Em tempos de coronavírus, não é segredo para ninguém que, aos que
continuam empregados, uma “nova forma” de trabalho ganhou força. Trata-se do home office ou, como legalmente conhecido,
teletrabalho.
Consolidado na CLT, o teletrabalho pode ser encontrado nos artigos 6º e
75-B a 75-E da legislação trabalhista. Assim, é uma espécie de trabalho à
distância, em que não se não limita ao domicílio, podendo ser prestado em
qualquer lugar, com o controle e a supervisão similares ao labor tradicional.
Entretanto, a subordinação é mais tênue, podendo ser efetivada por meio de
câmeras, sistemas de logon e logoff, computadores, relatórios, bem
como ligações por celular, rádio e aplicativos de computador, por exemplo.
Ainda, a CLT (art. 75-D) prevê a possibilidade de transferir ao empregado,
mediante contrato escrito, os gastos necessários à aquisição de equipamentos e
material de trabalho, contrariando a lógica capitalista de produção consagrada
no art. 2º da CLT[i].
Vale destacar, entretanto, que a Súmula 428 do TST assegura o “direito
ao lazer e à desconexão”, sobrevindo pagamento de horas de sobreaviso nos casos
em que houver a ofensa à desconexão do trabalho. Deve haver cuidado, ainda,
para não haver lesão ou ameaça aos direitos fundamentais de privacidade e
intimidade do empregado.
Por fim, conforme a doutrina, o
teletrabalho pode ser dividido nas modalidades: home office, se a unidade principal de trabalho à distância
coincidir com a residência do empregado; o call
center, se não coincidir com o domicílio, mas possuir endereço fixo; ou
trabalho remoto, se for itinerante, virtual ou o empregado tiver que prestar os
seus serviços em trânsito, conectado ou conectando-se com a sede da empresa[ii].
Mas e quando o home office não é uma opção do trabalhador? Com a incidência da
pandemia, foi recomendado aos empregadores que “liberassem” seus empregados
para trabalhar de casa, a fim de evitar a proliferação do vírus. Ocorre que, em
muitos casos, os funcionários não estavam (nem estão) preparados para isso, não
possuindo uma estrutura adequada para exercer suas atividades cotidianas. Esse
problema fica ainda maior nos casos em que há uma figura específica em casa: os
filhos - especialmente os mais novos.
Com as escolas e CEIs fechados, resta
aos pais o dever de acompanhar e auxiliar no desenvolvimento dos alunos,
enquanto os professores preparam conteúdos online.
Porém, como é sabido, crianças demandam cuidados em tempo (praticamente)
integral, não compreendendo, muitas vezes, que os pais, apesar de estarem em
casa, também precisam cumprir as funções laborais.
Em breve pesquisa pelo Google é extremamente comum encontrar
dicas e sugestões para “sobreviver” a este período com os pequenos em casa.
Entretanto, esse texto não é sobre isso. É, na verdade, sobre a realidade da
sobrecarga das mães, que acabam assumindo todas as tarefas: laborais,
domésticas e maternais.
Essa “jornada feminina” ficou
evidenciada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad
Contínua), divulgada antes do Covid-19. Segundo o estudo, a jornada semanal das
mulheres dura, em média, 3 horas a mais do que a dos homens (levando em conta o
tempo dedicado ao cuidado da casa e de seus moradores).
Essa jornada adicional parte da tese de
que quando uma mulher chega em casa, no final do dia, ela pratica seu segundo
emprego não-remunerado no ambiente doméstico, ao comprar mantimentos, cozinhar,
limpar e lavar a louça, além de performar “o trabalho invisível” — que é
planejar, coordenar e antecipar necessidades de todos da casa.[iii]
Além
disso, a pesquisa demonstra que 92,2% das mulheres realizam afazeres
domésticos, contra apenas 78,2% dos homens. Quanto aos cuidados dos filhos,
aponta-se que os pais costumam participar de atividades como ler, jogar ou
brincar (73,7%) e fazer companhia em casa (87,9%). Porém, na hora de fazer o
dever de casa, eles estão presentes em somente 60,7% dos casos. Claro, isso
tudo sem mensurar o trabalho extradomiciliar[iv].
Em outra pesquisa, desta vez realizada pela startup
Pin People, nota-se que a experiência do trabalho remoto está mais difícil
para as mães do para os pais[v].
Veja-se
que, tanto no universo do trabalho, quanto no ambiente doméstico, o coronavírus
trouxe desafios e deixou ainda mais explícita a carga invisível absorvida pelas
mulheres.
“Agora cuido da casa, do meu marido e
ajudo o meu filho, que está estudando em casa até tudo voltar ao normal. Eu
gosto disso, de ficar mais perto deles. A gente tem pouco tempo junto
normalmente”, diz. “Mas sinto como se eu, mesmo sem trabalhar, estivesse com o
triplo de tarefas. Faz duas semanas e está sendo muito cansativo. O duro é não
saber quando vai acabar.” [vi]
De
acordo com Marilane Teixeira, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho da Unicamp, é devido às construções sociais essa
expectativa de que as mulheres estarão à frente do “trabalho do cuidado”.
