04/06/2019

Me indica um livro? – Truques da Escrita de Howard S. Becker



            Howard S. Becker, no último capítulo de seu livro Truques da Escrita, publicado em 1986, diz ao leitor: "Tente!". Mas, tentar o quê? Escrever. Sem medo de ser julgado. E, depois de escrito, reescrever. Para o autor esse é o grande truque: revisar, organizar, tentar.
            O livro, de linguagem acessível e de fácil aplicabilidade prática, tem sua origem num seminário de redação que o cientista social norte-americano, professor Becker, ministrou aos estudantes de pós-graduação em Sociologia na Northwestern University. A metodologia utilizada nas aulas foi descrita em seu primeiro capítulo "Introdução à redação" para estudantes de pós-graduação. Ao ministrá-las o autor percebeu que medos e inseguranças eram sentimentos coletivos na vida acadêmica. E que, por falta de diálogos sobre tais aflições, alguns vícios e problemas na produção textual se perpetuam até hoje. Não conseguir organizar as ideias no papel, e ser motivo de deboche por ter escrito algo considerado errado, são os medos motores para tais dificuldades na escrita dos alunos de Becker.
            Persona e autoridade é o segundo capítulo do livro, nele o cientista social apresentou fragmentos da carta de sua aluna, Rosanna Hertz, que proporcionou reflexões interessantes sobre o que ela, e todos os escritores iniciantes da academia, consideram como uma “escrita com classe”. O professor condenou tal escrita, carregada de floreios, considerando que esta tática textual apenas distrai a real intenção do escrito. Os acadêmicos iniciantes insistem em querer usar de palavras difíceis e tentam escrever rebuscado, como os autores que admiram, mas Becker defende a clareza e a objetividade na escrita. E, para isso, é preciso partir de si mesmo, de pensamentos e ideias próprias para então organizá-las e reescrevê-las.
Tal observação do professor Becker assemelha-se à passagem em que Rainer Maria Rilke, no célebre Cartas ao Jovem Poeta, aconselhou o aspirante e aflito poeta Franz Xaver Kappus em seus poemas. Kappus pediu a ajuda de Rilke para saber se o que escrevia era bom. E, de maneira generosa e sincera, Rilke respondeu que antes de tudo o rapaz deveria olhar para dentro, para si, investigando o que o motivava a escrever. Rilke também sugeriu que Kappus não se baseasse nos temas clássicos, que inicialmente deveria escrever algo pessoal e íntimo, buscando verdade em suas palavras, pois era a partir delas que as possibilidades seriam criadas. Rilke se referia a uma produção poética e não a textos acadêmicos e científicos, mas a mesma confiança que Rilke tentara passar para seu correspondente podemos perceber nas palavras de Becker, quando ele pede para escrevermos o que nos vem à cabeça, sem recorrer a nada de início. Esse seria o ponto zero, o que você gostaria de dizer esboçado no papel na ordem do pensamento, uma ordem que precisa ser organizada e em seguida reescrita.
O professor Becker salientou, ainda, que o posicionamento do escritor no texto define sua personae, e é ela que trará autoridade ao seu texto. Para isso, é preciso encontrar uma maneira clara e objetiva que permita ao leitor acompanhar e compreender seu direcionamento textual. O capítulo que segue é A Única Maneira Certa, no qual o autor percebeu que a relutância de seus alunos em reescreverem seus textos vem de tradições acadêmicas que não estimulam que sejam retrabalhados os trabalhos já avaliados. Desta forma, o aluno se propõe a melhorar seu desempenho nos trabalhos seguintes, não buscando melhorar o que já foi feito. Em Editando de ouvido, sugestões de uma boa escrita foram apresentadas, como a premissa do "menos é mais", a necessidade em se ponderar o uso de metáforas e nos alertou que repetições podem gerar tédio ao leitor.
            O quinto capítulo refere-se ao que o próprio autor definiu como pretensioso, em Aprendendo a escrever como profissional afirmou que ninguém nasce sabendo escrever e relatou sua trajetória, de trinta e poucos anos, em que desenvolveu sua escrita e a sensibilidade em identificar vícios e irrelevâncias nas produções textuais. Riscos é o capítulo mais pessoal e dramático do livro, que consiste no desabafo de Pamela Richards registrada em uma carta para Howard. A doutora, professora e antropóloga relatou em sua correspondência ao professor os riscos que enfrentou, e enfrenta, em escrever e em mostrar seu rascunho para alguém. O relato partiu de dois sonhos que levaram Pamela a se perceber como uma farsa. Esses sentimentos foram regidos por sua insegurança em não ser realmente boa ou genial em sua produção acadêmica. E, neste momento, o autor do livro é claro em seu objetivo: convencer por completo o leitor de que escrever não é um problema apenas de iniciantes. Todo escritor em qualquer estágio profissional e acadêmico passa pelos mesmos temores. É uma insegurança coletiva que dificilmente é compartilhada de maneira produtiva, e que normalmente é ocultada com intuito de manter-se implacável e admirável aos olhos de seus colegas. Em Soltando o texto, Becker falou sobre a competitividade e os prazos, responsáveis pela grande pressão na produção da vida acadêmica. E, dando sequência aos medos, em Apavorados com a bibliografia o professor esclareceu que a bibliografia tem um importante papel colaborativo na produção de conhecimento, mas que seu uso não pode distorcer o argumento de seu texto, para isso deve ser utilizada de modo consciente.
            O capítulo nove foi escrito em 1986, e neste período o uso de computadores no âmbito acadêmico estava em seu início, e Becker sabiamente optou por deixá-lo na reedição de 2007 como um registro das transformações daquele período. Sua escolha proporcionou a nós a ilustração de um cenário importante de assimilação e descoberta de novas possibilidades. O capítulo levou o título Desgaste e processadores de texto, e nele o autor relatou as dificuldades físicas da reescrita antes do computador e os benefícios que a era digital poderia proporcionar nos processos de revisão e organização dos textos.
            Truques da Escrita gera identificação imediata em escritores aflitos e inseguros. Utilizou-se de descrições honestas e humoradas de situações que o autor, colegas, alunos e qualquer escritor iniciante, ou não, já passaram ou irão passar. Becker, em duzentas e cinquenta e seis páginas, pretendeu mostrar a importância em se revisar e reescrever um texto, esperando confortar e dar esperança aos escritores angustiados, para que entendam que seu medo é coletivo, e que para ser vencido é preciso começar. "Escreva", disse Becker, qualquer coisa, de um bilhete a uma carta. Pois a escrita é feita de hábito e trata-se de uma atividade organizacional. Para o autor, quanto mais clareza e ordenamento racional das ideias mais facilitadora será sua leitura, pois um texto não compreendido não é eficaz.

Referências
BECKER, Howard Saul. Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e artigos. Tradução: Denise Bottmann; revisão técnica Karina Kuschnir. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 256 p., 14x21cm (Coleção Antropologia Social).

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução: Paulo Rónai e Cecília Meireles. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013.


Um comentário:

  1. É confortante saber que as incertezas que enfrentamos ao produzir textos são compartilhadas. Parabéns pelo excelente texto Rafa!

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