcionam de
maneira independente e operam sob o império da lei, no qual existe a prioridade
de defesa do indivíduo e a política é regida por processos democráticos
conforme o estabelecido na Constituição. Teoricamente, é uma situação de
normalidade/estabilidade, de modo que os indivíduos sabem os limites do poder
estatal e tem a certeza de que estão em tempos de paz. Nesse cenário, uma gama
mínima de direitos é garantida pelo poder público aos cidadãos, de modo que
essa salvaguarda — e a confiança de que o Estado pode promovê-la — permite a
manutenção da estabilidade interna do país.
A partir disso — apesar de formalmente vigorar um estado de
direito —, pode-se afirmar que nosso país também não está em uma situação de
normalidade e estabilidade institucional, seja pela pandemia do novo
coronavírus que diariamente ceifa a vida dos brasileiros seja pela desordem do
contexto político atual.
Isso posto, ressalta-se que entre o estado de exceção e o
estado democrático de direito existe uma situação intermediária, a qual o
professor Roosevelt Arraes dá o nome de tensão.
Essa condição representa a iminência de uma crise — sendo que ela sinaliza
o ponto mais alto do conflito, culminando no estado de exceção —, que é marcada
principalmente pela constante incerteza (ARRAES, 2019, p. 188). A situação de
tensão é definida pelo professor da seguinte maneira:
Esta é uma situação de apreensão/preocupação, decorrente do
estado de incerteza que antecede e/ou que sucede a crise, sem ser a situação
normal ou a anomia. Embora a crise contenha um grau de tensão, a tensão dela se
distingue pela intensidade de indeterminação. (ARRAES, 2019, p. 189).
É nessa situação de tensão que o Brasil se encontra.
Considerando o atual cenário brasileiro, em entrevista ao blog Fala Direito, Arraes
esclareceu que existe uma
“Tensão institucional,
tensão política, tensão econômica, tensão em relação à proteção dos indivíduos.
Porque nós não sabemos se estamos efetivamente em um Estado de Direito ou se
estamos em um estado de exceção. Então, estamos na antessala do estado de
exceção.”[ii]
Se por um lado, aplicam-se as regras do estado de direito,
por outro, não se pode dizer que a situação é de normalidade e estabilidade
institucional. Isso leva ao fato de que não se sabe o que esperar do Estado. De
acordo com Arraes, essa indefinição afeta o modo como as pessoas se comportam,
de modo que
“A dificuldade desta
situação é que a gente não sabe como se comportar. Porque se nós soubéssemos
que estamos num estado de exceção, nós saberíamos que os indivíduos estão
submetidos irremediavelmente ao Estado, sob a força do Estado. Se nós
estivéssemos no estado de direito, nós saberíamos que teríamos instituições que
poderiam controlar o Estado. Como não sabemos se estamos em um ou em outro,
surgem uma série de comportamentos que dizem respeito a um não estar, quando
você não sabe exatamente onde você está, é como se você não estivesse.” [iii]
Essa indefinição faz com que as
pessoas não saibam determinar seus comportamentos, pois, em uma situação na
qual não há certeza sobre nada, também não há segurança ou confiança de que o
Estado seja capaz de proteger seus cidadãos. Portanto, é certo que, no Brasil,
não se verifica um estado de exceção e, como consequência, não há que se falar
em restrição de direitos e garantias fundamentais. Entretanto, é nítido que a
situação não é de normalidade e estabilidade institucional, gerando uma tensão
constante da qual a única certeza é de que ela existe e que não passará tão
cedo.
REFERÊNCIAS
ARRAES, Roosevelt. Consenso e conflito na liberal democracia: John Rawls e Carl Schmitt. 232 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2019.
AGÊNCIA SENADO. Situação de emergência e estado de calamidade pública. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/defesa-civil/situacao-de-emergencia-e-estado-de-calamidade-pública>. Acesso em: 08 abril 2020.
BBC. Congresso aprova decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro; entenda o que a medida significa. <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43079114> Acesso em: 01 abril 2020.
[i] Professor do Centro Universitário Curitiba — UNICURITIBA.
[ii] Entrevista realizada com Roosevelt Arraes para o blog Unicuritiba Fala Direito.
[iii] Entrevista realizada com Roosevelt Arraes para o blog Unicuritiba Fala Direito.
AGÊNCIA SENADO. Situação de emergência e estado de calamidade pública. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/defesa-civil/situacao-de-emergencia-e-estado-de-calamidade-pública>. Acesso em: 08 abril 2020.
BBC. Congresso aprova decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro; entenda o que a medida significa. <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43079114> Acesso em: 01 abril 2020.
[i] Professor do Centro Universitário Curitiba — UNICURITIBA.
[ii] Entrevista realizada com Roosevelt Arraes para o blog Unicuritiba Fala Direito.
[iii] Entrevista realizada com Roosevelt Arraes para o blog Unicuritiba Fala Direito.
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