Segundo ela, é estabelecido que esse é o papel da mulher, vez que ela – em tese
– possui maior habilidade e cuidado. Ademais, esse aumento da “carga mental”
imposta pela pandemia não é sequer pensado ou visto; é como se fosse algo
“natural” às mulheres[vii].
O
tal home office materno não é lá tão bom assim. O tempo corre mais do que deve,
as crianças não tem maturidade para entender que o fato de mamãe estar na
frente de um computador, ela está trabalhando e menos ainda, que aquilo ali é o
que paga as contas da casa, ou parte delas. Somos consequentemente interrompidas
não só pelos filhos, mas pelo telefone que toca, pela hora do almoço que chega,
pelo trânsito, pela roupa que se acumula no cesto, pela pia de cheia de louça
que quando vemos, o da acabou e nada do que tínhamos de trabalho foi
finalizado.[viii]
Diante disso tudo, surge a frustração
por não conseguir realizar tudo com a excelência desejada. Afinal, se algumas
mulheres conseguem, porque “eu” não conseguiria? A situação se agrava ainda
mais em momentos de crise, em que todo mundo que tem um trabalho que pode ser
feito remotamente está sendo liberado para assim o fazer, mas não serão
avaliados da mesma maneira ao final da crise (que, nesse caso, sequer há
previsão).
Gestores
preocupados com inclusão precisarão levar em consideração que o home office e –
a qualidade do mesmo – é totalmente diferente para alguém sem filhos (ou que
age como se o fosse) e quem tem um bebê. Assim como é bem mais desafiador
trabalhar e se concentrar tendo em casa crianças pequenas, do que adolescentes.
Claro que este será um problema para pais e mães que compartilharem os cuidados
com as crianças, mas como as empresas irão encarar cada um deles no cumprimento
das atribuições profissionais? E como será para as mães-solo (que comandam 11,6
milhões de lares, segundo o IBGE)?[ix]
Assim, as mulheres-mães, especialmente mães de filhos pequenos, se vêem em uma situação de ainda maior desvantagem na competição existente no mercado de trabalho - pois são cobradas a partir das mesmas métricas daqueles que não tem filhos. Ante toda a dificuldade que lares,
filhos e trabalhos proporcionam normalmente, agravada pela atual pandemia, a
questão não é apenas sobre a possibilidade ou não do home office; é muito além e pode trazer desdobramentos inclusive sobre a saúde mental materna.
Toda esta situação demonstra que é mais do que necessário desconstruir o mito do “instinto materno”, o
qual afasta os homens de suas responsabilidades (sim, pasmem, responsabilidade;
não “ajuda”) e reforça a desigualdade de gênero como algo natural. É essencial
interromper os clichês e parar de romantizar relações construídas no dia a dia,
que também tem seus altos e baixos.
Portanto, não se trata sobre a
eficácia ou dificuldades trazidas pelo trabalho remoto – que, de fato, é a
melhor opção para o momento. A supercarga emocional evidenciada através de um
“simples” vírus é uma questão estrutural, patriarcal e que vai além do trabalho
assalariado, englobando tarefas “invisíveis”, mas que insistem em cair nos
ombros das mulheres que, quando muito, são menosprezadas por ofertas de “ajuda”
dos parceiros do gênero oposto.
[i] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do
Trabalho. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
[ii] BASILE. César Reinaldo Offa. Direito do Trabalho. v.
27. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
[iii] MARTINELLI, Andréa; FERNANDES, Marcella. Como a
quarentena escancara a sobrecarga de mães dentro de casa. HuffPost. 31 mar. 2020 . Disponível em:
<https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-isolamento-trabalho_br_5e824d85c5b603fbdf4795b5>.
[iv] MARTINELLI, Andréa; FERNANDES, Marcella. Como a
quarentena escancara a sobrecarga de mães dentro de casa. HuffPost. 31 mar. 2020 . Disponível em:
<https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-isolamento-trabalho_br_5e824d85c5b603fbdf4795b5>.
[v]
FREIRE, Anny. Home Office é mais difícil para mães, mostra pesquisa. Tribuna Online. 08 abr. 2020.
Disponível em:
<https://tribunaonline.com.br/home-office-e-mais-dificil-para-maes-mostra-pesquisa>.
[vi] MARTINELLI, Andréa; FERNANDES, Marcella. Como a
quarentena escancara a sobrecarga de mães dentro de casa. HuffPost. 31 mar. 2020 . Disponível em:
<https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-isolamento-trabalho_br_5e824d85c5b603fbdf4795b5>.
[vii] MARTINELLI, Andréa; FERNANDES, Marcella. Como a
quarentena escancara a sobrecarga de mães dentro de casa. HuffPost. 31 mar. 2020 . Disponível em:
<https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-isolamento-trabalho_br_5e824d85c5b603fbdf4795b5>.
[viii]
GAMA, Gabriela.Home Office Materno e a Baixa Produtividade. Aprendizados de Mãe. 30 jan. 2019. Disponível
em:
<http://aprendizadosdemae.com/2019/01/home-office-materno-e-a-baixa-protudividade/>,
[ix]
LEITE, Tayná. Coronavírus mostra que trabalhar de casa com filhos não é um
sonho. AzMina. Disponível em: <https://azmina.com.br/colunas/coronavirus-mostra-que-trabalhar-de-casa-com-filhos-nao-e-um-sonho/>.
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