03/03/2020

Opinião: devemos tolerar os intolerantes? Há limites à liberdade de expressão?

Por Giovanna Maciel 


Com respaldo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, acompanhada pelas Constituições de diversos países ao redor do mundo, a liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais do homem. Diante disso, cabe a todo ser humano o direito/dever de todos, em especial das autoridades politicas, preservá-la. 


          No Brasil, não é diferente, tendo a Constituição Federal estabelecido ao longo do art. 5º a livre manifestação do pensamento, de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, sendo vedado o anonimato. Além disso, aqui, o exercício deste direito também está diretamente ligado à redemocratização do país, vez que, não há muito tempo, o ato de se expressar livremente era cerceado com violência.

          
Em que pese o presidente Jair Bolsonaro tenha afirmado em abril do ano passado (2019), que a liberdade de expressão é um direito legítimo e inviolável[1] – talvez na tentativa de justificar seus inúmeros comentários odiosos ao longo de sua carreira política –, será que, de fato, esse esta liberdade é absoluta?


Embora se possa amparar em tal direito, há aspectos que exigem, urgentemente, uma melhor definição e condução. Um deles, em alta atualmente – infelizmente não só no Brasil –, é o discurso de ódio, que, por mais lamentável que seja, continua ocupando a agenda das discussões em torno do alcance da proteção da liberdade de expressão.


Basicamente, o discurso de ódio é aquele discurso proferido através de mensagens – escritas e/ou verbais – que buscam a promoção do ódio e incitação à discriminação, hostilidade e violência contra um grupo em virtude de raça, religião, nacionalidade, orientação sexual, gênero, condição física ou outra característica. É utilizado com a finalidade de insultar, perseguir e justificar a privação de direitos humanos alheios e, em casos extremos, para dar razão a homicídios e genocídios. Assim, é dirigido a um grupo de pessoas, de forma que as mensagens de desprezo, aversão e hostilidade extrema não configuram dano a apenas uma pessoa específica, mas a uma coletividade inteira, cujas características são comuns entre eles.


          Não faltam exemplos, seja no cenário global ou nacional, destes discursos, que vem se agravando substancialmente, seja pelo teor, quanto pelo impacto em diversas searas. Só no último ano, podemos citar a condenação de um “humorista” por injúria a uma deputada, os inúmeros discursos de autoridades governamentais – não falando apenas sobre o presidente –, as ofensas proferidas a uma ativista após seu discurso na ONU e, mais recentemente, os casos de racismo explícito em um jogo de futebol em Portugal, e de um motorista de aplicativo em Curitiba.

          
Percebam que sequer é necessário mencionar nomes para saber do que cada um dos casos de trata. Isso porque a ampliação em progressão geométrica do acesso à internet e às mídias sociais, a facilidade de veicular essas manifestações discriminatórias, tem servido não apenas como meio de divulgação desses discursos, mas também como uma forma ainda maior de segregação e violência, sem limites quantitativos e territoriais.


          Nesse cenário, é compreensível a preocupação com os limites da liberdade de expressão não só na esfera política, mas também judiciária, que tenta entender e definir, até certo ponto, quais manifestações podem ou não ser assim enquadradas e reprimidas.  É precisamente aqui que as diferenças entre os diversos ordenamentos jurídicos assumem particular importância, em especial quanto à assim chamada posição preferencial da liberdade de expressão. 


          Na Alemanha, por exemplo, aqueles discursos que negam os crimes de guerra e genocídio, por si só, são interditados e criminalizados, a fim de se evitar o retorno dos preceitos neonazistas. Por outro lado, nos Estados Unidos, entende-se pela proibição da limitação da liberdade de expressão, a chamada “free speech”. Então, discursos similares aos acima mencionados, são plenamente lícitos, ainda que em confronto às outras liberdades humanas.


          Enquanto isso, no Brasil, não há lei específica sobre o tema, levantando-se cada vez mais polêmicas acerca de determinados discursos, sejam de pessoas públicas ou não, fazendo com que cada Juiz, Desembargador e Ministro, possa ter um posicionamento diferente, favorecendo um ou outro direito de acordo com interesses pessoais.


          Outra discussão que não se pode deixar de mencionar é o “paradoxo da tolerância”, levantado, a priori, por Karl Popper (1945) e, posteriormente, por John Rawls (1971). Enquanto o primeiro concluiu que devemos reivindicar o direito de não tolerar os intolerantes – em nome da tolerância; o segundo afirma que a sociedade deve tolerar, inclusive, os intolerantes – salvaguardada a autopreservação.


          Assim, para Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”:



Tolerância ilimitada culminará no desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até para aqueles que são intolerantes […], então os tolerantes serão destruídos, e junto com eles a tolerância.

Nessa formulação eu não sugiro que devemos sempre suprimir os discursos de filosofias intolerantes; desde que seja possível contrariá-los através da argumentação lógica e desde que a opinião pública os mantenha quietos, suprimi-los seria imprudente.

Porém, devemos reivindicar o direito de suprimi-los até pela força, se necessário; pois é provável que eles não estejam preparados para encontrar nosso nível de argumento racional, e podem começar a rejeitar qualquer tipo de argumento.

Ele podem proibir seus seguidores de ouvirem argumentos racionais, e ensiná-los a responderem argumentos com seus punhos ou pistolas. Nós devemos portanto reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.



          Ao passo em que Rawls (em “A Teoria da Justiça”) não é tão peremptório...

         

Ao passo que uma seita intolerante não possui pretexto para reclamar de intolerância, a sua liberdade deve ser restringida em relação aos tolerantes, somente quando estes últimos creem que a sua própria segurança e as instituições que preservam a liberdade, estão em perigo.



Todavia, em que pese discussões filosóficas e até mesmo políticas sobre o tema, não é possível se chegar, a princípio, em critério prático para se estabelecer quando um discurso intolerante passa de um mero exotismo se convertendo em uma ameaça à democracia.


Assim, sem parâmetros objetivos, cada indivíduo se torna responsável por suas convicções. Há de se mencionar, porém, que não obstante a importância das liberdades pessoais, em especial a de expressão, não se pode deixar de observar também o direito dos demais, de serem respeitados e tratados com dignidade – princípio máximo dos Direitos Humanos.
          
Diante disso, tem-se que o limite da liberdade de expressão está em não ultrapassar os direitos fundamentais de outros indivíduos. Ou seja, a incitação de atos violentos, discriminação e preconceito ferem não só a Constituição, mas o direito inerente a todos os seres humanos, de ser respeitado com suas particularidades. Assim, quando a liberdade de expressão de um, fere a liberdade de outro, torna-se opres


[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/liberdade-de-expressao-e-direito-inviolavel-diz-bolsonaro-apos-caso-de-censura.shtml

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